O enfrentamento da crise civilizatória depende de um projeto do tipo Vaticano II. Entrevista especial com Yann Moulier Boutang

A pandemia de covid-19 mostra que é preciso garantir a renda das pessoas para proteger a atividade econômica, e não o inverso, diz o economista francês

Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | Tradução: André Langer | 17 Julho 2020

O mundo vive hoje um tipo de “nova guerra fria pós-moderna” em que os Estados “sabotam” as instâncias de diálogo internacional e tentam “manipulá-las grosseiramente”, colocando em risco a paz mundial. De outro lado, as igrejas estão desempenhando um papel em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, os EUA, a Ásia e a África. A partir deste diagnóstico, o economista Yann Moulier Boutang sugere que “um projeto do tipo Vaticano II, com vistas a um aggiornamento da mensagem das Igrejas do mundo sobre a política e os bens comuns da humanidade, incluindo os da ética do cuidado da terra e da vida, poderia ter um grande impacto e preencher um vazio preenchido atualmente pela necessidade de uma espiritualidade torta e desviada”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele é categórico: “Admito que acredito mais no poder desse tipo de magistério do Vaticano do que em pequenos jogos de poder com os Estados, já muito tentados a empunhar seu eterno sabre com todas as formas modernas de hissope”.

Ao analisar a conjuntura internacional à luz das transformações do trabalho e do emprego por causa da revolução tecnológica, mas também em decorrência da transição ecológica e do impacto que ela terá na indústria, Boutang alerta para o fato de que vamos assistir a uma “crise estrutural do emprego muito maior do que a crise da siderurgia e do carvão nos anos 70”. Por causa do novo cenário, argumenta, “seria particularmente absurdo continuar a basear a renda das pessoas sobre a posse de um emprego estável que tende a se tornar escasso devido à crescente automação de tarefas”. Nesse novo contexto, reitera, a renda universal é indispensável. “A única maneira de contornar essa chantagem por emprego e trabalho em suas formas atuais é estabelecer uma renda universal que permita às pessoas viver e se reorientar, inclusive para inventar empregos úteis”. Seguindo esta linha de raciocínio, ele vê na crise pandêmica a oportunidade para passarmos de uma “reivindicação do emprego” digno e do salário justo para a reivindicação de uma “renda como um direito à vida”, em que as atividades desenvolvidas vão muito além do “trabalho puramente comercial” e incluem também “a atividade doméstica, a criação dos filhos, o sustento dos mais velhos, o cuidado da terra – e então, todos os trabalhos ecológicos de preservação da biodiversidade”. Contudo, a questão em aberto, pontua, é saber se “a retomada da economia significará um retorno ao normal, ou seja, à situação que prevaleceu antes da crise. Está tudo em jogo”.

Apesar de estarmos diante de uma das maiores crises da história, Boutang ressalta que “não devemos fazer uma interpretação puramente funcionalista da pandemia de covid-19”, e “ao ler alguns teóricos radicais (penso em Giorgio Agamben ou em Maurizio Lazzarato), não estamos muito longe de teorias francamente conspiratórias, como a do capitalismo de ‘desastre’, de Naomi Klein”, afirma. Ele lembra que embora a pandemia tenha revelado as fragilidades da indústria tradicional, de outro lado, abriu “oportunidades extraordinárias” para as empresas de tecnologia americanas e chinesas, como Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi. “Basta pensar nos lucros obtidos pela Amazon com a suspensão dos meios e das redes tradicionais de distribuição. Os softwares de trabalho coletivo compartilhados remotamente, como Skype, Google Drive, Zoom, Microsoft Teams, Slack, Starleaf, Organilog e TeamViewer, tiveram um desenvolvimento espetacular. As tecnologias digitais (reconhecimento facial, medição remota de temperatura, rastreamento Bluetooth de contatos através de telefones celulares) têm sido muito procuradas”.

A seguir, ele também reflete sobre as lacunas da rede de proteção social e seu fracasso em erradicar a pobreza no mundo, sobre a participação do Estado nas economias para garantir a transição energética e sobre o papel das igrejas no enfrentamento da crise.

Yann Moulier Boutang (Foto: Ricardo Machado| IHU)

Yann Moulier Boutang é professor de Ciências Econômicas na Université de Technologie de Compiègne - Sorbonne Universités, na França, membro do laboratório Connaissance, Organisation, Systèmes Techniques - COSTECH EA 22 23, Trivium CNRS. Leciona também na China, na Universidade de Shanghai - UTSEUS, na Ecole Nationale Supérieure de Création Industrielle - ENSCI, Paris, no curso Master Innovation by Design. É um dos fundadores e coordenadores da revista Multitudes. Trabalha com o tema das migrações internacionais, a escravidão, as transformações contemporâneas do capitalismo, a economia digital, os direitos de propriedade intelectual, a inovação. Entre suas obras mais recentes, estão Cognitive capitalism (Polity Press, Cambridge, UK, 2012) e L’abeille et l’économiste (Paris, 2010).

 

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Por que o senhor compara a crise pandêmica de covid-19 com maio de 68? Quais são as semelhanças e diferenças entre esses dois momentos que marcaram a história mundial?

Yann Moulier Boutang - Ao contrário das graves crises financeiras (1997, 2001, 2008, 2010-12 – crise grega) ou daquela do terrorismo internacional de 11 de setembro de 2001, dos sobressaltos políticos como a Queda do Muro de Berlim ou Tiananmen, a economia mundial parou de forma normal (especialmente o comércio internacional) muito repentinamente, a ponto de provocar uma recessão do PIB entre 15% e 30% (porque é necessário considerar as consequências que terá ainda no outono e na primeira metade de 2021). A pandemia do coronavírus provocou uma paralisia brutal, temporária e muito profunda da vida econômica. E essa suspensão foi o resultado de uma decisão política dos Estados.

Cinquenta e dois anos antes, em um único país (a França), a economia parou durante apenas um mês. De maneira mais radical, pois não havia uma gota de gasolina para circular, mas durante um período de tempo bem mais curto. Os motivos da parada e os métodos empregados não foram os mesmos: foi uma greve geral de trabalhadores e um movimento estudantil que protestava contra a seleção nas universidades. Um movimento da sociedade de baixo. Em 2020, foi o risco de uma pandemia e uma decisão tomada de cima pelas autoridades. O maio de 68 foi a celebração dos movimentos sociais nas ruas, de liberalização. E apesar da violência presente no cenário de fundo das “barricadas” como um risco, houve apenas duas mortes em Flins e Sochaux, nos arredores das fábricas de automóveis. Em 2020, a morte esteve massivamente presente; as únicas comunidades que apareceram foram as dos cuidadores, dos hospitais; a população esteve isolada, confinada em suas casas. A máscara e o distanciamento físico entre as pessoas tornaram-se emblemas da vida social reduzida, enquanto eram recursos amplamente desconhecidos na Europa e nas Américas (menos no Extremo Oriente ou na África).

 

A crise do coronavírus foi um maio de 68 às avessas

 

Maio de 68 foi um momento quase paroxístico de conflitos sociais, do triunfo da luta de classes, como a Libertação ou a Frente Popular. Um momento de teatro, de explosão da criatividade artística. O espectro da morte nivelou, em 2020, os confrontos sociais, embora tenha revelado de maneira cruel e implacável as desigualdades dos pobres, daqueles que ganham a vida nas ruas, daqueles que não podem reivindicar um estatuto de trabalhador para ter direitos; cancelou momentaneamente todos os espetáculos ao vivo, fechou os cinemas na sociedade do espetáculo e ajustou a onipresença das mídias digitais. Nada de ocupar a rua, escola ou universidade.

Poderíamos dizer que a crise do coronavírus foi um maio de 68 às avessas. Mas há de fato uma mesma suspensão da economia, um parêntese, uma interrupção do trabalho e do metrô. E, acima de tudo, um efeito de espanto, como uma respiração que retemos tanto que o governo se surpreendeu e ficou sem meios logísticos. Nos hospitais, por exemplo, como descreveu muito bem o professor Grimaldi, ex-chefe do departamento de Diabetologia do Hôpital de la Salpêtrière de Paris, os gestores que eram tão poderosos na cidade tiveram que ceder o lugar e o poder aos médicos e equipes de enfermagem.

Esta ruptura, como em maio de 68, não foi uma interrupção curta e clara, como quando a luz é desligada por alguns instantes para encontrar a decoração antiga assim que a luz volta. Essa interrupção, suspensão ou pausa, deixou entrever outras possíveis.

IHU On-Line - Em artigo recente o senhor disse que, diferentemente do que ocorreu em maio de 68, desta vez o trabalho não foi suspenso, ao contrário, foi teletransportado para as casas dos trabalhadores. O que isso mostra sobre o desenvolvimento do capitalismo e sobre as relações de trabalho, 50 anos depois?

