A paz esteja convosco! Porém, a guerra chegou de novo. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz

Arte: Alexandre Francisco | Wikimedia Commons/YouTube

24 Junho 2025

"Pensarmos uma paz desarmada e desarmante, nas palavras do papa Leão XIV, exige uma confrontação pública que desconstrua a legitimidade dos argumentos da cultura belicista. Como sempre, os interesses bélicos estão associados à hegemonia do poder de determinados sujeitos históricos muito poderosos. Por sua vez, essa hegemonia não é absoluta, pode ser contestada sempre e quando se consiga arquitetar uma pressão social, pública ou popular suficiente para deslegitimar a loucura da cultura bélica. A cultura bélica nos conduz diretamente para o abismo da morte e destruição. Neste contexto se aplica a metáfora benjaminiana de que, para sobrevivermos, há que puxar o freio da história que nos conduz à catástrofe".

O artigo é de Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz

Castor M. M. Bartolomé Ruiz é professor titular dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Membro da diretoria da Associação Ibero Americana de Filosofia Política (AIFP), coordena o Grupo de Pesquisa CNPq, "Ética, biopolítica e alteridade" e a Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança. Escreveu inúmeros livros, dos quais destacamos: La mímesis humana: la condición paradójica de la acción imitativa (OmniScriptum Management GmbH – EAE, 2016); Os paradoxos do imaginário (Editora Unisinos, 2015) e Direito à justiça, memória e reparação (Casa Leiria, 2010).

Eis o artigo.

As primeiras palavras do Papa Leão XIV quando saudou ao povo no dia de sua eleição foram “A Paz esteja convosco”. Estas são as palavras do Ressuscitado aos discípulos que estavam encerrados com medo. Nestas primeiras palavras, o Papa Leão XIV quis mostrar uma espécie de preocupação primordial de nosso contexto histórico, assim como indicar que esse anúncio do Ressuscitado sobre a Paz tem um alcance ético e político em todos os tempos. O Papa Leão XIV é ciente de que sua figura institucional representa um referente ético e simbólico na conjuntura internacional. Sua preocupação pela paz (e a guerra) resultou ser um sinal de nossos tempos. Talvez por isso decidiu reforçar o sentido dessa paz, qualificando-a de uma “paz desarmada e desarmante”.

Pouco depois de sua eleição como papa, estourou uma nova guerra, agora entre Israel e Irã. É muito provável que dada  sua já larga experiência em vários contextos internacionais, o Papa Leão XIV tenha consigo uma sensibilidade muito especial para a “cultura do belicismo” que se está instalando em nossos tempos. Por isso, ao assumir essa nova e singular responsabilidade tenha feito da luta pela Paz um horizonte de seu papado. Seja como for, o fato é que a voz do Papa Leão XIV pela paz está soando no contexto internacional quase como um grito isolado e uma voz dissonante. Mas, por isso mesmo está postura resulta muito significativa, já que questiona a legitimidade da guerra contra Irã por parte de Israel. A União Europeia, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália e ad latere pronunciam-se legitimando a agressão como um ato de defesa legítima. Eis porque as palavras do Papa Leão XIV sobre a Paz, assim como sua posição de isolamento internacional na crítica à guerra contra Irã, representam um referente ético e também político para nossos tempos, como foi o posicionamento do papa Francisco sobre ecologia, migração, etc.

O contexto belicista parece se expandir numa estratégia de imposição da guerra como dispositivo biopolítico para gestão da ordem social mundial. Estamos imersos numa guerra da Rússia contra Ucrânia, que a Rússia não reconhece como guerra, mas denomina de “operação especial”. Estamos sendo testemunhas ao vivo de uma tragédia humanitária do Estado de Israel contra a população de Gaza, com objetivos que se assemelham ao extermínio deliberado para poder ocupar totalmente seu território. Há um conflito latente e explícito entre Paquistão e Índia na disputada região de Cachemira, que no mês de junho deflagrou novos combates bélicos com disparos de misseis do Paquistão derrubando aviões da Índia, numa escala belicista que, mais uma vez, foi contida por negociações. Há uma guerra encravada em Sudão do Sul que está sangrando milhares inocentes, com apoio das grandes potências em cada lado. Continua a guerra dentro de Líbia entre facções militares, que representam interesses geopolíticos das grandes potencias. Continua a guerra em Síria, agora entre facções e grupos étnicos diferentes, sempre com presença apoios das grandes potências. Entre outros vários conflitos bélicos, porém o dia 13 de junho passado, Israel atacou Irã desencadeando uma nova guerra, de proporções ainda imprevisíveis.

