Valery e Carl Schmitt: a exceção é a desordem

Imagem: YouTube

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

23 Agosto 2016

"Da parte de quem quer, mesmo, combater a corrupção – doa a quem doer – distribuir renda e viver num país democrático mais coeso e feliz, temos que inventar o impossível. Mobilizar todas as energias da sociedade – da academia aos movimentos sociais, dos políticos honestos às frações de partidos e organizações da sociedade civil – para ajustarmos um programa democrático e social para recuperar a política como o espaço da dignidade e do conflito. Do consenso e da hegemonia legítima. A mídia oligopólica se apropriou da agenda política do país e fez um novo Governo. O capital financeiro global se apropriou do Estado e vai, gradativamente, eliminando as suas funções públicas. Se a ordem e a desordem são ambas problemáticas, temos que fundi-las num novo processo Constituinte, para que elas possam reinaugurar o seu convívio dentro da República", escreve Tarso Genro, ex-governador do Estado do Rio Grande do Sul, em artigo publicado por Sul21, 22-08-2016.

Eis o artigo.

Por mais que se queira separar o Direito da Política, tanto para compreender as questões jurídicas mais importantes em profundidade, como para aproximar-se com intimidade dos seus conflitos, a história repõe – com intermitência e regularidade – a unidade incindível de ambas, em momentos críticos, tanto das ditaduras, como dos processos democráticos. O Relatório Kruschev, sobre o que passaram a ser os “crimes de Stálin” – que antes eram mera defesa política da “exceção” contra os inimigos internos -; o julgamento dos presumidos autores do Incêndio do Reichstag, no ascenso hitleriano; a aplicação (ou não) da Lei Anistia aos torturadores, no nosso país, são momentos exemplares em que Política e Direito se convertem um no outro – e vice versa – cuja fusão acaba deitando a sua influência por largos períodos históricos.

O livro brilhante do Professor Gilberto Bercovici (“Constituição e Estado de Exceção Permanente” – Azougue Editorial, 2004) foi a obra que me chamou atenção, há um ano atrás, para o que apontei na oportunidade como processo de “exceção não declarada”, que iniciara a sua instauração no Brasil. A partir dali entendi que ficava claro que os políticos liberais da direita compreenderam que chegara o momento em que “as verdadeiras questões da política (…) passavam a se expressar como “questões sobre a unidade e o conflito, não sobre a liberdade dos indivíduos”. Estes tinham escolhido, nas eleições de 2014, uma mandatária para mais 4 anos que precisava ser retirada do poder.

Tratava-se do seguinte: a Política, como expressão da liberdade dos indivíduos, para o campo do Governo e da esquerda, já estava resolvida no resultado das eleições presidenciais. Neste resultado, pois, é que deveríamos nos agarrar para defender a legitimidade e a legalidade do mandato da Presidente Dilma. De outra parte, para a direita liberal -aliada a grupos autoritários e fascistas- as questões fundamentais da política se transladavam, rapidamente, do campo da soberania popular, para o campo da “unidade e do conflito”. Isso significaria, especialmente, levar ao poder quem teria capacidade (ou não a teria), para promover o “ajuste”. Como se viu do resultado deste processo, a justa indignação com a corrupção que envolveu vastos setores das classes médias e dos mais pobres do país, tornou-se mero instrumento para levar ao poder quem poderia “decidir” sobre o ajuste. Não um campo composto para combater a corrupção.

Resultado: para este campo da direita liberal, a “capacidade de decidir” – que segundo Carl Schmitt é o que revela a essência do poder soberano – passou a ser vinculada à capacidade de realizar o ajuste, independentemente de que tivesse origem na soberania popular. E para o campo do Governo, a “capacidade de decidir” permaneceu ancorada na formalidade do processo eleitoral, pois este representava a liberdade, expressa pela forma da soberania popular. O que não levamos em conta, nesta esquina da história, é que a soberania popular – para os grupos sociais que detém a maior parte da renda nacional – é puro instrumento, não fonte de legitimidade, quando os seus privilégios e o seu modo de vida passam a ser instabilizados, como já estava insinuando a crise

Nos Governos do Presidente Lula, em função das condições especiais da economia mundial e da correta compreensão do Presidente, de que aquele era um momento possível para distribuir renda sem muitos conflitos, a soberania popular foi um interlúdio amoroso, que permitiu o país avançar mais unido. Esta, todavia, deixou de ser importante para os mais ricos, quando se esgotaram as condições que permitiram que os “banqueiros nunca ganhassem tanto dinheiro como agora” – como dizia Lula – não sem um certo orgulho. A partir da crise, para pelos menos estabilizar a renda já distribuída, seria necessário redistribuir a responsabilidade com as receitas da União, taxando, por exemplo, quem ganhasse mais de um milhão de dólares por ano.