Yann Moulier Boutang - A economia foi suspensa (entre 40% e 60% em seu conjunto, mas 100% em algumas atividades, como o turismo, a cultura, o transporte aéreo e terrestre), mas o trabalho continuou de outra forma, pelo teletrabalho. O que foi garantido é a renda das pessoas. Vários historiadores mostraram que as grandes pandemias foram o ponto de partida para profundas transformações. Eu mostrei na minha tese, De l’esclavage au salariat (PUF, 1998), que a Grande Peste na Europa entre 1346 e 1354 viu nascer a intervenção do Estado sobre os salários máximos e a mobilidade dos trabalhadores. Falava-se da possibilidade de uma generalização do teletrabalho desde a criação da internet (1995), sem que isso nunca tenha se realizado (exceto em uma escala muito pequena). Nos últimos três meses em todo o mundo, mas mais particularmente em países equipados com a internet de banda larga via fibra ótica, e depois com o 4G, houve uma experimentação em massa no trabalho, mas também no ensino a distância. A invenção da produção just-in-time ao estilo japonês nos anos 1980 (o Toyotismo), a digitalização de tarefas e a organização do trabalho nos anos 2000-2010, já tinham modificado profundamente o conteúdo do trabalho, sua natureza “prescrita”.

Com o capitalismo de plataforma (Uber, Deliveroo), as fronteiras entre o trabalhador assalariado e o trabalho autônomo ficaram embaçadas. Com o teletrabalho em larga escala, a separação entre o local de trabalho (o escritório ou a fábrica) e a esfera privada da casa também é abalada. Como definir o vínculo de subordinação, a duração do trabalho efetivamente realizado pelo trabalhador dependente ou autônomo? O capitalismo cognitivo consolidou sua influência na sociedade digital. Presenciamos o surgimento dos programas espiões que detectam o que o trabalhador remoto está fazendo (se sua pupila está fixada na tela ou não); mas também o estudante é colocado em tele-estudo. Já houve até momentos de protesto dos estudantes da Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris (HEC) contra as modalidades de exame que eram muito intrusivos e não protegiam o direito à privacidade.

IHU On-Line - O capitalismo está se reconfigurando a partir desta crise pandêmica? De que modo?

Yann Moulier Boutang - Não devemos fazer uma interpretação puramente funcionalista da pandemia da covid-19, de que ela serviria aos interesses do capitalismo e, assim, permitir-lhe-ia avançar reformas e reestruturações internas, o que nunca poderia ter feito sem esse “choque”. Ao ler alguns teóricos radicais (penso em Giorgio Agamben ou em Maurizio Lazzarato), não estamos muito longe de teorias francamente conspiratórias, como a do capitalismo de “desastre”, de Naomi Klein. Certamente a favor da epidemia, esta suspensão temporária da economia em nível macro revelou ao mesmo tempo fragilidades da indústria automobilística, do transporte aéreo, essa nova forma de indústria siderúrgica, mas também oportunidades extraordinárias para os GAFAM [Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft] americanos ou os BATX [Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi] chineses. Basta pensar nos lucros obtidos pela Amazon com a suspensão dos meios e das redes tradicionais de distribuição. Os softwares de trabalho coletivo compartilhados remotamente, como Skype, Google Drive, Zoom, Microsoft Teams, Slack, Starleaf, Organilog e TeamViewer, tiveram um desenvolvimento espetacular. As tecnologias digitais (reconhecimento facial, medição remota de temperatura, rastreamento Bluetooth de contatos através de telefones celulares) têm sido muito procuradas.

 

Consequências da transferência de indústrias para a Ásia

 

Os perigos estratégicos da mundialização e, portanto, da divisão internacional do trabalho segundo a cadeia de valor, tornaram-se claros particularmente nas indústrias farmacêuticas, nos equipamentos médicos e nas dependências alimentares (mesmo se as fronteiras foram apenas parcialmente fechadas). Os prejuízos da transferência de algumas indústrias (química fina, farmacêutica, equipamentos médicos) para a Ásia, principalmente para a China, apareceram de maneira claríssima com a falta de máscaras, de testes e de medicamentos básicos como o Doliprane. Esses fenômenos já tinham sido assinalados muito antes da pandemia, mas foram necessárias as mortes nos países do sul da Europa para perceber que as reduções de custos não tinham atingido apenas os investimentos, os custos com pessoal no setor público, mas também a vontade das indústrias farmacêutica e da saúde de reduzir seus custos para aumentar os lucros e oferecer dividendos aos acionistas (especialmente os lucros dos fundos americanos, mas também dos investidores... chineses!).

 

Redescobertas, solidariedade e exposição da pobreza

 

O confinamento fez com que os consumidores redescobrissem o comércio local e as virtudes do desenvolvimento sustentável. Esta pandemia, portanto, revelou tendências que já estavam presentes, mas não eram realmente visíveis. Ela provou a solidariedade entre as gerações, expôs a pobreza, a precariedade de muitos estratos da população pouco presentes nos centros da economia mundial. O Departamento 93 (Seine-Saint-Denis) pagou o preço mais alto em número de mortes, e é o Departamento que tem a maior proporção de imigrantes ou de descendentes de imigrantes, de negros originários da África ou das Antilhas. Conta com a maior proporção de pessoas altamente expostas, os “premiers de corvée” [1], no sistema de saúde, no atendimento domiciliar a pessoas idosas, nos serviços de higiene e de segurança, na manutenção, na distribuição e na logística de alimentos. Melhor que isso, a pandemia mostrou de maneira irrefutável que a redução drástica no tráfego de veículos tem o potencial de tornar as cidades mais habitáveis e mais respiráveis. A quase completa paralisação de algumas indústrias, incluindo a construção civil e, portanto, as fábricas de cimento, resultou imediatamente em uma redução de CO2.

IHU On-Line - Na sua avaliação, a novidade nesta crise não é o vírus em si, mas o modo como o vírus “colocou de joelhos a economia globalizada no auge do seu poder”. O que isso indica sobre a economia globalizada?

Yann Moulier Boutang - A humanidade conheceu inúmeras pandemias. Como James C. Scott demonstrou no livro Homo Domesticus (La Découverte, 2019), a sedentarização das populações no Oriente Médio em cidades importantes e o estabelecimento de um Estado centralizado que favorece as culturas sujeitas à servidão (geralmente realizadas por escravos) acompanhado da domesticação de animais criaram epidemias formidáveis que não existiam entre os povos nômades. É impressionante ver que a proximidade decorrente das grandes áreas metropolitanas foi um fator agravante na disseminação da covid-19, de modo que apenas o bloqueio da circulação interna e das fronteiras externas acompanhado de um confinamento poderia ter parado a epidemia. Antes do desenvolvimento das novas pandemias de vírus, dizia-se que metade da população do mundo estaria concentrada em megalópoles de mais de 10 milhões de habitantes. É bem possível que esse movimento seja interrompido.

No estado de urbanização e de mundialização da cadeia de valor (isto é, de uma interdependência sem precedentes da produção) em que a humanidade se encontrava, esse vírus forçou Estados e empregadores capitalistas a adotarem uma medida histórica sem precedentes. Porque na economia de guerra dos conflitos mundiais do século XX, a produção era antes mais mobilizada do que imobilizada. Ainda nos faltam dados para documentar e provar, por a mais b, que as concentrações industriais em fábricas e escritórios foram fatores agravantes da propagação da epidemia, mas é muito provável quando observamos o tecido industrial difuso das regiões da Lombardia italiana que foram as mais afetadas. A reorganização do funcionamento interno das empresas foi profunda assim que as atividades foram retomadas. Até mesmo a Amazon em seus armazéns foi afetada.

IHU On-Line - Alguns intelectuais veem a crise pandêmica como uma oportunidade para não voltarmos à “normalidade”. O que seria voltar à normalidade e quais são os riscos dessa volta à “normalidade”?

Yann Moulier Boutang - O principal fator do conservadorismo é a atividade frenética, o que havíamos denunciado em maio de 1968 com o famoso dito popular “Metrô, Trabalho, Cama”. A parada forçada infligida à economia de mercado capitalista no melhor de sua forma desempenhou o papel do jejum ou do retiro para a vida espiritual defendido pela maioria das religiões. Exceto para os mais pobres, que foram particularmente atingidos, a desaceleração tornou possível fazer um balanço sobre muitos assuntos e também abrir perspectivas. O capitalismo parecia ser um horizonte intransponível para muitos dos nossos concidadãos; exceto para os novos milenaristas da extinção e do colapso, uma transformação radical, uma bifurcação parecia pura utopia reguladora, na melhor das hipóteses, uma ilusão simpática, mas sem controle sobre o curso dos acontecimentos. Ora, com esta parada provisória (ela nunca foi pensada, anunciada ou implementada como definitiva), imediatamente se colocou a seguinte questão: como não fazer da recuperação “econômica” um retorno ao mundo de antes ou à normalidade capitalista (o que os economistas chamam de curva em V ou mesmo em U), porque em ambos os casos não se observa nenhuma bifurcação.