Cada um destes conflitos têm suas motivações singulares. Porém todos eles são alimentados por várias dinâmicas expansionistas do belicismo, que por sua vez estão inoculando a cultura belicista como um valor natural e necessário da “realpolitik” de nossos tempos. Para construir uma cultura da paz, há que, primeiramente conhecer e desconstruir os argumentos que legitimam socialmente a cultura belicista. Vejamos.

1. Estratégia belicista dos movimentos autoritários

Uma primeira dinâmica ou estratégia da cultura belicista está sendo inoculada através do crescimento dos modelos políticos nacionalistas e xenófobos que propagam a tese de que a essência da política consiste na eliminação do inimigo. Esse inimigo pode ser o estrangeiro, o migrante, o morador de periferias, os pobres, negros ou etnias diversas, em cada país se escolhe um perfil de inimigo que deve ser combatido de modo belicista transformando a política num ato de força. A fabricação da política como uma relação entre amigo – inimigo é oriunda de Carl Schmitt (1888-1985) grande inspirador dos movimentos fascistas e do nazismo nas primeiras décadas do século XX. O que define a estes movimentos políticos xenófobos é que arquitetam um projeto altamente belicista de provocação e expansão dos conflitos como estratégia principal para conquistar o poder.

Já sofremos, tragicamente, algumas consequências da hegemonia dos fascismos e do nazismo na primeira metade do século XX. Agora estes movimentos retornaram travestidos de novos discursos e estão numa ascensão preocupante na maioria dos países. Estes movimentos políticos estão inflamando diariamente as subjetividades massificadas com os argumentos de uma cultura belicista que vai contaminando as massas e as instituições ao ponto de torna-lo aceitável e crível. A cultura belicista é inerente à estratégia de poder dos movimentos autoritários.

2. Estratégia do belicismo expansionista

Há uma segunda dinâmica belicista que se está instalando em nossos tempos, ela advém do modelo expansionista de fronteiras que as grandes potências estão adotando. Depois da II Guerra Mundial chegou-se a uma espécie de “paz das fronteiras”. Os tratados de paz após a II Guerra Mundial parecia que tinham deixado as fronteiras territoriais claramente delimitadas e pacificadas, de tal modo que essa delimitação de fronteiras parecia um limite intransponível para novos conflitos bélicos internacionais.

O laboratório bélico contemporâneo para expansão impune das fronteiras se encontra no Estado de Israel. Apoiado no legítimo direito de defesa a existir como Estado, Israel aproveitou a denominada “guerra dos seis dias” para invadir e anexar-se as Colinas do Golan (Síria) e também ocupou o Estado Palestino, nos seus dois territórios Cisjordânia – Gaza e Jerusalém Oriental. Ainda que Israel tenha sido condenado enfaticamente por diferentes resoluções da ONU deslegitimando qualquer direito a ocupar estes territórios, o Estado de Israel, apoiado em sua força militar e dos aliados, manteve uma política de expulsão dos palestinos de seus territórios e a ocupação constante deles por novos colonos judeus.

Gaza foi deixado como o único território sob controle político dos palestinos, por sua alta densidade populacional. A partir do ato de violência bárbara e injustificável que Hamas cometeu contra pessoas inocentes em Israel, o governo de Benjamin Netanyahu decidiu aproveitar a oportunidade para produzir uma estratégia de ataque de modo indiscriminado à população de Gaza, com deslocamentos forçados sob pretexto de combater ao Hamas, submetendo a milhões de habitantes a uma estratégia de sofrimentos horríveis (fome, doenças, bombardeios, assassinatos...) e por fim a uma morte lenta que se configura como um genocídio estrategicamente desenhado para ocupar o território.

