“Se a realidade se assemelha à guerra, extrema-direita e fundamentalismos ganham força porque o horizonte de direitos, proteção e cidadania cada vez mais parecem uma quimera para a maior parte das pessoas”, afirma o economista
“Se a realidade se assemelha à guerra, extrema-direita e fundamentalismos ganham força porque o horizonte de direitos, proteção e cidadania cada vez mais parecem uma quimera para a maior parte das pessoas”, afirma o economista
O que está em curso no mundo atual são “guerras de desordenamento global”, acompanhadas de um ingrediente novo: “a volta de um keynesianismo bélico”. O diagnóstico é do economista Daniel Feldmann e foi apresentado na palestra “Fundamentos econômicos das guerras contemporâneas. Ideologias, aceleração e antiprogressismos”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 10-04-2025.
Segundo ele, a “Europa se destaca” no novo realinhamento entre o capital e o Estado. “Estamos vendo a Europa propondo gastar um trilhão de euros no setor armamentista. O gasto militar está sendo defendido como uma saída econômica para as dificuldades de acumulação do capital, de valorizar e gerar emprego. Mas o problema é que, quando se elege a indústria bélica como um fator de recuperação das economias (isso sempre esteve presente nos EUA, mas na Europa isso é uma novidade na atual dimensão), começa-se a impulsionar a dinâmica econômica do mundo à produção de armas e, com isso, evidentemente, está se pavimentando o germe de novos conflitos. As armas têm de ser usadas. Aqui há uma semelhança com o antigo mercantilismo. O mercantilismo esteve ligado, na sua origem, à indústria militar, onde capital e Estado se aliaram para fazer a guerra, para vencer a luta encarniçada do jogo de soma zero”, menciona.
De acordo com Feldmann, as ideologias que ganham força no século XXI, “seja do progressismo de esquerda, seja de um centro liberal, são ideologias que não propõem mais conter os malefícios e excessos da nossa forma de reprodução social no chão da vida, no mundo do trabalho, na reprodução cotidiana. Essas forças sociais buscam governar através da guerra”. Nesse sentido, acrescenta, a lógica da guerra torna-se frequente tanto na reorganização e disputa geopolítica quanto nos discursos e relações internas nos países. “Estou falando de ideologias que, no mundo inteiro, do Norte ao Sul global, buscam propor uma espécie de coesão social em sociedades cada vez mais individualizadas, combinadas por uma concorrência feroz, sem proteção. Sociedades que já não têm coesão alguma, ganham alguma coesão a partir de inimigos internos e externos. Cria-se um sentimento de pertencimento, e canaliza-se o ódio social para esses inimigos”, sublinha.
A seguir, publicamos a conferência de Daniel Feldmann no formato de entrevista. O pesquisador discorre sobre as mudanças globais que conduziram o mundo ao atual estágio, desde o fim da Guerra Fria, passando pela era da globalização, até o momento presente, que ele denomina de neomercantilismo.
Daniel Feldmann (Foto: Pedro Aguiar | Brasil de Fato)
Daniel Feldmann é graduado em Economia e mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo – USP, e doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade de Campinas – Unicamp. É professor da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp.
IHU – O que o tarifaço anunciado pelo presidente Donald Trump indica?
Daniel Feldmann – A partir do tarifaço e as repercussões do governo Trump, estamos diante de uma série de fenômenos dos quais não temos como prever os resultados. Entretanto, é inegável que o que estamos vivendo terá consequências de longo prazo. Daí a ideia de falar em neomercantilismo de crise, que está ligado, do ponto de vista geopolítico, à ideia de guerras de desordenamento global. Vivemos num mundo perigoso, marcado pelo risco de guerra global entre grandes atores. Vivemos uma crise prolongada: uma crise do capitalismo e uma crise civilizacional.
IHU – Que tipo?