 

Bifurcações necessárias

 

Vou dar alguns exemplos de bifurcações percebidas não apenas como possíveis, mas agora como necessárias. Aquilo que rapidamente tratamos nas numerosas reuniões do comitê editorial da Revue Multitudes, qualquer coisa que pudesse tornar efetivo um efeito catraca, um ponto de não retorno: a extensão neoliberal da regra do mercado a toda a vida (especialmente a educação e a saúde, mas também o transporte público complementado com uma negação da realidade e da necessidade do bem comum e do Estado, este visto como o problema número um).

 

O retorno à normalidade é inconcebível

 

O perigo extremo em que se encontram as sociedades europeias ocidentais devido aos quarenta anos de planos de austeridade, especialmente o fechamento de leitos hospitalares, a redução do pessoal de enfermagem, a lógica empreendedora de acordo com a qual os serviços públicos de saúde deveriam ser gerenciados, torna inconcebível um retorno à normalidade. A hipocrisia dos Estados de bem-estar social na Europa e das fundações privadas no continente norte-americano que não foram capazes de erradicar a pobreza (e esta última cresceu em países como Alemanha, Reino Unido e mesmo a França nos últimos vinte anos) foi desvendada. Igualmente importante é a tomada de consciência de como as nossas sociedades ditas desenvolvidas tratam os idosos que perdem sua autonomia e, de modo especial, relegam-nos a asilos indignos (ver a reação do Exército canadense mobilizado para intervir nos estabelecimentos, que informava sobre seu horror diante da realidade desses novos hospícios).

Ora, nossas sociedades, da China à Europa Ocidental, estão envelhecendo e as pessoas com mais de 75 anos representam rapidamente 20% a 30% da população total. A mortalidade da pandemia afetou especialmente essa população: por exemplo, na França, do total de 29 mil mortes por coronavírus, 18 mil ocorreram nos Estabelecimentos Hospitalares para Pessoas Idosas Dependentes [EHPAD, na sigla em francês]. Mas na Suécia, no Reino Unido, o balanço é o mesmo. Produziu-se um verdadeiro choque na opinião pública. A ideia de confinar especificamente os idosos (de modo especial privando-os da visita dos seus filhos) foi considerada muito severa. Quando o Conselho de Administração do Grupo Korian, o maior operador privado de lares para pessoas idosas dependentes (EHPAD) – cujo comportamento durante a epidemia foi objeto de inúmeras críticas perfeitamente fundamentadas –, votou a distribuição de dividendos aos acionistas, isso provocou um escândalo, porque o Estado tinha anunciado ainda no mês de março que as grandes empresas industriais que se beneficiavam de sua ajuda em massa estavam proibidas de pagar dividendos aos seus acionistas.

De maneira geral, os mesmos Estados que declaravam ainda em 2019 que não tinham dinheiro para a transição ecológica, para uma maior redistribuição de riqueza, enfim, que defendiam que a austeridade era necessária, começaram a injetar centenas de bilhões na economia, endividando-se por décadas. Uma dívida de 100% do PIB foi considerada o limite extremo pela Comissão Europeia devido aos critérios de Maastricht (3% do déficit orçamentário, 60% do PIB para a dívida). Com a pandemia, os déficits orçamentários atingirão 10% a 15% e a dívida total aumentará para 120%.

IHU On-Line - Como romper com a “normalidade” ou superá-la? Quais as possibilidades nesse sentido?

Yann Moulier Boutang - A retomada da economia significará um retorno ao normal, ou seja, à situação que prevaleceu antes da crise? Está tudo em jogo. Podemos dizer que esta crise foi útil e que serviu como um ponto de bifurcação se a economia não voltar ao seu leito habitual. Alguns são muito pessimistas. Estas são essencialmente as forças hostis a uma reorientação radical da economia e sua conversão a um desenvolvimento sustentável descarbonizado, mais sóbrio e mais lento. Assim, vimos na França empresas muito grandes apoiadas pelo Medef (a organização patronal das grandes empresas) exigindo, em plena pandemia, uma redução das restrições regulatórias ecológicas e adiando sua implementação para mais adiante. Tudo isso em nome da salvaguarda do emprego e de uma recuperação acelerada. Os teóricos do capitalismo da catástrofe não hesitam em prever a exclusão dos dispositivos que protegem os trabalhadores (a semana de 35 horas, o nível dos salários e o Estado de bem-estar social como um todo) a favor das proclamações do estado de emergência sanitária.

Outros, inclusive eu, veem, ao contrário, que com esta pandemia e o que ela revelou, a humanidade tem uma oportunidade excepcional para se conter. O surpreendente despertar em escala planetário tanto das mulheres antes da pandemia que não querem mais violência doméstica, feminicídios e discriminações, como dos negros em luta contra uma violência policial e social específica, que durante a crise ocuparam as ruas e exigiram uma descolonização ou desracialização do mundo ao derrubar simbolicamente estátuas, mostra que os tempos estão mudando – “the times they are a-changin”, como cantou Bob Dylan há cinquenta anos. Também vou colocar entre os mesmos sinais de profunda mudança que paira no ar, o Hirak argelino, os movimentos de solidariedade para com os migrantes internacionais que batem às portas da Europa, mas também a colapsologia, o Extinction Rebellion.

 

Retorno do Estado e transição energética

 

Você vai me dizer que isso não é novo e, acima de tudo, que sofre para se concretizar. Mas o retorno do Estado por toda parte possibilita condicionar os empréstimos ou os subsídios às empresas a uma aceleração da transição energética. Os bilhões para a retomada podem ser canalizados (ou seja, obrigatoriamente direcionados) para investimentos úteis (saúde, pesquisa, educação, logística, transportes inteligentes, isolamento das moradias e a habitação tout court, e a erradicação da pobreza). Certamente, as empresas de ontem e que têm firmemente a intenção de voltar amanhã, utilizam abundantemente a chantagem do emprego.

E é aí que aparece um aspecto indispensável de uma realocação bem-sucedida e duradoura da economia: a única maneira de contornar essa chantagem por emprego e trabalho em suas formas atuais é estabelecer uma renda universal que permita às pessoas viver e se reorientar, inclusive para inventar empregos úteis. Voltarei a esta questão ao responder à pergunta 9, mais abaixo.

IHU On-Line – Vários economistas têm defendido uma transformação na economia, de modo que ela esteja a serviço das pessoas e o papa também tem discursado nesse sentido. O que seria uma economia que atende a necessidade de todos?

Yann Moulier Boutang - Dois elementos alavancam essa transformação. O primeiro é a crescente importância dos bens imateriais que condicionam a inovação e que não são simplesmente conhecimento codificado, interação entre humanos, sua cooperação, e não simplesmente sua organização e a confiança que eles têm uns nos outros. É o que chamo de momento do capitalismo cognitivo, que dispõe, como o rastreamento digital e as tecnologias de informação e da comunicação, dos meios para colocar a trabalhar um número muito maior de pessoas. O segundo elemento é a produção do vivo por meio do vivo, o que Jacques Attali chama de economia da vida. A produção da qualidade de vida da população torna-se o elemento determinante. A educação, a saúde, a cultura, mas também o que chamamos de care, o cuidado. Podemos traçar um paralelo entre o papel do care e da caridade e do amor na teologia cristã. Quando uma provação muito violenta afeta a humanidade (guerra, epidemia), as medidas para reconstruir ou retomar a vida “normal” não são grande coisa se não estiverem motivadas pelo cuidado e pelo amor ao seu próximo.

A crescente importância dos imateriais não codificáveis, inclusive no campo dos bens de conhecimento (saberes, ciência, emoções, preocupação com a terra ou o jardim terrestre), move a linha do horizonte em direção à qual deve tender a atividade humana e, portanto, a organização da produção. A produção material continua importante, mas perde a hegemonia de que desfrutou desde a Revolução Neolítica até a Revolução Industrial. Da economia da matéria conectada à ecologia da mente de Gregory Bateson ou de Teilhard de Chardin, passamos à ecologia da matéria possibilitada e complementada pela economia da mente. A transformação da economia da matéria em ecologia está em andamento desde o Relatório do Clube de Roma (1972) e introduziu o conceito de limite, de finitude a propósito da natureza, que foi assimilado no pensamento ocidental ao ilimitado, ao fundo inesgotável de energia, quando pensávamos que essas noções estavam reservadas à alma ou ao espírito. Já foi dito que o século XXI será o século do cérebro e do complexo.