O peculiar deste modelo expansionista do Estado de Israel é que, a pesar de todas as condenações políticas e jurídicas internacionais, ele avança como uma estratégia vitoriosa. Por este motivo, esse modelo expansionista sobre fronteiras de outros países, parece agora funcionar como um laboratório experimental para outras estratégias belicistas. Assim, o governo de Putin, Rússia, amparado em suas próprias razões e estratégias de poder, tomou a decisão de expandir suas fronteiras sobre Ucrânia, anexando-se diferentes territórios desta nação. Mas, a dinâmica expansionista também está sendo implantada pelo governo Trump, EEUU. Não é um acaso, nem tampouco mero exibicionismo chulesco o anúncio de Trump de anexar-se a Groenlândia por considera-lo um território estratégico. Também não é uma mera encenação midiática a pretensão de anexar-se Canadá como novo Estado dos Estados Unidos. Inclusive essa pretensão expansionista se manifestou ao ameaçar o Panamá com invadir o Canal e tomá-lo como território americano.

Ainda, esta dinâmica do expansionismo também está sendo implementada por China, que utilizando-se de seu grande poder econômico e militar está expandindo suas linhas de fronteira pelas águas do Pacífico Sul, ocupando ilhotas e inclusive fabricando ilhas artificiais entorno das quais reclama os direitos de soberania de 200 milhas marítimas. Desse modo China está conseguindo expandir suas fronteiras por milhares de quilômetros no Pacífico Sul, até colidir e invadir áreas de fronteira marítima de outros países como Filipinas ou Vietnã, com os quais há tensões bélicas na área.

Esta geopolítica expansionista está promovendo uma nova cultura belicista em grande escala, porque está operativo um novo paradigma de imperialismo expansionista daquele que tem o maior poder bélico. Ainda no marco deste paradigma bélico expansionista cabe destacar a utilização da doutrina do “ataque preventivo” como argumento legítimo para promover uma guerra preventivamente contra alguém, argumentando que é um direito se defender preventivamente de alguém que ainda não atacou, mas poderá atacar no futuro.

Esse foi o argumento utilizado pelo governo de Benjamin Netanyahu para legitimar o ataque a Irã iniciando uma nova guerra de grandes proporções e de resultados imprevisíveis. Se a doutrina bélica do “ataque preventivo” fosse aceita, explicita ou implicitamente, significará  que as relações internacionais se transformarão num “bellum omnium contra omnes” (guerra de todos contra todos), que traria à luz a necessidade do Leviatã como modelo político absolutista de Hobbes ou confirmaria as teses de Carl Schmitt de que a política é sempre uma relação bélica. Se for aceita a tese da legitimidade do ataque preventivo, qualquer pais poderá aduzir ou inventar um motivo para considerar a um outro um perigo potencial e com esse argumento atacá-lo militarmente. A rigor, o direito do ataque preventivo sempre será o direito do mais forte sobre os mais débeis, o direito da força sobre a justiça.

3. A guerra como dispositivo biopolítico de governo da ordem social-mundial

Uma terceira dinâmica que está fincando as raízes de uma cultura belicista em nossos tempos deriva do papel que a guerra tem adquirido em nossa contemporaneidade. As guerras clássicas eram guerras entre Estados e havia uma declaração formal de guerra que por sua vez visava a derrota total do outro Estado. As dezenas de guerras contemporâneas, depois da guerra do Vietnã, não houve em nenhuma delas uma declaração formal de guerra de um Estado contra outro. As guerras atuais se realizam a partir do paradigma de manutenção da “ordem mundial”. 

O conceito de ordem mundial foi assimilado ao conceito de ordem social, considerando a ordem mundial uma nova ordem social-mundial na qual há uma distribuição organizada de fluxo de capitais, matérias primas, mercadorias e produtos através dos quais se produz uma circulação direcionada das riquezas mundiais para determinados centros que as concentram, enquanto o resto do mundo funciona como uma espécie de fontes de abastecimento. Esse paradigma da ordem social-mundial substituiu ao antigo colonialismo dos séculos passados por um novo modelo de extração e concentração de riqueza em escala mundial. A manutenção da ordem social-mundial dentro de um equilíbrio de forças é essencial para essa nova concentração de riquezas do capitalismo financeiro.

Nesse paradigma da ordem social-mundial, a guerra funciona como se fosse um dispositivo de policiamento do mundo, ou seja, da ordem social-mundial. Agora, a guerra não pretende destruir totalmente ao inimigo e suas riquezas, pois isso prejudicaria o próprio comercio mundial e seus fluxos de riqueza. A guerra tem uma nova funcionalidade, qual seja a de reposicionar a países ou governos dissonantes da ordem social mundial dentro dos parâmetros funcionais desenhados para eles nessa racionalidade da ordem. Guerras que aconteceram como as de Líbia, Síria, Iraque, Kuwait, Iugoslávia, Ucrânia e agora Irã realizam-se dentro da lógica de manter a influência o controle dentro da ordem mundial dessas áreas que resultaram díscolas por diferentes motivos. A guerra tornou-se um dispositivo biopolítico de controle e gestão de populações, similar ao que a polícia representa para a ordem social de um Estado. Desse modo, vemos proliferar as guerras em espaços sociais contidos onde se conflagram as grandes potencias e interesses de modo limitado, evitando expandir a guerra de forma generalizada, que prejudicaria o fluxo das riquezas da ordem social mundial.