Daniel Feldmann – Vou circunscrever como vejo a vigência de uma crise de longo prazo, uma crise econômica que tem a ver com a ideia que Karl Marx desenvolveu, de uma contradição em processo no capitalismo. O trabalho vivo para produção de riqueza material está ficando cada vez mais obsoleto. É o que temos observado com a Inteligência Artificial (IA) e as novas tecnologias. Mas, ao mesmo tempo – e aí está a contradição –, para o capital se expandir, valorizar-se e aumentar de tamanho, ele não pode viver sem o trabalho vivo. Esse processo vem de décadas e é o pano de fundo das transformações econômicas importantes, como as que estamos vivendo nos últimos dias, com o segundo mandato de Trump.
As consequências da crise econômica de longo prazo são uma dificuldade de décadas de valorização produtiva dos capitais e uma contradição crescente entre a capacidade cada vez maior de produção de mercadorias. Mas essa capacidade de produção se defronta com uma capacidade limitada de realização das mercadorias. Ou seja, uma capacidade limitada de expandir os mercados, de haver demanda e consumo.
A consequência disso é que, do ponto de vista econômico, não há um padrão de acumulação de capital sustentável, como, por exemplo, houve na chamada Era do Ouro do capitalismo do pós-Guerra. Em função disso, vai se desenhando uma situação na qual fica cada vez mais evidente que não há lugar para todos. É como se o mundo fosse ficando cada vez mais curto em relação às pretensões de expansão do capital. Isso vai aparecer nas disputas entre os países e os capitais, mas também nas disputas entre os indivíduos, entre as pessoas.
Há uma relação entre a crise econômica e a crise civilizacional mais ampla, que é evidente nas mudanças ideológicas. Há uma crise da ideia de progresso, o reforço de ideologias de extrema-direita, de ódio social e diferentes formas de fundamentalismo por todo mundo. Logo, estamos diante de um processo de aceleração de tendências desagregadoras e destrutivas, tanto no plano da geopolítica quanto no plano interno das diferentes sociedades.
Desde a década de 1990, fomos levados a acreditar que estávamos vivendo o fim da história com a vitória dos mercados e da democracia liberal. Quando entrei na faculdade, esse era o discurso e o horizonte propostos. Não é exagero que o que estamos vivendo é uma espécie de fim do fim da história – parece que a história voltou a se mover – de uma forma disruptiva, potencialmente destrutiva e devastadora. O fim da história pode se tornar uma história do fim, seja pela dimensão ambiental e ecológica, seja pela questão bélica das guerras contemporâneas.
IHU – Como chegamos até aqui? O que aconteceu nas últimas três décadas?
Daniel Feldmann – Para entender as rupturas, as singularidades do nosso tempo, o que há de novo, os horizontes que estão postos, faço um resgate histórico e combino três elementos concernentes às questões que nos propomos debater aqui. Eu divido essa breve periodização em três períodos.
O primeiro é o da Guerra Fria. Trata-se de um período de expansão econômica em todo o mundo. Nos chamados três mundos de então – o mundo rico, as experiências estatistas lideradas pela União Soviética e o terceiro mundo, com seus projetos nacionais de desenvolvimento – observa-se, grosso modo, um período de expansão e acumulação de capital, de expansão da produção, um período em que a ideia de planejamento econômico se fazia presente. Mais importante de tudo, tratava-se de um mundo conturbado, cheio de guerras, mas um mundo no qual a ideia de progresso estava no horizonte e parecia factível. Era a ideia de que as gerações vindouras viveriam melhor, haveria uma capacidade de integrar o conjunto dos habitantes da Terra no circuito econômico, na dinâmica social e, portanto, não haveria exclusão. Essa ideia estava presente naquele momento, diferentemente do que vivemos hoje.
Havia essa dinâmica econômica e social ligada à Guerra Fria. Existia também um risco – que agora volta – de guerra entre as grandes potências. Mas o que efetivamente existia eram os conflitos na chamada periferia do capitalismo, nas áreas de influência das grandes potências de então. Podemos citar a guerra do Vietnã, as intervenções americanas na América Latina, o apoio às ditaduras militares. Do ponto de vista dos soviéticos, havia as intervenções deles no bloco soviético, com intervenções militares e a intervenção militar no Afeganistão.