IHU On-Line - Como vê a “Economia de Francisco”, proposta pelo papa? Quais são os desafios nesse sentido?

Yann Moulier Boutang - Não é nenhum segredo para ninguém que a Igreja, desde a questão da licitude da taxa de juros, segundo se trate de um bem que se usa ou não (o dinheiro) nos séculos IV, IX, depois século XII, da posse e da pobreza (nos séculos XIII e XIV), até aquela da acumulação de riquezas na forma de capital, tenha trabalhado fortemente essas questões. Ela justificou, na querela franciscana, a propriedade diante daqueles que a condenaram em nome do Evangelho. Com relação ao dinheiro, ela foi contra a cobrança de juros (o Islã fez o mesmo), embora eu tenha a tendência a pensar que, diante de suas dificuldades financeiras recorrentes, com o culto às relíquias e com as indulgências, ela precedeu em vários séculos o financiamento de mercado, criando liquidez a partir da fé (que é um bem imaterial). Ela não hesitou em se distanciar dos poderes temporais ou daquilo que os anglo-saxões chamam de mainstream, e isso tanto mais facilmente na medida em que não estava mais na posição de magistério dominante, mas, em vez disso, de autoridade compartilhada (desde a Reforma) ou contestada (o Iluminismo), depois francamente em posição minoritária a partir da segunda metade do século XX.

O antimodernismo papal visava principalmente os desvios internos do catolicismo (Loisy na França), mas foi interpretado como uma hostilidade ao capitalismo enquanto sistema econômico desenfreado e ao liberalismo político. A Doutrina Social da Igreja que se elabora a partir da década de 1850 atingiu a direita (o egoísmo dos ricos e, acima de tudo, uma desconfiança em relação ao dinheiro em geral suspeito de sempre ser conquistado à custa dos pobres), mas com o advento dos movimentos políticos emancipatórios (anarquismo, marxismo) atingiu também a esquerda e condenou explicitamente o comunismo. Desde o advento da Revolução Russa e durante a Guerra Fria, a Igreja Católica foi incluída no clã conservador ou aceita como fazendo parte deste grupo. O Concílio Vaticano II deu início a uma evolução significativa. Mas até a reunificação alemã seguida pela queda da União Soviética e da “cortina de ferro”, que coincidiu com o longuíssimo pontificado de João Paulo II, as posições da Igreja Católica em questões sociais e econômicas ainda se inscreveram nesse movimento pendular que começou após a Revolução Francesa.

 

A Igreja no centro das discussões do mundo pós ou hiperindustrial

 

Depois de um papa polonês geoestratégico e um papa alemão estabilizador, a chegada em 2013 do primeiro papa não europeu, oriundo da América Latina, marca uma virada. As questões da instabilidade econômica e financeira, da pobreza, das crescentes desigualdades sociais, das migrações, da ecologia com o esgotamento dos modelos de crescimento e das crises sanitárias, tomam uma posição preponderante em relação às preocupações do equilíbrio político. A segunda encíclica do Papa Francisco, a Laudato Si’, coloca a Igreja no centro das discussões do mundo pós ou hiperindustrial.

A convocação do encontro de Assis, marcado inicialmente para os dias 26 e 28 de março de 2020, mas adiado para 21 de novembro devido à epidemia da covid-19, trata-se de um encontro com jovens economistas e líderes empresariais de 135 países para traçar os contornos de uma economia socialmente justa, economicamente viável, ecologicamente sustentável e responsável. A essa altura, a pandemia terá afetado plenamente os países pobres (a América Latina e a Índia no centro da tempestade, depois a África). Ela terá exposto os danos infligidos a toda a humanidade provocados pela destruição dos habitats naturais dos animais selvagens e por uma mundialização e uma economia da saúde guiadas exclusivamente pela busca desenfreada do lucro dos acionistas. Já vimos na Europa, na Índia e nos Estados Unidos que os jovens mais pobres, mais precários, mais desabrigados, sem outra renda além do trabalho informal que exercem na rua, foram os mais afetados. Os “premiers de corvée”, essenciais à sobrevivência das economias confinadas, foram os mais expostos. Penso nos entregadores a domicílio que trabalham para o Uber Eats, Deliveroo etc.

Em seu discurso aos jovens, o Papa resumiu sua prioridade na luta contra as flagrantes desigualdades nos três “T”: teto, trabalho e terra. Um teto e um emprego são os objetivos clássicos dos movimentos sociais. A terra também. Mas Francisco certamente tem em mente a Terra como um todo e não apenas o instrumento de trabalho dos camponeses.

Só lamento uma coisa neste belo programa: o fato de permanecermos no velho programa socialista e capitalista do trabalho e do emprego. Porque, em nome da salvaguarda do trabalho e do emprego, muitas decisões urgentes em matéria de preservação do planeta são adiadas. Os empregadores e os acionistas já estão pedindo a moratória da proibição de pesticidas e a flexibilização das normas de emissão de substâncias tóxicas.

Só há uma maneira de conciliar os três “T”: buscar uma garantia de renda universal que ao mesmo tempo reconhece o trabalho invisível de todos aqueles que contribuem para a preservação da vida e do bem comum da humanidade. Acho a reflexão do Santo Padre bem tímida a este respeito.

IHU On-Line – Em uma carta enviada aos movimentos populares, publicada na Páscoa, o Papa pediu a instituição de uma renda universal, quando disse: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos”. Isso sinaliza uma mudança em relação à postura anterior, em que ele defendia emprego e salário digno para todos? Como vê essa proposta do Papa em contraposição ao que tem sido reivindicado neste campo?

Yann Moulier Boutang - Eu não havia notado essa evolução na posição do Santo Padre, que me parece absolutamente fundamental e vai além do sentido do que eu já sublinhei. Trata-se de uma evolução geral da maior parte dos atores das políticas sociais

Passar de uma reivindicação do emprego, em que se deduz o direito a um salário – pois todo trabalho “merece um salário” –, a uma reivindicação de uma renda como um direito à vida, à segurança de um abrigo, à satisfação das necessidades essenciais e ao exercício de uma atividade, que inclui, ao contrário do trabalho puramente comercial, a atividade doméstica, a criação dos filhos, o sustento dos mais velhos, o cuidado da terra – e então, todos os trabalhos ecológicos de preservação da biodiversidade – é muito importante.

A experiência dessa onda pandêmica de covid-19, que provavelmente será seguida por outras epidemias virais – infelizmente isso já é muito frequente na África – tem mostrado que é preciso garantir a renda das pessoas para proteger a atividade econômica, e não o inverso. 

No plano estrutural, as transformações do trabalho e do emprego, em razão do uso crescente das tecnologias digitais e da transição ecológica urgente – por exemplo, nas áreas de transporte, das indústrias automotivas, aéreas e energéticas –, vão criar uma crise estrutural de emprego muito maior do que a crise da siderurgia e do carvão nos anos 70. Seria, então, particularmente absurdo continuar a basear a renda das pessoas sobre a posse de um emprego estável que tende a se tornar escasso devido à crescente automação de tarefas.

É claro que a maioria dos atores sociais – e, esperançosamente, mais e mais governos ou partidos políticos e ONGs – apresentam a reivindicação de uma renda básica, tendo uma atenção especial para os trabalhadores mais pobres, mais isolados, precários e invisíveis.

IHU On-Line - O Estado de bem-estar social sairá fortalecido e ganhará novas dimensões a partir de agora? Quais são as chances de implementar um programa de renda universal, por exemplo?

Yann Moulier Boutang - O Estado de bem-estar social ou Welfare State, que foi alvo de críticas cada vez mais virulentas desde Margaret Thatcher, sai muito reforçado desta crise de saúde. Quando comparamos os Estados dotados com uma verdadeira seguridade social pública (Europa e Japão) e aqueles em que são as seguradoras e as empresas privadas que cuidam das doenças, do desemprego e dos lares para idosos (como nos Estados Unidos), vemos que o impacto sofrido foi bastante bem amortecido pelos campeões do Estado beveridgeano (de Beveridge, o inventor do Estado de bem-estar social no Reino Unido). Não estou falando dos países em desenvolvimento que estão de fato se transformando em potências industriais e comerciais, mas que em termos de seguridade social e de bem-estar estão muito atrás ou onde os estragos da epidemia são ainda piores. De qualquer forma, mesmo onde o Estado de bem-estar social está muito desenvolvido, a crise da covid-19 revelou da maneira mais crua todas as lacunas, os buracos na rede de proteção social.