Os governos da Presidenta Dilma, por uma série de limitações políticas e convicções confusas sobre o estatuto do político – num período em que o máximo de aspiração possível para esquerda é uma democracia social fundada numa cooperação com soberania – não fizeram o “ajuste dos ricos”. Também não propuseram um ajuste alternativo para continuar distribuindo a renda e não buscaram – quando o modelo já dava sinais de esgotamento – uma recomposição do sistema de alianças, que fora repassado a ela, de forma mecânica, pelos nossos governos anteriores.

Como nota o professor Bercovici – apresentando as fórmulas de Schmitt – “definir soberania como decisão sobre o estado de exceção significa dizer que o ordenamento está à disposição de quem decide”. Com verdades e inverdades, processos devidos ou inventados, conduções coercitivas, prisões legais e ilegais, vazamentos seletivos infames e delações “premiadas”, foi se aniquilando a legitimidade da soberania popular pelo voto, transferindo o poder soberano para a mera “capacidade decidir” e implementar o “ajuste”. O mesmo “ajuste” que a soberania popular se negara a aceitar nas eleições presidenciais!

Em 20 de agosto, no Blog do Noblat, está uma “Carta de Buenos Aires”, da jornalista Gabriela Antunes, que noticia que o ajuste argentino aumentou os aluguéis em 40%, a inflação cresceu de forma acelerada, 1,5 milhões de argentinos foram para pobreza, a conta de gás de uma família de renda média-baixa foi do equivalente a 30 reais para 800 reais e todas as famílias perderam, drasticamente, o seu poder de compra. Macri tem sido corrido a pedradas, de lugares que ele agora frequenta com carros blindados. E ali o ajuste não se deu pela exceção, mas por uma vitória apertada nas urnas – respeitada a soberania popular-, em favor do candidato que prometera colocar a economia do país no seu estatuto “real”. Nesta economia do estatuto real, os investimentos estrangeiros não aportam, o PIB cai, a violência aumenta e os lucros financeiros decolam.

Paul Valéry – sempre que posso lembro seus aforismos – dizia que os grandes perigos que acossam os homens são a “ordem e a desordem”. Na desordem, perdemos a coerência e caímos na confusão. Na ordem, nos petrificamos: ela se transforma em doutrina e perde a sua capacidade de se adaptar ao mundo vivente. Não é esta petrificação da ordem, esta incapacidade de – por dentro das instituições da democracia - resolver os nossos problemas, o lugar em que viceja a “exceção”?

O conflito que nos encontrávamos poderia ser resolvido nas eleições de 2018, mas o oligopólio da mídia atiçou contra Lula a ira do fascismo, que estava escondida, com vergonha da luz da democracia. Esta foi a vanguarda do golpismo, que resolveu que a saída deveria ser pela exceção, mesmo que tivessem que entregar o Governo para uma Confederação de Investigados e Denunciados. E assim o fizeram: a ideia de democracia está rompida, substituída pela desordem e pela confusão. E a ideia de coesão nacional –cujos conflitos se resolvem pelo voto em eleições periódicas- está sendo assassinada por um “impeachment” sem causa.

Da parte de quem quer, mesmo, combater a corrupção – doa a quem doer – distribuir renda e viver num país democrático mais coeso e feliz, temos que inventar o impossível. Mobilizar todas as energias da sociedade – da academia aos movimentos sociais, dos políticos honestos às frações de partidos e organizações da sociedade civil – para ajustarmos um programa democrático e social para recuperar a política como o espaço da dignidade e do conflito. Do consenso e da hegemonia legítima. A mídia oligopólica se apropriou da agenda política do país e fez um novo Governo. O capital financeiro global se apropriou do Estado e vai, gradativamente, eliminando as suas funções públicas. Se a ordem e a desordem são ambas problemáticas, temos que fundi-las num novo processo Constituinte, para que elas possam reinaugurar o seu convívio dentro da República.

Leia mais...

‘Estou me dedicando a trabalhar por uma nova frente política’, diz Tarso Genro

“Lula só não se candidatará em 2018 se estiver preso ou morto”. Entrevista com Frei Betto

Dilma propõe novas eleições a uma semana do desfecho do impeachment