Notemos que se trata de um período em que sempre houve um interesse econômico, mas esse interesse econômico é mediado e justificado pela luta ideológica. As guerras e os conflitos tinham um pano de fundo ideológico, onde uns diziam que o progresso viria por meio do modelo estatista soviético (o chamado socialismo real) e, do lado ocidental, por meio do capitalismo de orientação política liberal.
No entanto, e aqui sigo Robert Kurz, a despeito da luta ideológica, muitas vezes intensa e arraigada, o modelo estatista soviético não deixava de ser, ele mesmo, uma personificação do capital no sentido de que os imperativos da mercadoria, do dinheiro, da acumulação sem fim e da concorrência econômica se faziam presentes. É importante registrar esse aspecto porque é ele que ajuda a explicar a queda da União Soviética que, em boa medida, ocorre porque os EUA e o Ocidente capitalista vencem os soviéticos no plano da concorrência técnica e econômica. Do ponto de vista militar, esta concorrência se expressou no projeto do presidente Ronald Reagan, em “Guerra nas Estrelas”, onde a sofisticação tecnológica e militar dos americanos acabou com as veleidades dos soviéticos de acompanhar aquele padrão. Esse não foi o único fator, mas contribuiu para a Perestroika.
Segundo Kurz, o fim da Guerra Fria e a suposta vitória do capitalismo ocidental e dos mercados são uma vitória de Pirro. Na verdade, a derrubada do regime soviético sinalizava o prenúncio de uma era de grandes dificuldades de expansão capitalista. Ou seja, dificuldades de prosseguir valorizando o valor. Isto significa que a queda da União Soviética também está ligada a transformações econômicas e técnicas no Ocidente, que iam tornando o trabalho vivo obsoleto e, por isso dificultavam, contraditoriamente, o processo de valorização e expansão do capital.
É o que chamei de contradição no processo do capital. Trata-se de uma espécie de vitória de Pirro porque à época foi cantada como vitória dos mercados, com a ideia de que o mundo estava se transformando numa aldeia global.
O segundo período é o da globalização, que vai dos anos 1990 até o nosso tempo. Do ponto de vista geopolítico, ele é aberto por uma liderança americana totalmente inconteste em todos os planos. Esse período é marcado pela queda da União Soviética, pela adesão paulatina porém constante da China ao capitalismo e ao mercado global, pela guerra do Iraque em 1991, que os russos apoiaram e a China não fez nenhuma oposição. Essa fase da globalização é inaugurada com a vitória dos mercados e com a hegemonia em todos os planos dos EUA e seu projeto.
Mas voltemos à questão: tratava-se, do ponto de vista da dinâmica capitalista, de uma vitória de Pirro, por que a questão persiste: qual dinâmica de acumulação de capital vai sustentar a vida econômica? Sabemos que esse processo, nas últimas décadas, é marcado pelo processo de financeirização do capitalismo. A dinâmica das bolhas de crédito e ativos tem sido o verdadeiro motor econômico da economia global. Tudo se passa como se a dificuldade de expansão do valor tornasse desejável uma espécie de fuga para frente, que é a busca de acumulação de riqueza na sua forma financeira.
Para termos ideia da expansão financeira, nos anos 1970 a relação entre dívida e produção global, ou seja, entre o montante de dívida total no mundo e a produção de mercadorias, era de 110%. Em 2020, esse número é 250%. É um mundo cada vez mais atolado em dívidas. Isso tem a ver com a lógica da financeirização, que marca o capitalismo global nas últimas décadas. Em todo caso, a fuga para frente, num momento, dá certo ou, pelo menos, ameniza problemas estruturais no plano do capital. A expansão financeira coloca sobretudo, mas não apenas, os EUA como o grande motor da demanda global, do gasto global, apoiado no papel que o dólar tem como moeda de reserva.