 

Lacunas

 

A primeira lacuna é que o Estado de bem-estar social não conseguiu, desde o final da Segunda Guerra Mundial, erradicar a pobreza daqueles que chamamos justamente de Quarto Mundo dentro do Primeiro Mundo (o mundo capitalista), dentro do Segundo Mundo (aquele do socialismo realizado) e, finalmente, dentro do Terceiro Mundo.

A rede de proteção do Estado social consistiu em estender a proteção concedida ao empregado (por Bismarck na Alemanha) e aos membros de sua família. Mas essa rede foi concebida em economias em vias de assalariamento rápido, de trabalho em tempo integral e ao longo da vida. O equilíbrio das contas do seguro-saúde, seguro-desemprego e seguro-velhice dependia das cotizações permanentes e de um acentuado crescimento populacional. A partir do momento em que a população começou a envelhecer, o salariado tornou-se mais poroso (constante passagem do estatuto de empregado para o desemprego ou para o trabalho de tempo parcial, assalariado ou não) e o desemprego tornou-se estrutural, com 10% a 25% da população economicamente ativa à procura de um emprego, o financiamento do sistema do Welfare público tornou-se mais problemático. Daí os recursos frequentes a seguros complementares privados.

Com a pandemia e a suspensão de grande parte da atividade (entre 40% e 60% dos empregos), os buracos na raquete (que já existiam) tornaram-se evidentes. Os trabalhadores assalariados e as profissões independentes com estatuto puderam se beneficiar da indenização por desemprego paga pelo Estado. Mas os precários e os intermitentes que não preenchiam os critérios, as empregadas domésticas informais, as mães solteiras, os estudantes complementando bolsas muito pequenas com trabalhos ocasionais e os vendedores ambulantes viram-se completamente privados de renda. E entendemos melhor que o mecanismo de acesso aos benefícios sociais excluía as pessoas e produzia uma população de Quarto Mundo, essas ilhas de pobreza no meio da prosperidade. Diante dessa realidade, o Estado teve que aprovar despesas sociais extraordinárias (por exemplo, várias centenas de euros para estudantes famintos ou refeições gratuitas para famílias cuja alimentação na cantina da escola era a única refeição completa por dia).

 

Reivindicação de uma renda universal

 

Em todas as partes apareceram reivindicações frequentemente apoiadas por representantes eleitos locais, parlamentares, ou mesmo novas leis, como na Itália e depois na Espanha durante a crise, de renda básica ou renda universal. Essa reivindicação apareceu pela primeira vez em um espaço público na França durante as eleições presidenciais de 2017. Foi um pouco relegada, mas a crise a trouxe novamente ao primeiro plano.

O episódio da covid-19 paralisou temporariamente boa parte da economia. Para tornar a medida aceitável, os governos europeus garantiram a renda dos trabalhadores tradicionais, mas parecia também ser necessário apoiar a renda daqueles que não estão empregados em período integral. E a renda básica ou universal aparece agora como o complemento natural do antigo sistema de proteção social.

As crises de saúde decorrentes de pandemias virais estão no cardápio da humanidade (desde 2002 os relatórios alertam para esta questão). Mas a crise ecológica completa as crises de saúde, e sem cair no milenarismo dos colapsologistas (Pablo Servigne e Yves Cochet) podemos legitimamente pensar que a reestruturação draconiana de empregos (por exemplo, o setor aeronáutico, a indústria automobilística, a agricultura intensiva e a urbanização concentracionista) afetará muitas pessoas, à maneira do confinamento da covid-19, mas desta vez de maneira permanente. Sem um mecanismo como a renda universal de nível suficiente para viver, morar e possivelmente se qualificar para as novas competências requeridas pelos novos empregos, a transição ecológica (e, acrescentemos, digital) será sinônimo de um aumento espetacular das desigualdades.

IHU On-Line - A crise pandêmica tem sido associada à questão ecológica e ao mesmo tempo em que se percebe uma redução das emissões de gás carbônico por conta da redução da produtividade, de outro lado se vê uma expansão da pobreza. Como a questão ecológica tende a ser discutida daqui para frente, tendo em vista esse quadro?

Yann Moulier Boutang - Como observou o professor Sicard, a explosão de pandemias virais (Aids, SARS, MERS, covid-19) desde o final da década de 1980 tem algo a ver com a destruição dos nichos ecológicos ocupados por animais selvagens. Portanto, o episódio da covid-19 na China destaca os erros do desenvolvimento industrial insano que não se preocupa com o meio ambiente. Eu já apontei na minha resposta anterior o aumento ou a revelação das desigualdades galopantes que nosso modelo produtivo globalizado faz pesar sobre as populações. Mas, ao mesmo tempo, a interrupção ou a suspensão temporária de mais da metade da atividade econômica mostrou a todos os céticos climáticos que o ar das cidades poderia repentinamente se tornar respirável, uma vez que as emissões de CO2 tinham caído imediatamente pela metade. Portanto, resultados espetaculares poderiam ser alcançados sem a necessidade de esperar meio século. Além disso, os governos liberaram somas astronômicas de dinheiro, quando durante 30 anos fingiram que não havia dinheiro para os pobres e a população, dinheiro para hospitais, asilos de idosos, os chamados EHPAD (na França, foi anunciada a criação de um quinto ramo da Seguridade Social para financiar a ajuda à autonomia dos idosos). Muitos ambientalistas começaram a se dar conta disso, especialmente a nova geração de ativistas do Extinction Rebellion. Durante o segundo turno das eleições municipais francesas de 28 de junho, as candidaturas ecológicas receberam um forte impulso da crise. Torna-se possível fazer algo imediatamente pelo clima.

IHU On-Line - Suas análises sobre a crise sistêmica mencionam três eixos centrais da crise: não há renda decente para os trabalhadores, é preciso uma transição energética e é necessário lutar contra a poluição química das terras aráveis. Como essas três dimensões se agravam ou podem ser resolvidas a partir de agora?

Yann Moulier Boutang - Desde a década de 1980, início da era neoliberal, a participação de salários na renda nacional deteriorou-se gradualmente sob a pressão das transferências da cadeia de valor para os países emergentes. Em troca da manutenção de empregos (e, acrescentemos, de uma aplicação muito branda das normas ambientais e da busca de energias alternativas aos combustíveis fósseis), a inflação dos custos quase desapareceu (exceto, obviamente, na China e nos outros países emergentes onde os salários começaram em patamares muito baixos). O peso dos sindicatos diminuiu fortemente, o poder dos acionistas transnacionais tornou-se preponderante e os mercados financeiros colocaram os sistemas de controle nacional em crise. Somente os grandes grupos de tamanho imperial conseguiram ter sucesso, estejam eles já formados (Estados Unidos, China) ou em processo de formação não sem dificuldades (União Europeia). A necessidade de combinar novas tecnologias avançadas baseadas na tecnologia digital, a exploração dos recursos cognitivos dos novos trabalhadores nas novas plataformas e recursos materiais, como as terras raras, mas também o poder financeiro, colocou em crise mais do que nunca os velhos Estados Nacionais. Esta situação está na origem dos movimentos populistas sem outro futuro senão o de suicídios coletivos, reações identitaristas e supremacistas, sabotagem e naufrágio deliberado das instâncias internacionais concebidas no final de 1945 para salvar a paz.

 

Projeto de revisão do desenvolvimento econômico

 

Há a possibilidade de surgir um projeto de completa revisão do desenvolvimento econômico sustentável em torno da transição energética e digital, da despoluição do planeta, socialmente justo (graças à renda universal). Parece-me que a União Europeia, que sempre foi forjada nas crises, está se tornando mais federal e talvez esteja comprometida com os objetivos de Lisboa (ainda não alcançados) de promover uma economia do conhecimento e do digital, na transição para uma economia descarbonizada e em seu modelo social aprimorado por uma renda universal que substitua o salário mínimo – os elementos unificadores que lhe faltavam em 2005 durante o primeiro rascunho da Constituição. Porque um povo europeu (o melhor antídoto para os avatares do povo ultrapassado que são os populismos) não se forja simplesmente com tratados formais e símbolos (como uma bandeira e um hino). Precisa de conteúdo, teria dito Hegel, um projeto mobilizador e inspirador, em suma, de espírito e de sopro.

IHU On-Line - Como avalia as medidas adotadas para enfrentar a pandemia em diferentes países da Europa?