4. O complexo industrial militar e a cultura bélica

Uma quarta dinâmica que está insuflando constantemente o surgimento de novos conflitos bélicos em nosso tempo é a já conhecido “complexo industrial bélico” ou indústria armamentista. Desde a denominada Primeira Guerra Mundial (1914-1919) vimos surgir um poder bélico interno e autônomo dos próprios Estados. Esse poderio bélico está constituído pelas grandes empresas e corporações fabricantes de armamentos. A partir da Primeira Guerra Mundial a produção de armamentos deixou de ser um monopólio do Estado e passou, paulatinamente, a ser um negócio de particulares que montavam diferentes empresas especializadas em armamentos para abastecer os Estados que os demandam.

A privatização da produção do armamento transferiu também para as corporações que o fabricam um poder político acorde com o poder econômico que concentram. O poder econômico das corporações do armamento supera amplamente o nosso conhecimento e até a nossa compreensão, pois esse poder pertence aos “arcana imperi” ou segredo de Estado. Concomitantemente, a influência política e o poder de decisão dessas corporações na produção dos conflitos bélicos contemporâneos permanece sempre como uma sombra indecifrável. Sabemos que as ações dessas companhias sobem fortemente de valor quando há uma nova guerra e que perdem valor quando há grandes períodos de paz. Ou seja, os acionistas das corporações bélicas ficam muito insatisfeitos quando há períodos prolongados de paz em que não se gasta o armamento estocado e consequentemente as empresas não têm benefícios. O poder econômico da indústria armamentista nos principais países produtores de armamento chega a ter uma influência decisiva no PIB do país. Isso significa que para que a roda da economia do pais funcione bem, é importante que a indústria armamentista tenha grandes benefícios, o que por sua vez significa que sempre deve haver guerras ativas suficientes que permitam escoar o armamento produzido. Este perverso circuito entre os lucros do capital na indústria do armamento e a necessidade das guerras, é mais um fator que produz e alimenta a cultura belicista de nosso tempo.

5. A nova guerra fria

Uma quinta dinâmica que está impulsionando a cultura bélica de nosso tempo é a nova “carreira armamentista” que se tem desencadeado em diferentes latitudes do planeta. A nova carreira armamentista é quase que o resultado dos fatores bélicos anteriores. Muitos países, como ocorre com todos os países da União Europeia, decidiram aumentar seus orçamentos para rearme militar em grande escala prevendo já uma guerra de maiores dimensões. Países que durante décadas mantiveram uma tradição pacifista e consideraram o rearme militar um perigo potencial que estimula o surgimento das guerras, agora estão mudando para se alinhar num projeto de rearme em grande escala.  Esta dinâmica parece estar lançando aos diferentes países e blocos regionais a uma espécie de nova carreira armamentista, que por sua vez sempre tem resultados imprevisíveis. Na melhor das hipóteses, esta cultura belicista que se está enquistando em nosso tempo vai nos conduzir para uma nova guerra fria, com todas as consequências. E na pior das hipóteses, a loucura de rearme pode provocar um enfrentamento bélico em grande escala de consequências absolutamente imprevisíveis.

Pensarmos uma paz desarmada e desarmante, nas palavras do papa Leão XIV, exige uma confrontação pública que desconstrua a legitimidade dos argumentos da cultura belicista. Como sempre, os interesses bélicos estão associados à hegemonia do poder de determinados sujeitos históricos muito poderosos. Por sua vez, essa hegemonia não é absoluta, pode ser contestada sempre e quando se consiga arquitetar uma pressão social, pública ou popular suficiente para deslegitimar a loucura da cultura bélica. A cultura bélica nos conduz diretamente para o abismo da morte e destruição. Neste contexto se aplica a metáfora benjaminiana de que, para sobrevivermos, há que puxar o freio da história que nos conduz à catástrofe.

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