Os EUA gastam muito, têm um déficit público e comercial gigantesco – no Brasil, nunca seria permitido um déficit público e comercial dessa magnitude –, inclusive para conformar seu complexo militar e industrial. A expansão da demanda a partir dos EUA passará por um momento de sinergia com o atual grande inimigo do país, a China. Hoje, pode parecer estranho, mas não muito tempo atrás, até a crise de 2008, muitos economistas elogiavam o chamado G-2, uma espécie de sinergia positiva entre os EUA e a China, que estava contribuindo, até a crise pelo menos, para um bom desempenho do capital global.
Como sabemos, a China virou a grande fábrica de mais-valia global e conseguiu amenizar os problemas estruturais do capitalismo com isso, recebendo investimento estrangeiro, vendendo produtos baratos pelo mundo inteiro, aplicando a sua montanha de dólares – obtida pelas exportações dos EUA –, ajudando a manter os juros baixos e a própria moeda americana valorizada. Ou seja, a China ajudou a baratear as importações americanas, a manter o dólar forte, a financiar o governo americano e animou a expansão chinesa para outros países, como o Brasil, que depende da venda de commodities.
Num primeiro momento, parece que a China ajudou a amenizar a crise de longo prazo do capitalismo, a partir da sua inter-relação com a própria expansão do crédito financeiro americano. Entretanto, conhecemos os limites disso: as crises de 2008 e 2020, ligada à Covid-19, são as contradições que persistem. O mundo recebeu uma montanha de riquezas e ativos financeiros, que são bem maiores do que a produção real de mercadorias. A riqueza financeira tem uma base e um lastro frágeis, justamente pela dificuldade de valorização produtiva desses capitais. Não é à toa que vemos cada vez mais crises financeiras, os estados nacionais intervêm, salvando o sistema financeiro, comprando títulos podres e por aí vai. É nesse castelo de cartas precário que foi se produzindo o capitalismo.
Robert Kurz tem uma ideia muito interessante e útil para refletirmos sobre o período da globalização. O que havia de mais significativo, em termos militares, era o que chamavam de dinâmica de guerras de ordenamento mundial. Os EUA atuavam não pelo interesse direto e imediato, mas para sustentar uma dada ordem do capitalismo global, uma dada estrutura: de um lado, favorecia instituições globais, de outro lado, ao mesmo tempo, quando necessário, agiam como uma espécie de polícia do mundo para tentar disciplinar aqueles que apareciam como desordenadores da ordem que eles tentavam constituir.
No fundo, quando os EUA fazem as guerras no Iraque e Afeganistão, a preocupação deles não reside tanto em garantir o seu próprio território, mas mostrar para o resto do mundo, inclusive para seus aliados, Japão e Europa, que o fornecimento global de petróleo depende da força americana. O interesse americano se expressava de maneira indireta – com a qual Trump quer romper completamente agora – ao buscar conduzir o papel de liderança global para se afirmar e criar as condições geopolíticas e sociais para uma dinâmica global de produção de capital liderada pelos EUA. Até alguns anos atrás, não estava no horizonte americano o conflito aberto entre potências, que volta com Trump.
No período da globalização, existem guerras, como as do Iraque e do Afeganistão, mas não há uma ameaça entre China e EUA, ou EUA e China. Por sua vez, a Rússia já era uma força militar importante, intervindo militarmente na Chechênia e na Geórgia.
No tempo presente, vivemos um neomercantilismo de crise. A sinergia do G-2 deixa de existir e vira seu contrário. A grande disputa econômica e geopolítica hoje é entre EUA e China. A China “comunista” tem tal sucesso com seu modelo capitalista, que, em vez de suscitar uma sinergia ou colaboração, passa a ser visto como ameaça ao concorrer cada vez mais em espaços-chave no Ocidente. A força chinesa reforça a ideia de que há menos espaço para todos e a concorrência vai ficando mais encarniçada. Isso remete à ideia de um mercantilismo.