Yann Moulier Boutang - Sabe-se que o coronavírus covid-19 foi identificado muito rapidamente nos seis meses seguintes ao seu primeiro aparecimento, que agora fazemos remontar ao verão de 2019 na China – sendo o primeiro caso registrado de 07 de setembro, e não do final de dezembro, o que é muito rápido. Infelizmente, isso não nos disse nada sobre os mecanismos de contágio, sobre todas as formas que a covid-19 adota e muito menos sobre remédios curativos (tratamentos eficazes) ou preventivos (vacinas). Restou, portanto, identificar a afecção por testes reativos ou após as afecções por testes sorológicos para determinar se uma pessoa tinha entrado em contato com o vírus, se desenvolveu ou não os sintomas, e se havia segregado anticorpos aumentando sua imunidade diante de uma segunda onda de infecção. O desenvolvimento destes testes levou muito tempo e muitos deles se mostraram ineficazes (casos de falsos positivos ou de falsos negativos). Igualmente o fato de um número muito grande de pessoas afetadas não apresentar sintomas, e, contudo, ser contagioso não facilitou as coisas. Logo ficou claro que os sistemas de saúde seriam sobrecarregados por pacientes que desenvolviam formas graves da doença (principalmente distúrbios respiratórios agudos e distúrbios cardíacos) e que o isolamento dos pacientes afetados era a única solução com medidas de proteção (lavagem das mãos, desinfecção dos suportes susceptíveis de preservar e transmitir o vírus por contato manual, espaçamento entre as pessoas, uso de máscaras e de diversas variedades de máscaras – aquelas que evitam que o portador infecte outras pessoas ou então as máscaras que evitam a contaminação do exterior).

A identificação rápida dos focos de infecção, seu isolamento o mais rápido possível, evitar sobrecarregar os equipamentos hospitalares e os leitos equipados com equipamentos de respiração artificial por casos leves que cicatrizam por conta própria, equipamentos com máscaras e leitos aparelhados constituíram, por fim, a única defesa enquanto se aguardavam verdadeiros tratamentos preventivos ou curativos. Mesmo se a experiência aprendida na prática nos primeiros casos (na Itália e na Espanha) permitiu aos médicos improvisar tratamentos que reduziram gradualmente a mortalidade de casos graves, foi nos métodos dessa identificação das populações afetadas pela epidemia, bem como nos de isolamento, que as estratégias divergiram, sabendo que algumas soluções de identificação dependem fortemente do estágio da infecção em cada país ou região. Os países latinos da Europa, incluindo a França, foram massivamente afetados (Leste e Região de Paris na França, Lombardia na Itália, Madri e Barcelona na Espanha). A falta de preparação, sobretudo logística (fornecimento de máscaras, aparelhos e medicamentos), a tensão extrema nos hospitais públicos sucateados por trinta anos de economia de salários, a falta de novas contratações, a lógica industrial de fluxos just-in-time, a tarifa por serviço – portanto, o foco colocado em doenças rentáveis e o fechamento de leitos –, o peso exorbitante da equipe administrativa em relação à equipe de enfermagem, tudo isso funcionou muito negativamente e não passamos longe da catástrofe absoluta.

 

Erros da alta administração

 

O jornal Le Monde fez uma notável pesquisa histórica dos erros cometidos pelo Estado profundo que ajuda a compreender os erros da alta administração que, após ter tirado tardiamente as consequências de relatórios sobre os riscos de epidemias desse tipo e comprado as máscaras e as vacinas contra a SARS (vírus anterior que, finalmente, não atingiu o país), destruiu seus estoques de máscaras e, acima de tudo, interrompeu a reposição dos estoques, cedendo à pressão dos senadores e do Tribunal de Contas. A imagem do Estado centralizador, planejador foi atingida.

Percebeu-se que a Alemanha, um país descentralizado, que não liquidou suas capacidades industriais de fabricar respiradores, que dispõe de um número maior de leitos por habitante, que paga melhor seus enfermeiros e cujos médicos gozam de maior poder diante de uma administração menor, conseguiu controlar melhor a epidemia. Christian Drosten, conselheiro de Angela Merkel, parecia muito sábio em suas recomendações em comparação com o pesado Conselho Científico inaugurado com grande pompa por Emmanuel Macron, muito mais contestado, embora suas opiniões tenham sido seguidas pelo governo. Pudemos criticar este Conselho por ter, no fundo, racionalizado “a inutilidade das máscaras” quando não havia estoque delas, e depois por tê-las recomendado quando o pico da epidemia já tinha passado.

 

Desempenhos

 

O desempenho alemão, dividido em Länders, e dos pequenos países (Áustria, Eslovênia, Dinamarca e República Tcheca) deve ser relativizado por dois fatores. O primeiro é que seu tamanho facilitou o confinamento ou o fechamento das fronteiras aéreas e terrestres para a circulação humana. O segundo é que eles foram atingidos depois da Itália ou da Espanha. Uma estratégia de testes reativos e de confinamento limitado dos focos infectados foi possível. Nos grandes países centralizados, onde o vírus já estava circulando mais quando as autoridades avaliaram a epidemia e seu perigo, o diagnóstico preventivo em massa foi muito mais difícil, principalmente porque os testes não estavam disponíveis.

Nesses países, foi preciso chegar a um confinamento regional e rapidamente nacional e a uma suspensão ainda mais radical da atividade econômica não essencial. O que implicava a suspensão das liberdades, o direito de ir e vir, de comerciar, de se reunir e de se manifestar. O espanto provocado pela epidemia e a suspensão da economia silenciaram as reticências sobre este estado de exceção sanitário, que veio se somar ao estado de exceção antiterrorista. A partir de junho, as críticas desataram. Elas contestaram fortemente o severo confinamento, a infantilização dos cidadãos, apontando para o exemplo alemão, um poderoso atrativo, e os exemplos sueco e inglês que inicialmente se apoiaram na busca da aquisição da imunidade coletiva (deixando a população mais amplamente exposta ao vírus). Escancaram o fracasso da Suécia (6,5% da população imunizada, em vez dos 65% esperados, mas 500 mortes por milhão de habitantes, pior que na França) e, de modo especial, da Inglaterra. O reconfinamento total na Alemanha em dois cantões da Renânia-Vestfália, com mais de 600 mil habitantes, também mostra que as formas da doença, seus rebotes (não uma segunda onda, e sim ondulações), ditam as medidas adaptativas e que não existe um único método que tenha comprovado sua eficiência em qualquer terreno.

Por fim, a inquestionável confusão dos Estados membros da União Europeia, o que também corresponde ao fato de que a saúde não fazia parte dos domínios de competência da Comissão, não tem nada de extravagante.

Por outro lado, parece estar se desenhando um acordo que ultrapassa as particularidades regionais e nacionais de que, se esse tipo de epidemia se tornar endêmico ou crônico, seria necessário encontrar soluções menos autoritárias para a detecção de doentes, para as medidas de quarentena ou mesmo de confinamento, limitadas a uma área a menor possível. E é aí que se debruçar sobre o que aconteceu na China torna-se importante.

IHU On-Line – Que informações o senhor tem sobre como a pandemia repercutiu na China, seja entre a população, seja entre o governo, a partir dos seus contatos no país?

Yann Moulier Boutang - Para a análise do que realmente aconteceu na China, ainda é muito cedo. Existe o que foi observado entre o início de janeiro de 2020 e agora. E depois há o que suspeitamos sobre o real início da epidemia (provavelmente desde o verão de 2019), a presença do vírus que já teria circulado durante os Jogos Olímpicos dos Exércitos em Wuhan nos dias 16 e 17 de outubro de 2019 (porque os jogadores de basquete franceses estavam contaminados e foi assim que o vírus foi encontrado na base militar de Creil, o primeiro aglomerado em Île-de-France). Como demonstrou a experiência da covid-19 na Europa, vários meses depois, o vírus se incubou durante um longo tempo devido à sua característica mais notável: muitos portadores não apresentam nenhum sintoma, enquanto são contagiosos e a contaminação ocorre em cerca de dez dias. Por outro lado, se alguns portadores transmitem muito pouco o vírus, outros, ao contrário, podem infectar várias dezenas de pessoas em um único dia, especialmente em ambientes confinados e muito densos. É provável que o vírus tenha circulado na China muito antes da data anunciada oficialmente pelas autoridades chinesas.

Como a letalidade entre os jovens era baixa, as autoridades locais (em suma, os governadores das Províncias, que têm o tamanho demográfico e espacial de países europeus, e os órgãos locais do Partido Comunista) provavelmente esconderam no centro a extensão da pandemia. Porque, na ausência de uma vacina ou de terapia verdadeiramente eficazes, o diagnóstico por testes reativos, o isolamento dos clusters, um confinamento rigoroso dos pacientes ou mesmo a suspensão dos vínculos internos e das fronteiras externas, tiveram implicações sérias sobre as duas prioridades cruciais para a carreira dos membros do partido e dos governos locais: 1) crescimento econômico medido pelo aumento do PIB do mercado; 2) ordem pública, tanto na rua como na internet. Deve-se entender que a suspensão da economia no contexto de uma desaceleração contínua do crescimento chinês, que caiu de dois dígitos para 6,2% (números oficiais que alguns não hesitam em reduzir para 4%), poderia soar como uma catástrofe global (com a desaceleração do crescimento, o consenso das classes médias no regime corre o risco de virar pó), mas também pessoal.

