06 Mai 2025
Cinco dos sete membros do alto clérigo com direito a voto foram nomeados pelo papa Francisco.
A reportagem é de Amanda Audi, publicada por Agência Pública, 06-05-2025.
Na Igreja Católica, bispos usam vestes púrpura, já os cardeais usam vermelho – um símbolo de que estariam dispostos a dar o sangue pelo papa. Eles fazem parte do círculo mais próximo do pontífice, e muitas vezes são seus amigos pessoais. Podem dar conselhos e opinar sobre decisões do Vaticano. Quando há um conclave, como o que deve ocorrer nos próximos dias, escolhem o novo papa entre os seus membros.
Não existe um concurso ou eleição para escolher os cardeais. Eles são uma decisão pessoal do papa, que pode nomear quantas pessoas quiser e em qualquer lugar que julgar necessário. Por isso mesmo, costumam estar bem alinhados ao estilo do pontífice da ocasião. É o caso dos cardeais brasileiros – cinco dos sete com direito a voto no conclave foram nomeados por Francisco.
Especialistas que estudam o mundo católico ouvidos pela Agência Pública acreditam que todos os atuais cardeais brasileiros seguem uma linha parecida com a do último papa – mesmo os que ganharam o cargo antes de seu pontificado. Segundo eles, são nomes de perfil moderado, com inclinação progressista e capacidade de articular consensos dentro da hierarquia católica.
“Não há um contraste entre os cardeais. Todos estão alinhados com o legado do papa Francisco e mantêm boa convivência. Nenhum representa um retrocesso conservador”, afirma Paulo Fernando Carneiro de Andrade, teólogo e professor da PUC-Rio.
Eles ficam no meio do caminho entre progressismo e conservadorismo, o que lhes rende a classificação de “moderados”. Correntes de viés socialista, como a Teologia da Libertação — que já teve forte influência no Brasil —, perderam protagonismo. Hoje, segundo teólogos ouvidos pela reportagem, o progressismo dentro da Igreja Católica brasileira está mais associado à ênfase em questões sociais, como o trabalho junto aos pobres e comunidades marginalizadas, do que a pautas comportamentais, como sexualidade e costumes.
O próprio Francisco costumava ser classificado como progressista na pastoral e conservador na doutrina. Isso quer dizer que ele não alterou dogmas da Igreja, como defender o aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas teve iniciativas para abrir a instituição e acolher pessoas, como autorizar a benção a casais homossexuais e a possibilidade de comunhão a divorciados em nova união.
Para exemplificar, um dos especialistas ouvidos pela reportagem diz que os cardeais considerados mais conservadores seriam mais como “tucanos”, em referência ao PSDB, de centro-direita, e não como “bolsonaristas”, de extrema direita.
Historicamente, o Brasil costumava ter quatro cardeais. No conclave em que Francisco foi eleito, em 2013, apenas três participaram. Agora o número passou a oito – apenas sete participam do conclave porque um deles não tem permissão para votar por ter mais de 80 anos.
O último papa decidiu ampliar a representação brasileira para atender regiões que considerava prioritárias, como a Amazônia, que ganhou seu primeiro cardeal em 2022. Com isso, o Brasil passou a ocupar a terceira posição em número de integrantes no conclave, atrás apenas da Itália, com 17 cardeais, e dos Estados Unidos, com 10.
Três dos cardeais são mais próximos ao estilo de Francisco, na avaliação da teóloga Maria Clara Bingemer, docente da PUC-Rio. São eles: Dom Leonardo Steiner, Dom Sérgio da Rocha e Dom Jaime Spengler.
Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, é um dos exemplos mais claros. Franciscano e “bergogliano” (seguidor de Jorge Mario Bergoglio, o nome de batismo do papa Francisco), era um dos clérigos mais próximos do último papa. Eles conversavam frequentemente sobre a Amazônia e a necessidade de preservação do meio ambiente, temas considerados prioritários pelo último pontífice.
Ao contrário de outros cardeais, que costumam ser discretos sobre temas políticos, Steiner já fez duras críticas ao ex-presidente Jair Bolsonaro. “Ele desrespeita a democracia, as leis e a humanidade. Bolsonaro só pensa em si e em seu poder. Para isso, ele usa a religião”, disse.
Dom Jaime Spengler, presidente da CNBB e também franciscano, é conhecido pela defesa dos direitos humanos. Já criticou a concentração de renda e a desigualdade social. Evita, porém, declarações diretas sobre temas como o aborto — reconhece a violência sofrida por mulheres, mas pondera que “o corpo do feto também precisa ser respeitado”. Também costuma se posicionar sobre questões ambientais, defendendo o combate às mudanças climáticas e a proteção dos povos originários.
Steiner e Spengler foram alunos de Leonardo Boff, um dos expoentes da Teologia da Libertação e internacionalmente reconhecido pela defesa dos direitos humanos. Boff, também de origem franciscana, entrou em conflito com o Vaticano quando o cardeal Joseph Ratzinger, que viria a ser o papa Bento XVI, considerou seu trabalho “herético”. Ele defende a importância da fé para combater injustiças sociais e econômicas.
Dom Sérgio da Rocha, arcebispo de Salvador, ocupa um dos postos mais estratégicos no Vaticano como membro do Conselho de Cardeais, um grupo que ajuda o papa a governar a igreja. Apontado como articulador discreto e diplomático, também foi um dos mais próximos a Francisco. Apesar de nenhum dos cardeais brasileiros serem vistos como competidores sérios ao posto de novo papa, Dom Sérgio é o que está melhor colocado nas apostas.
Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo e nomeado cardeal por Bento XIV, costuma ser visto como conservador, mas sem ruptura. Em 2007, disse em um telegrama revelado pelo Wikileaks que o Bolsa Família ajuda as famílias pobres, mas “transformou-se numa ferramenta eleitoral que distorce o sistema político”. Também disse, no mesmo telegrama, que “a Teologia da Libertação perdeu força nos últimos anos, deixando de ser um ‘problema sério’”.
Apesar das declarações, Maria Clara Bingemer diz que não o vê como um conservador no sentido estrito. Um dos motivos é a proximidade e amizade de Dom Odilo com o padre Júlio Lancellotti, pároco da Paróquia de São Miguel Arcanjo, em São Paulo, conhecido tanto pelo seu trabalho social com pessoas em situação de rua como pelos vários ataques que recebe dos que o chamam de “padre comunista”. A Arquidiocese de São Paulo, comandada por Dom Odilo, inclusive emitiu documentos oficiais criticando a tentativa de criação de uma CPI na Câmara de Vereadores que iria investigar Lancellotti.
“A preocupação na escolha do papa, com toda certeza, não é a questão se ele é progressista ou conservador. Esta é uma preocupação externa. O evangelho é tanto progressista quanto conservador. Claramente a opção pelos pobres, a atenção à justiça social, o cuidado dos migrantes e a preocupação com a paz do mundo não são posturas progressistas ou conservadoras, são posturas do evangelho”, disse Dom Odilo em uma entrevista recente.
“Ninguém espera um papa a favor da guerra. Ninguém espera um papa que não cuide dos pobres. Ninguém espera um papa que não diga aos padres para que sejam bem formados. Isso é a norma geral. Portanto, o próximo papa será alguém que vai cuidar bem da vida da Igreja e da missão da Igreja”, continuou.
Dom Orani Tempesta, cardeal do Rio de Janeiro, é o que mais se aproxima do conservadorismo. Em 2018, recebeu uma visita do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, que assinou um compromisso “em defesa da família, das crianças em sala de aula e da liberdade das religiões e contrário ao aborto e legalização das drogas”, como disse o ex-presidente em um vídeo publicado ao lado do religioso. Dom Orani não fez outras manifestações de cunho político desde então.
Bingemer diz que, apesar disso, o cardeal tem histórico de atuação social e perfil conciliador. “Ele é aberto para a secularidade, não faz declarações de grande compromisso social, mas vai pessoalmente nas periferias, é presente nas comunidades. Ele é mais discreto”, afirma. A teóloga também diz que nunca soube de interferências da parte dele em relação a linhas mais abertas no setor de teologia da PUC do Rio, da qual é grão-chanceler.
Na cidade natal de Dom Orani, São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, uma religiosa chegou a prever sua ascensão: “Seu filho vai ser bispo e depois, papa”, disse Lourdinha Fontão, cuja beatificação está em processo.
Dom Paulo Cezar Costa, o mais jovem entre os votantes, com 57 anos, é o arcebispo de Brasília. Foi diretor de teologia da PUC do Rio, onde foi considerado uma pessoa com diálogo inter-religioso aberto. “Ele também é discreto, não tem pronunciamentos abertos, mas é uma boa pessoa e posso garantir que não é conservador”, diz Bingemer.
Por fim, Dom João Braz de Aviz, nomeado por Bento XVI, é arcebispo emérito de Brasília. Ele já disse que, apesar de não ser adepto da Teologia da Libertação, a considera como algo “grande para toda a Igreja”, e que “a predileção pelos pobres é uma escolha de Deus”. Dom João é lembrado pelo trabalho em favelas desde a década de 1980 e por ter participado de movimentos contra a corrupção na década de 1990.
Em 1983, foi sequestrado por pessoas que queriam roubar um caminhão de transporte de valores. Na fuga, os assaltantes pediram que o religioso intercedesse por eles aos policiais. Os agentes, porém, efetuaram dezenas de disparos, que acertaram Dom João. “Jesus, por que devo morrer aos 36 anos?”, teria dito o sacerdote, que disse a um jornal italiano ter ouvido uma resposta de Cristo: “Eu morri aos 33 anos, você já teve três anos a mais do que eu”.
Renovação na hierarquia católica
O papa Francisco promoveu uma profunda renovação na Igreja durante seus 12 anos de papado. Nomeou cerca de 80% dos cardeais aptos a votar no próximo conclave, moldando o colégio eleitoral à sua imagem. Isso não significa que a vitória de alguém com perfil de Francisco está garantido, já que os conservadores detêm grande influência nas tradições da Igreja, mas ajuda a pavimentar o caminho.
Francisco também rompeu tradições ao nomear cardeais em países que nunca haviam tido um clérigo nesta posição, como Laos, Mali e Papua-Nova Guiné. “Ele renovou profundamente o colégio cardinalício, com uma estratégia clara de futuro e a tendência de reduzir o peso da Europa e ampliar o do Sul Global”, afirma Paulo Fernando Carneiro de Andrade.
Para Brenda Carranza, professora da Unicamp e pesquisadora do Laboratório de Antropologia da Religião, o fato de Francisco ter sido um moderado, e não progressista clássico, deve favorecer um embate maior entre os cardeais de diferentes vertentes no conclave. Ela diz, porém, que não há no cardinalato atual representantes do verdadeiro progressismo. “O Papa Francisco era da Teologia do Povo, que atua por mediações culturais. No conclave, minha hipótese é que teremos uma disputa entre conservadores, conservadores moderados e ultraconservadores”, diz.