O objetivo do tarifaço de Trump – e toda a visão do presidente – tem a ver com a visão do mercantilismo. O mercantilismo era o chamado jogo de soma zero. A doutrina mercantilista é aquela que não se propõe a um ganho generalizado de produtividade. Tudo que Trump tem feito tem a ver com a dinâmica mercantilista de um jogo de soma zero. Os EUA precisam exportar mais do que importam. Daí o protecionismo. Precisam recuperar sua indústria e os empregos, cuja força perdeu para a Ásia. Precisa atrair investimentos para dentro da cortina de tarifas.
Recentemente, Trump disse que um país que não produz aço não é um país. Ele destaca a importância de matérias-primas bélicas, militares. Aliados históricos, como a Europa e o Japão, estão sendo acusados de roubarem os EUA e, por isso, precisam aceitar as tarifas. Ao mesmo tempo, há uma busca agressiva por domínio tecnológico, patentes e propriedade intelectual entre EUA e China. Patentes e propriedade intelectual não criam valores, mas são uma forma de extrair renda.
O fundamental é notarmos que, se na época da globalização – ao menos na retórica – a expansão global da riqueza e a prosperidade comum eram defendidas, hoje, o discurso muda completamente. Não é mais a multiplicação da riqueza que está em discussão, mas a sua distribuição na base da pressão. Se pensarmos o capital num sentido abstrato e ideal, o que está acontecendo é totalmente antagônico e prejudicial para o capital. Essa é uma das contradições.
Outra contradição de todo esse processo é que Trump quer jogar para o espaço tudo que os EUA fizeram em termos de serem os grandes arautos de instituições e formas de cooperação internacional. Como não há um padrão global sustentável e, ao mesmo tempo, há o problema dos empregos nos EUA, na cabeça do trumpismo torna-se uma ilusão a ideia de que a colaboração entre os países possa ter resultado. Pelo menos no curto prazo, isso não vai dar resultado. Desse ponto de vista eles têm, à sua maneira, razão. Não acho que o trumpismo vai dar certo porque há uma crise de direção das elites. Mas a justificativa, a busca aventureira de tentar mudar e quebrar todas as regras, tem o sentido de ser uma resposta de curto prazo à crise. É uma força que Trump quer mostrar, mas que, no fundo, é uma fraqueza. Do ponto de vista da dinâmica econômica do mundo, a proposta trumpista suscita uma dinâmica em que o mundo virou uma arena de amigos versus inimigos. Não tem colaboração e não tem regra.
O assessor econômico de Trump, Stephen Miran, lançou um documento em que diz explicitamente que a tarifa é uma forma de fazer barganha e chantagem sobre os países. Quem for amigo dos EUA terá tarifa menor, e quem aceitar a política americana entra – ele usa essas palavras – no “nosso guarda-chuva militar”.
Há, claramente, uma militarização das relações econômicas entre os países. Esse é um sintoma claro do mercantilismo. É uma dinâmica explícita de que quem pode mais, consegue levar. Toda a ordem internacional que, segundo o discurso, levaria ao progresso, está sob questão por conta da política do governo Trump, inclusive, com riscos em relação ao próprio papel do dólar na economia global.
Outra proposta do assessor econômico de Trump é desvalorizar o dólar de forma controlada. Todos os países baixariam um pouco o valor do dólar, porque é importante ter um dólar mais barato, só que esse processo pode aprofundar um tsunami financeiro. As pessoas podem sair vendendo títulos em dólar, os juros podem disparar e o valor do dólar cair. A proposta do Miran é tentar fazer um grande acordo no qual os países sejam obrigados a comprar títulos da dívida americana compulsoriamente, sem pagamento de juros. Por isso, eu digo que é uma crise de direção. Em nome do “Make America Great Again”, estão jogando para o ar uma série de práticas e instituições que sustentaram o papel dos EUA. O título americano sempre foi crucial na dinâmica da financeirização; o dólar sempre esteve ligado à força militar americana. É um cenário muito contraditório.