 

Reações chinesas

 

A Província de Hubei, cuja capital é Wuhan, reduto da industrialização desde a reforma de Deng Xiaoping, seria severamente atingida. Quando a epidemia revelou toda a sua gravidade (provavelmente em dezembro e início de janeiro), o governo reagiu fortemente desmentindo o prefeito de Wuhan e líder do Partido em Hubei, por um lado, e decretando o bloqueio da cidade e, em seguida, da Província “independentemente de qual seja o custo” econômico local para, provavelmente, evitar uma suspensão geral da atividade econômica em toda a China. O que aconteceu na Europa, e depois no mundo todo, mostrou que este cálculo, sem dúvida brutal, não era absurdo, uma vez que a China controlou a explosão da pandemia em todo o seu território. Esse “sucesso” foi facilitado pelo fato de não haver obstáculos para tomar uma decisão excepcional, por um controle das informações. E toda a questão rapidamente se tornou a seguinte: certamente a China controlou a primeira onda da epidemia, mas essa experiência é generalizável para regimes de democracia parlamentar representativa?

Por outro lado, é difícil fazer um balanço geral da política chinesa em relação à pandemia, pois a transparência e a liberdade de acesso a qualquer informação não são garantidas. As democracias ocidentais rapidamente se interessaram por Taiwan, Cingapura e Coreia do Sul.

IHU On-Line - A China tem sido criticada por alguns atores internacionais por causa da pandemia de covid-19 e muitos apontam para as consequências internacionais da dependência chinesa. Como o senhor vê a situação da China nesse caso e sua relação futura com os países do ocidente?

Yann Moulier Boutang - Como expliquei na pergunta anterior, sem ceder às alegações americanas (de culpar a China pela origem da pandemia e pela ocultação voluntária de informações que teriam permitido deter a primeira onda na Europa e em outros lugares), podemos continuar solicitando informações mais transparentes sobre a fase do outono de 2019 durante a qual a epidemia se incubou (é, além do mais, o que pede a OMS, que deseja poder investigar no local).

O balanço final do número de mortes ligadas às formas graves da covid-19 provavelmente será revisado para cima, e a origem exata da eclosão do vírus também (em particular o aspecto da zoonose, ou seja, o papel da industrialização selvagem na China, que está caçando cada vez mais animais selvagens, como os morcegos, de seu habitat natural) deve ser esclarecida. A epidemia, longe de ser uma simples demonstração da “superioridade do sistema político chinês” para controlar este tipo de vírus, continuará a representar, em suas consequências, um verdadeiro desafio, pois além da confusão inicial, as democracias europeias poderiam ter experimentado formas de respostas mais ágeis, flexíveis e diversificadas. A impotência inicial das democracias, sua dificuldade de se fazerem obedecer, tem por contrapartida uma faculdade de se corrigir, de alterar sua trajetória, o que pode ser muito útil se a humanidade for confrontada com novas ondas de coronavírus.

IHU On-Line - No início da pandemia, a União Europeia recusou ajuda financeira para a Itália e, posteriormente, a Comissão Europeia desculpou-se pelo ocorrido. O que essa crise revela também sobre a situação da União Europeia e quais são as possibilidades de resolver a crise do bloco?

Yann Moulier Boutang - No plano de fundo da pandemia de covid-19 ocorreu um episódio menos divulgado e, contudo, crucial. A Itália, o país mais afetado da União Europeia desde que o Reino Unido deixou a comunidade, rapidamente pediu ajuda europeia. Depois de algumas lamentáveis confusões durante as quais os países vizinhos tentaram obter máscaras e respiradores em detrimento da Península, relutantes a qualquer solidariedade concreta, a Comissão Europeia mediu os danos colaterais que a falta de solidariedade poderia causar ao conjunto do projeto europeu. Em uma desastrosa primeira reunião do Conselho Europeu, no final de março de 2020, na qual os representantes holandeses, dinamarqueses e alemães não quiseram ouvir o pedido italiano de assistência financeira, além dos empréstimos contraídos em âmbito nacional, Giuseppe Conte, chefe do governo italiano, recusou-se a assinar o comunicado final e obteve o apoio de nove países que representam 60% do PIB da União (todos os países latinos, incluindo a França e a Eslovênia, além da Irlanda, Bélgica e Luxemburgo). A decisão foi adiada para a reunião dos grandes tesoureiros da União, realizada em 29 de março. Na véspera, Jacques Delors, 95 anos e ex-presidente da Comissão Europeia, rígido como a estátua do Comandante, instou os Estados-Membros a mostrar solidariedade.

 

Formigas e cigarras na crise

 

O Norte da Europa, rapidamente chamado de “clube dos tacanhos”, ou mais educadamente, “clube dos austeros” (isto é, os Países Baixos, a Dinamarca, a Suécia e a Áustria – a “nova Liga Hanseática”), admitiu que era necessário recorrer a uma assistência financeira extraordinária, mas no âmbito do MES (Mecanismo Europeu de Estabilidade), forjado na dor e nos compromissos em plena crise grega (2010-2012), ou seja, mobilizar parte dos 700 bilhões de fundos de reserva. O MES concede empréstimos, mas os condiciona à política econômica e orçamentária do país solicitante. Argumento inadmissível para a Itália, Espanha ou Portugal. A Alemanha, que se deu conta da seriedade dos gritos em toda a Europa, começou a fazer concessões e falou em contribuir com um trilhão de euros para o pote comum.

Deve-se dizer que, enquanto isso, a crise aumentava de hora em hora e que a economia mais forte deixava avistar no horizonte imediato, apesar do seu pequeno número de mortes, o mesmo movimento de declínio em massa do crescimento que ocorria entre seus parceiros. A crise foi simétrica: não se tratava mais de ajudar um país que seguiu uma política econômica e orçamentária defeituosa, como no caso da Grécia. A Comissão Europeia falara de uma ajuda de 110 bilhões de euros para financiar o desemprego parcial, o Banco Central Europeu - BCE desembolsou uma garantia de empréstimo de 750 bilhões. Tornou-se evidente, até para as formigas da ortodoxia orçamentária estrita, que o princípio “os contribuintes dos países virtuosos não têm de pagar pelas cigarras do sul” não salvaria mais do desastre anunciado do que durante a crise de 2008.

Como sempre, observaram os pessimistas, o Conselho enviou o incômodo pacote de volta à Comissão, instruindo-a a fazer propostas antes do verão. No entanto, pontos significativos foram alcançados já em abril. A natureza condicional dos empréstimos do MES seria muito vaga: todas as despesas relacionadas ao coronavírus seriam elegíveis. A ajuda a um país não seria limitada a uma porcentagem do seu PIB. Mas, acima de tudo, os fundos do MES não seriam suficientes (seu presidente, além disso, havia alertado para isso). E a ideia de um plano de recuperação em massa foi concebida, mesmo que suas modalidades ainda não tivessem sido finalizadas.

Aninhou-se a ideia de que boa parte dos montantes a serem financiados seria imputada ao orçamento da Comissão. Este princípio não parecia grande coisa, exceto que abria caminho para uma União fiscal, portanto, para transferências (e mais simplesmente para empréstimos reembolsáveis). O fato de que esses montantes sejam financiados por títulos específicos do Tesouro (chamados de “coronabônus”), como pedia o grupo dos 9, ou por títulos da Comissão, é uma questão de detalhes. O que não é insignificante, no entanto, é admitir que o orçamento europeu experimenta, assim como os Estados-Membros, um aumento muito importante e um déficit. E, portanto, que a Europa possa emprestar com base na sua moeda. Haverá uma mutualização das dívidas.

Todo o compromisso europeu desde Maastricht entre federalistas e partidários de uma confederação tinha sido o de federalizar (pelo menos na zona do euro) a política monetária, mas deixar cuidadosamente para cada Estado a política orçamentária, estipulando que o BCE não deveria ajudar a suprir os déficits orçamentários de um país. Com a ajuda da crise do coronavírus – que mergulha, como aconteceu depois da crise de 2008, os orçamentos nacionais no vermelho por um longo tempo, mas desta vez de maneira mais forte e universal –, o oxímoro federação dos Estados Nacionais está se desatando. A relação de forças se desloca a favor dos federalistas. Já, como notaram os nossos observadores soberanistas, o BCE começou a comprar títulos dos países membros. É verdade que ele não subscreveu imediata e diretamente esses bônus do Tesouro Nacional. Reparo! Ele se contentou em comprá-los no mercado de segunda mão, ou seja, dos operadores que os tinham adquirido. Isso não enganou ninguém. Menos ainda os banqueiros centrais. O velho debate naufragou diante da enormidade da nova dívida.

