09 Julho 2025
- Em carta publicada no site da Arquidiocese de Nápoles, o cardeal apela ao que resta de humanidade no coração do homem diante de um planeta que ressoa com os tambores da guerra em todas as direções do horizonte.
- “O Evangelho”, escreve ele, “não faz concessões nem suaviza a verdade: ele exige que reconheçamos o homem quando o vemos e chamemos de mal o que o esmaga”.
- Deus da respiração negada, arranca a mesa dos senhores que vendem o mundo a golpes de sabre. Vira as tuas cartas de ferro: que o chumbo espalhado se transforme num torrão, que o orçamento reunido se transforme num berço.
- "Ofereça aos poderosos o espelho que eles não podem quebrar: o rosto de uma criança sem noite, o tremor de um médico sem luz."
A reportagem é de Benedetta Capelli, publicada por Religión Digital, 08-07-2025.
“Se não for por Deus, fazei-o pelo que resta da humanidade…”: este é o título do escrito do Cardeal Domenico Battaglia, Arcebispo de Nápoles, que assina como “Don Mimmo”, (Padre Mimmo) publicado hoje, 8 de julho, no site diocesano. É um texto que expõe responsabilidades e deveres, que comove os indiferentes, que evoca imagens, sons e cheiros de bombas lançadas sobre a humanidade inocente, que indica no Evangelho o caminho para redescobrir a piedade humana e escolher de que lado ficar.
“Você sente eles pulsando?”
O cardeal fotografa a Terceira Guerra Mundial em fragmentos, com a Ucrânia, que viu "treze mil civis aniquilados pelo fogo; em Gaza, cinquenta e sete mil vidas extintas como velas na corrente em vinte e um meses de cerco; do Sudão, quatro milhões de corpos marchando em busca de um lenço de sombra; em Mianmar, três milhões e meio de rostos espalhados entre cinzas e selva", e depois há "cento e vinte e dois milhões de refugiados jogados ao vento como sementes". "Esses números — você consegue senti-los pulsando? — deveriam gelar seu sangue. Cada número", diz o cardeal, "é uma testa em chamas, uma fotografia desbotada cerrada em um punho, uma voz pedindo um minuto sem sirenes".
“Objetivos estratégicos”
Daí o apelo por "governos de peito duplo", "conselhos de diretores lubrificados como engrenagens, alianças militares com vozes metálicas" para reconhecer o homem como tal, para chamar o mal pelo seu nome, porque "Evangelho não faz concessões nem suaviza a verdade. Não pede carteira de membro, não exige incenso".
“Se queres ser um guia e não um leme no caos, detém os comboios carregados de morte antes que atravessem a última alfândega”, transforma — eis a exigência — armamento em arados, canos, secretárias, ambulâncias. “E tu que te afundas nas cadeiras vermelhas do parlamento, abandona os teus ficheiros e mapas: caminha, mesmo que por uma hora, pelos corredores mortos de um hospital bombardeado; sente o cheiro a gasóleo do último gerador; ouve o bip solitário de um respirador suspenso entre a vida e o silêncio, e então sussurra — se puderes — a frase ‘objetivos estratégicos’.”
O Espelho Impiedoso
O Evangelho, tanto para crentes como para não crentes, é um espelho implacável: reflete o humano e denuncia o desumano. Se um projeto esmaga os inocentes, é desumano. Se uma lei não protege os fracos, é desumana. Se lucra com o sofrimento daqueles que não têm voz, é desumana. O Cardeal Battaglia acrescenta que, se quisermos eliminar Deus, devemos nos concentrar "naquele pedacinho de humanidade que ainda nos mantém de pé". "A guerra é o único negócio em que investimos nossa humanidade para obter cinzas". "Enquanto uma bomba valer mais que um abraço, estaremos perdidos. Enquanto as armas ditarem a agenda, a paz parecerá loucura".
Não desista
Nós, que lemos, temos o dever de não desistir. A paz brota na sala: um sofá que se estica; na cozinha, uma panela que se curva; na rua, uma mão que se estende. Gestos humildes e tenazes: "Você vale a pena", sussurrados àqueles que o mundo descarta. O grão de mostarda — escreve Battaglia — é pequeno, mas se torna árvore. O mesmo vale para o Evangelho: duro como uma pedra, terno como o primeiro grito. Ele nos pede para fazer uma escolha clara: construtores da vida ou cúmplices do mal. Não há terceiras vias. Para encerrar sua reflexão, o cardeal escreve este poema:
Deus do sopro negado, arranca a mesa dos senhores que vendem o mundo a golpes de sabre. Vira as tuas cartas de ferro: que o chumbo espalhado se torne um torrão, que o orçamento reunido se torne um berço. Oferece aos poderosos o espelho que eles não sabem quebrar: o rosto de uma criança sem noite, o tremor de um médico sem luz. Faze com que não consigam desviar o olhar até que o privilégio se torne vergonha e a vergonha se torne justiça. Lembra-nos que a carne vale mais que o emblema, que quem lucra com o sangue cava a sua própria sepultura, que a aurora não pertence a quem tem canhões, mas a quem segura um abraço. Silencia as sereias, dobra as bandeiras cheias de ruído, e devolve-nos um silêncio capaz de fazer florescer o futuro. Amém.
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