Por fim, uma das propostas de Trump é a ação direta de conquista: Groenlândia, Canadá, Panamá, transformar Gaza em um resort, expulsando ou não os moradores da região, fazer a Ucrânia pagar pela guerra, tomando os minerais ucranianos. É a pura lógica da espoliação, o jogo de soma zero: para eu ganhar, alguém precisa perder. Quer dizer, estão jogando no lixo séculos de ideologia liberal e econômica, isto é, a ideia de que todos vão ganhar com a chamada mão invisível do mercado e isso vai produzir a riqueza das nações. Só o mero fato de tudo isso estar em pauta é uma mudança qualitativa na conjuntura.
IHU – Numa situação como essa, como fica a economia global e a geopolítica?
Daniel Feldmann – Óbvio que é difícil fazer previsões. É fato que a ideia de uma certa desglobalização já estava posta com a pandemia, com o começo da guerra da Ucrânia, e o próprio governo Biden tinha avançado nessa direção, mas é inegável que há uma mudança de qualidade. Quando os EUA adotam uma política, essa política pode ter força globalmente. Ou seja, pode se espalhar. Não temos como fazer previsão, mas podemos traçar alguns cenários importantes.
IHU – Quais cenários?
Daniel Feldmann – Os EUA estão tarifando os países asiáticos. O que os asiáticos vão fazer numa situação como essa? Serão impulsionados a redirecionar todo excesso de mercadorias para o mundo todo. A Europa não só anunciou que taxaria os EUA, como está se preparando para taxar a própria China. Num mundo de soma zero é possível que todo mundo adote esse horizonte de fechamento, isolamento, de empurrar a crise para o vizinho, tal qual na década de 1930.
Por outro lado, já vimos que Trump recuou. Pode ser que não se generalize a guerra tarifária. Pode ser que haja resistência interna nos EUA, como uma resistência global. Foi sintomático China, Japão e Coreia anunciarem uma resposta conjunta aos EUA. Do ponto de vista geopolítico, Japão e Coreia foram apoiados pelos EUA contra os chineses soviéticos. É uma mudança. Tudo parece meio invertido no mundo.
Fechamento, protecionismo e caos geopolítico
Mesmo que a aventura trumpista seja enquadrada de alguma forma, me parece que é inegável o fato de que essa atitude e os reflexos dela vão obrigar os atores a se reposicionarem. Nesse cenário de mais incerteza, é de se esperar disputa e neomercantilismo, que haja uma corrida ainda maior por recursos naturais, por patentes, pela renacionalização de cadeias produtivas.
O que está acontecendo no mundo exige uma nacionalização e estatização das respostas. É incontornável que isso aconteça, mesmo que Trump recue. Os países já estavam pensando mais em si mesmos, em se fechar e em proteger-se. Mesmo que não tenha guerra tarifária nem caos nos mercados financeiros, o mundo está se encaminhando para isso.
Em todo caso, é inegável que existe uma aceleração do caos geopolítico e da guerra, ou, no mínimo, de um potencial acelerado de guerra. É muito emblemática a aproximação Putin-Trump na questão da Ucrânia. Nos anos 1970, Richard Nixon se aproximou da China contra a União Soviética. Trump está querendo se aproximar da Rússia contra a China. Mas, ao mesmo tempo, o que Trump está fazendo é uma ratificação do que já era uma guerra neomercantilista de tomada de território.
Está sendo criado um mundo sem regras, onde vai imperar o vale tudo. Não estou querendo dizer que no período da globalização e das guerras de ordenação global as coisas estavam certas. Estou sugerindo que estamos entrando num momento histórico mais incerto e perigoso, com conflagração econômica e geopolítica, ruptura de regras e vale tudo generalizado. É inevitável que, numa situação como essa, haja uma tendência maior de conflito entre as razões de Estado.
IHU – Outros momentos históricos podem ajudar a compreender o atual momento?
