Situação do mundo: crise civilizacional, drama ou tragédia? Artigo de Leonardo Boff

Foto: Ante Hamersmit | Unsplash

20 Julho 2022

 

"A evolução não é linear. Em momentos de alta complexidade e de grande caos pode dar um salto para uma nova ordem e conquistar um outro equilíbrio. No nosso caso não é impossível. Mas seguramente se fará com o sacrificio de muitas vidas também humanas. É o nosso drama", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor. 

 

Eis artigo. 


Sigam-me neste pensamento: alguém pode dizer para onde vamos? Nem o Dalai Lama, nem o Papa Francisco nem alguma autoridade o poderá dizer. No entanto temos três advertência sérias: uma do Papa Francisco em sua última encíclica Fratelli tutti (2020): “Estamos no mesmo barco: ou no salvamos todos ou ninguém se salva”(n.32). Outra também com a mais alta autoridade, a Carta da Terra de 2003: “a humanidade deve escolher o seu futuro; a escolha é essa: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros ou arriscar a nossa destruição e a diversidade da vida” (Preâmbulo). A terceira veio do Secretário Geral da ONU António Guterres em meados de julho deste ano de 2022 num conferência em Berlim sobre mudanças climáticas: “Nós temos uma escolha. Ação coletiva ou suicídio coletivo. Está em nossas mãos.” A maioria não se sente no mesmo barco nem cultiva o cuidado e sequer elabora ações coletivas.

 

Consideremos alguns fenômenos: o Brasil é perpassado por uma onda de ódio, de mentiras e de violência contra uma gama imensa de pessoas, covardemente desprezadas e difamadas, onda incentivada pelo Presidente que elogia a tortura, as ditaduras, constantemente viola a Constituição. Sem nenhuma prova questiona a segurança das urnas. Convoca todos os embaixadores para falar mal de nossas instituições jurídicas e dá a entender que, caso não se reeleja, dará um golpe de estado. Comete um crime de lesa-pátria, motivo para impugnar sua candidatura. Nem nos referimos à fome e o desemprego de milhões que campeiam no país.

 

A situação ecológica do mundo não é menos preocupante: em pleno verão europeu o clima chegou a 40 graus ou mais. Há incêndios praticamente em todos os países do mundo. São os eventos extremos agravados pelo aquecimento global. Assistimo-os em nosso país neste corrente ano: grandes enchentes no sul da Bahia, no norte de Minas, do Rio Tocantins e Amazonas e trágicos deslizamento de encostas em Petrópolis e Angra dos Reis, com inúmeras vítimas e simultaneamente prolongada estiagem no sul.

 

17 focos de guerra no mundo, o mais visível de todos na Ucrânia atacada pela Rússia com alto poder de destruição. Gravíssima foi a decisão dos países ocidentais, englobados pela Otan que tem os EUA como seu principal ator, ao estabelecer “um novo compromisso estratégico” de passar de um pacto defensivo para um pacto ofensivo. Declara ipsis litteris a Rússia como inimigo presente, e mais adiante a China. Não se trata de um concorrente ou adversário, mas de inimigo que na perspectiva do jurista de Hitler Carl Schmitt, cabe combater e destruir, usando todos os meios inclusive os militares e, no limite, os nucleares. Como apontou o reconhecido economista ecológico Jeffrey Sachs, reforçado por Noam Chomsky: se isso ocorrer seria o fim da espécie. Isto significaria a grande tragédia.

 

Talvez a ameaça mais eminente nos vem do já citado aquecimento global acelerado. Com o esforço conjugado de todo os países dever-se-ia limitar o aquecimento a 1,5 grau Celsius até 2030. Agora constata-se que se acelerou com a entrada maciça do metano devido ao degelo das calotas polares e do permafrost. Antecipou-se para 2027. O último relatório em tres volumes do IPCC publicado há poucos meses advertiu que poderá vir bem antes. Há o risco notado já anteriormente pela Academia Norte-americana de Ciências de um “salto abrupto” que pode elevar o clima a 2,7 ou mais graus Celsius. A conclusão que o IPCC chega é “que os impactos em todo mundo constituem uma ameaça à humanidade”. Grande parte dos organismos vivos não consegue se adaptar e acaba desaparecendo. Da mesma forma multidões humanas podem sofrer terrivelmente e também morrer antes do tempo.Tal evento pode ocorrer nos próximos três a quatro anos. Não parece que os analistas e planejadores tomam em conta essa eventualidade.

 

Daí se entendem que alguns cientistas em clima, sejam tecnofatalistas e céticos. Afirmam que com as bilhões de toneladas de CO2 e de outros gases de efeito estufa já acumulados na atmosfera (eles permanecem cerca de 100 anos) não temos condições de impedir o aquecimento global. Chegamos tarde demais. Os eventos extremos fatalmente virão, cada vez mais frequentes e danosos, devastando partes dos biomas terrestres e das costas marítimas. Pelo fato de dispormos de ciência e de tecnologia podemos apenas mitigar os efeitos nocivos mas não de evitá-los. Eis uma crise de nosso tipo de civilização.

 

Acresce a este quadro dramático, a Sobrecarga da Terra: consumimos mais do que ela nos pode oferecer, pois necessitamos mais de uma Terra e meia (1,7) par atender as demandas do consumo humano, especialmente, aquele suntuoso das classes opulentas.

 

Diante deste cenário inegavelmente dramático que pensar? Talvez tenha chegado a nossa vez de sermos excluidos da face da Terra? Dada a voracidade do processo produtivista mundializado que não conhece moderação, a cada ano estão desaparecendo cerca de 100 mil espécies de organismos vivos. Aqui cabem as palavras do eminente naturalista francês Théodore Monod, por nós algumas vezes citado:” somos capazes de uma conduta insensata e demente; pode-se a partir de agora temer tudo, tudo mesmo, inclusive a aniquilação da raça humana: seria o justo preço de nossas loucuras e de nossas crueldade”. Essa opinião é compartilhada por outras notáveis personalidades como Toynbee, Lovelock, Rees, Jacquard, Chomsky entre outros.

 

Não podemos travejar como será nosso futuro. Mas ele não pode ser o prolongamento do presente. A natureza da lógica capitalista não mudará senão a obrigaria a renunciar de ser o que é e quer: acumular ilimitadamente sem cuidar das externalidades.

 

Como mostrou Hans Jonas em seu livro O Princípio Responsabilidade, o fator medo e pavor pode ser decisivo. Ao dar-se conta de que pode desaparecer, o ser humano fará tudo para sobreviver, como os navios antigos que sob risco de naufragar, jogavam toda a carga ao mar. Haveria mudanças radicais especialmente no modo de produção e no consumo frugal e solidário.

 

Existe ainda o princípio do imponderável e do inesperado da mecânica quântica. A evolução não é linear. Em momentos de alta complexidade e de grande caos pode dar um salto para uma nova ordem e conquistar um outro equilíbrio. No nosso caso não é impossível. Mas seguramente se fará com o sacrificio de muitas vidas também humanas. É o nosso drama.

 

Por fim, há a esperança teologal, o legado judaico-cristão, que deve ser entendido também como uma emergência do processo evolucionário e não como algo exógeno. Ela afirma o princípio da vida e do Deus vivo e doador da vida que criou tudo por amor. Ele poderá criar condições para os seres humanos se converterem para um outro rumo de seu destino e assim poderem se salvar. Mas “chi lo sa”? A nós caba o esperançar de Paulo Freire, quer dizer, criar as condições para a utopia viável, a esperança, de que o inesperado acontecerá e que a vida sempre terá futuro e está destinada a mudar para continuar e continuar brilhando.

 

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