Daniel Feldmann – A Primeira Guerra Mundial não era explicitamente desejada por ninguém. Mas foi se criando uma série de tensões, conflitos e alianças, que tornou o início da guerra algo inevitável, à revelia das intenções dos atores. Temo que estejamos vivendo um mundo como esse. O risco de conflitos ainda maiores e generalizados cresce diante da dinâmica do mundo. Há várias questões pendentes que se tornam mais explosivas na conjuntura atual: o mercantilismo de crise, a cultura geopolítica e o vale tudo generalizado.
Como vai ficar a América Latina? Vai haver intervencionismo? No caso do Oriente Médio, Trump vai continuar dando aval para Netanyahu bombardear Gaza e aumentar a chance de recolonização e uma limpeza étnica na região? Há o risco de uma guerra entre Israel e Irã. Um país que tem bomba atômica e outro que praticamente já tem ou está quase tendo. É de se esperar que vão crescer as ameaças da China sobre Taiwan. A Síria, depois da mobilização popular que derrotou Bashar al-Assad, que foi o maior responsável pelo morticínio no país, com a ajuda do Irã e de Putin, voltou a recair em conflitos étnicos e passa a ser diretamente influenciada pela Turquia, que continua bombardeando os curdos. Tudo isso para não falar nas guerras esquecidas, que não têm o privilégio de estar na mídia, mas que nesse momento, na África, estão ceifando milhares de vidas no Sudão, na Etiópia e no Congo.
A preparação para a guerra ou a guerra em si é um ingrediente potencialmente explosivo dessa desordem. O que está em curso não é mais a guerra de ordenamento da globalização, mas guerras de desordenamento global, onde um ingrediente novo é a volta de um keynesianismo bélico. Nesse cenário, a Europa se destaca. Estamos vendo a Europa propondo gastar um trilhão de euros no setor armamentista. O gasto militar está sendo defendido como uma saída econômica para as dificuldades de acumulação do capital, de valorizar e gerar emprego.
Mas o problema é que quando se elege a indústria bélica como um fator de recuperação das economias (isso sempre esteve presente nos EUA, mas na Europa isso é uma novidade na atual dimensão), começa-se a impulsionar a dinâmica econômica do mundo à produção de armas e, com isso, evidentemente, está se pavimentando o germe de novos conflitos. As armas têm de ser usadas. Aqui há uma semelhança com o antigo mercantilismo. O mercantilismo esteve ligado, na sua origem, à indústria militar, onde capital e Estado se aliaram para fazer a guerra, para vencer a luta encarniçada do jogo de soma zero. Esse é o cenário da dinâmica de acumulação do capital, da geopolítica, da guerra.
IHU – Como fica a ideia de progresso neste cenário?
Daniel Feldmann – Tudo que estamos discutindo tem a ver com uma crise do progressismo e da ideia de progresso. Minha impressão é que a lógica autofágica destrutiva tende a se reforçar não apenas entre os países, nesse mundo sem regras, mas também internamente em cada sociedade. Em cada sociedade fica cada vez mais claro que não tem lugar para todo mundo.
Quando uso ‘neomercantilismo’ como conceito para pensarmos o momento que estamos vivendo, falo de um entrelaçamento entre Estado e capital, de uma renacionalização e reestatização da dinâmica econômica no topo, que tende a acontecer em maior ou menor grau. Agora, quando olhamos para o andar de baixo, sobretudo no mundo do trabalho, é o velho neoliberalismo que persiste. Não acredito que o neoliberalismo acabou. Se olharmos para o mundo do trabalho, a concorrência como lógica da vida, que guia as lógicas do mercado de trabalho, continua mais ativa do que nunca. É por isso que a reprodução social internamente nos países também tende a se assemelhar, ao menos metaforicamente, à guerra. Trata-se, igualmente, de um mundo sem regras, com a desregulamentação, a informalidade e a ausência de direitos.
Justamente nesse quadro, como fica o horizonte de progresso que existia no pós-Segunda Guerra? A própria palavra progresso tem sumido do cardápio do debate. O que vemos no mundo é o crescimento de ideologias de extrema-direita, autoritárias, fundamentalistas, que crescem nesse processo. É como se a história estivesse, infelizmente, a favor das conformações ideológicas. Estou falando de ideologias que, no mundo inteiro, do Norte ao Sul global, buscam propor uma espécie de coesão social em sociedades cada vez mais individualizadas, combinadas por uma concorrência feroz, sem proteção. Sociedades que já não têm coesão alguma, ganham alguma coesão a partir de inimigos internos e externos. Cria-se um sentimento de pertencimento e canaliza-se o ódio social para esses inimigos. Além disso, as ideologias que ganham força no mundo todo, seja do progressismo de esquerda, seja de um centro liberal, são as que não propõem mais conter os malefícios e excessos da nossa forma de reprodução social no chão da vida, no mundo do trabalho, na reprodução cotidiana. Essas forças sociais buscam governar através da guerra. Por isso se trata de uma aceleração: aceleração da geopolítica e da conflitividade social interna a cada país.
Se a realidade se assemelha à guerra, a extrema-direita e fundamentalismos ganham força porque o horizonte de direitos, proteção e cidadania cada vez mais parecem uma quimera para a maior parte das pessoas. Para usar uma expressão dos velhos frankfurtianos, é a produção desejante do existente que dá força para essas ideologias. Se o existente é o antiprogressismo, vemos suas consequências no reforço das forças políticas e ideológicas.
Existe uma retroalimentação de um cenário de guerras externas ou de preparação para as guerras, com uma lógica muito conflitiva que, pelo menos metaforicamente, é uma guerra interna a cada país. As coisas se retroalimentam. É como se houvesse uma implicação entre uma agressividade externa e interna, tomada como a única forma de garantir a sobrevivência num mundo sem regras. Do ponto de vista ideológico, a normalização da força, da disputa encarniçada e, no limite, da violência, se desenvolve e vira a própria razão última da vida.
Não à toa, têm crescido políticos de forma demagógica que buscam aparecer como os defensores internos de cada sociedade e os defensores dos países diante desse cenário autofágico da geopolítica global. Existe uma relação entre a política econômica do Trump, que é a mesma política de estigmatizar e expulsar imigrantes. Existe uma relação entre a reaproximação de Putin e Trump e dos aliados da extrema-direita europeia. A extrema-direita europeia tende a nadar de braçada nesse novo cenário. Quem está propondo o keynesianismo bélico é o centro da Europa: França, Alemanha... Mas é evidente que isso é música aos ouvidos da extrema-direita europeia, com seu discurso de agressividade e de preparação para a guerra.
No mundo inteiro a coisa tende a ficar pior. O neomercantilismo de crise e suas consequências é um sintoma de que a sociedade de mercadorias se esgotou, suscitando a sua dimensão de pura violência, sem regras, sem formas de contenção e sem a busca por conter e minimizar os seus efeitos mais negativos. Quando Marx fala da mercadoria no primeiro capítulo de O Capital, ele usa a expressão “salto mortal da mercadoria”. Na medida em que a vida é cada vez mais subordinada à lógica da mercadoria, a própria realização da vida está subordinada à realização das mercadorias. Realização no sentido de tornar a mercadoria real, de conseguir vendê-la. Quando não se consegue vender a mercadoria, seja um produto ou a própria força de trabalho, quem morre, no limite, é o ser humano, o detentor dessa mercadoria. O mundo está cada vez mais curto, menor, está cada vez mais difícil todo mundo conseguir vender a própria mercadoria. Vemos as consequências disso na geopolítica, na política interna de cada país, no andar de baixo e no andar de cima. A lógica acelerada, sem mediações, é o “salto mortal” do salve-se quem puder que tende a dominar os países e as nossas vidas. Sei que termino não com uma visão otimista, mas é como consigo enxergar o processo que estamos vivemos.