Mas ainda não se tratava de financiar diretamente o déficit de um orçamento europeu que, por definição, não poderia gastar mais do que suas receitas. Não era questão de um Tesouro Europeu, porque significava uma política fiscal comum. Contudo, pouco antes da crise do coronavírus, o debate político no Conselho Europeu ainda se concentrava no velho quadro das instituições existentes, no aumento ou na redução modestos em ambos os casos do projeto orçamentário 2021-2027. Os Países Baixos, seguidos pela Áustria, e não muito longe atrás pela Alemanha, queriam conter o orçamento de pouco mais de 1% do PIB da União (cerca de 15 trilhões de euros), ou seja, 154 bilhões de euros por ano. Os mais ambiciosos e gastadores, incluindo o Parlamento Europeu, queriam chegar a 200 bilhões. Mas não tinham o vento em popa no mês de fevereiro.

Essa briga, muitas vezes áspera e sem graça, foi completamente abafada pela chuva de dinheiro e de dívidas futuras. A linha Maginot dos antifederalistas, uma espécie de Liga dos Contribuintes (da qual tivemos um aperitivo com a Liga Lombarda na Itália com a mesma recusa do Norte em pagar pelo Sul), foi completamente destruída. Esta batalha, que relega o famoso Brexit ao posto de peripécia subalterna, é crucial para o futuro da construção europeia. Aqueles que queriam que ela ficasse nos bastidores, entre os especialistas da Europa – este edifício tão complexo cujo esboço de Constituição, em 2004, compreendia 448 artigos em 475 páginas –, foram tomados pela realidade. No dia 5 de maio de 2020, o Tribunal Constitucional alemão de Karlsruhe transformou o debate em uma verdadeira crise política da União Europeia.

 

A bomba de 5 de maio em Karlsruhe

 

Basicamente, adotando as teses federalistas e fazendo referência à carta dos Tratados, a sentença da Corte alemã determinou que o governo controlasse o BCE, que adquirisse, através da política de flexibilização quantitativa, bilhões da dívida pública dos Estados sem respeitar as regras de proporcionalidade dos créditos assim concedidos ao PIB dos Estados-Membros (favorecendo assim as transferências para os países beneficiários e uma mutualização de fato das dívidas). A propósito, ela acusa o BCE por suas taxas de juros negativas de penalizar a economia dos cidadãos alemães. Solicita também que a Comissão não ultrapasse esses mesmos limites. Por fim, e é sem dúvida o mais grave, questiona a preeminência do direito comunitário, inclusive em matéria constitucional (acórdão Costa, 1965), e, portanto, o do Tribunal de Justiça da União Europeia, com sede em Luxemburgo.

Ao proceder desta maneira, a Corte muda o veredito, porque, na questão dos auxílios à Grécia e da política do BCE, se desvencilhou de uma denúncia apresentada pelos contribuintes alemães e remeteu-a para o Tribunal de Luxemburgo e, em seguida, ao julgamento deste mesmo Tribunal endossando a política do BCE (para constar, a Corte e Luxemburgo eram presididos por um juiz grego). Este surpreendente ataque alarmou os espíritos que viam nisso um prenúncio da implosão da União como resultado da crise da covid-19.

As reações europeias foram ainda mais inflamadas quando a posição da Corte de Karlsruhe jogou água no moinho do clube dos tacanhos. A Comissão Europeia, liderada por Ursula van der Leyen, uma cidadã alemã, não hesitou em levantar a ameaça de um processo de infração contra a Alemanha diante do questionamento da justiça europeia. O Tribunal de Justiça de Luxemburgo, em um comunicado glacial, explicou que não precisava comentar o mérito de uma sentença de uma câmara inferior na hierarquia das jurisdições e limitou-se a indicar que a abordagem da referida Corte violou os tratados e colocou em risco toda a estrutura institucional da União.

 

A derrota validada dos confederalistas

 

A chanceler alemã, perante a Câmara dos Deputados, contentou-se em dizer: “Isso vai nos encorajar a fazer mais em termos de política econômica para promover a integração”. Mas anunciando que a Alemanha estava pronta para colocar 1 trilhão de euros sobre a mesa, soma que é maior do que o PIB anual de 23 dos 27 membros, ela indicou claramente que a política econômica e, portanto, a política orçamentária, seria mais integrada, o que significa que, em troca de mais solidariedade, haveria mais federalismo. Portanto, um orçamento federal maior e a possibilidade de Bruxelas tomar empréstimos diretamente no mercado de capitais.

De fato, o fardo desesperado dos federalistas diante do risco cada vez mais claro de derrota em campo aberto que aguarda por eles levará ao efeito oposto daquilo que estavam procurando: em vez de reconsolidar a soberania nacional, sua tentativa não deixará à União Europeia outra escolha senão reformar os Tratados no sentido “desta integração cada vez mais profunda” que aparece em seu preâmbulo e que levou o Reino Unido a fazer-se ao mar, mesmo que uma pesquisa divulgada no dia 26 de junho indique que em um novo referendo o Brexit receberia apenas 35% dos votos favoráveis, contra quase 57% dos entrevistados que optariam por permanecer na União Europeia [2].

 

Lógica da Corte alemã

 

É preciso entender a lógica da Corte alemã, herdeira de uma tradição jurídica do final do século XIX e que persistiu até sob o regime nazista para se tornar, com a República Federal, uma obsessão pela defesa dos indivíduos no ordoliberalismo (diante do modelo comunista). A tradição alemã, que anda de mãos dadas com uma cultura de compromisso formal ex ante, quer que se proceda de acordo com o que está escrito. Ela não gosta dos funcionamentos que não seguem o consenso estabelecido. Uma dívida é uma dívida, e deve ser quitada (esquecendo-se das reparações nunca pagas completamente depois da Segunda Guerra Mundial).

No BCE, os membros do Bundesbank foram muito reticentes com as “medidas não convencionais” e sua flexibilidade para salvar o euro. Porém, regularmente colocados em minoria no Conselho Executivo do BCE, os falcões do Bundesbank tiveram que se curvar. Durante a crise grega, Thilo Sarrazin, membro do Conselho de Administração de maio de 2009 a setembro de 2010 e membro do Partido Social Democrata (SPD), renunciou em decorrência do escândalo provocado pelo seu best-seller A Alemanha se desintegra e, no mesmo ano, escreveu outro panfleto, A Alemanha não precisa do Euro. Esta opção constituirá a base da criação do Alternative für Deutschland, o partido de extrema direita cujo porta-voz será, durante dois anos, o economista liberal Bernd Lucke. O nome desse novo partido era uma resposta a Angela Merkel, que havia justificado a ajuda à Grécia endossada pelo BCE, dizendo que não havia alternativa a esta solução para salvar o Euro.

Dez anos depois, tem-se a impressão de uma cena que se repete em relação à Itália e, rapidamente, em relação a todos os Estados-Membros. O resultado é o mesmo que durante a cruzada grega: a Alemanha não pôde se esconder dos fatos e, acima de tudo, caiu no caso do federalismo econômico e político reivindicado. O acordo franco-alemão entre Angela Merkel e Emmanuel Macron foi um momento decisivo. Como sempre, mas desta vez a mudança alemã é sem volta. Os austeros estão confinados a uma batalha defensiva. Os Países Baixos foram os primeiros a abrandar. No momento, eles negociam o valor do orçamento de retomada e Emmanuel Macron foi visitar o primeiro-ministro holandês para evitar humilhar os “austeros”. Ninguém duvida que esses países obterão garantias sobre o uso desses fundos, o que fortalecerá a federalização de fato da política orçamentária. Permanece a alteração dos Tratados, o que requer a unanimidade dos Estados-Membros e do Grupo de Visegrado (Hungria, República Checa, Eslováquia e Polônia), muito desconfiado com a tutela política da União, especialmente sobre as questões da independência da justiça, e que tem, no entanto, interesses econômicos opostos aos austeros, que são muito minuciosos em relação à democracia.

A Suprema Corte da Alemanha acalmou-se um pouco com a eleição de um novo presidente e a forte reação do executivo alemão que, além disso, obteve a presidência rotativa da União para o segundo semestre de 2020. Mas podemos prever que esse veredicto de sua Corte Constitucional obrigará a União Europeia a formalizar em um novo Tratado, o que tem sido a prática real da União Europeia para sobreviver. O “federalismo rasteiro”, como o definem os ingleses, que conseguiram entender a jurisprudência que inerva a constituição material do edifício europeu, caiu na vista de todos. A constituição formal da Europa terá que se unir à sua constituição material. E isso será cada vez mais federativo. Trata-se da soberania europeia nos campos da saúde, da indústria e dos orçamentos, e não mais da soberania tão cara aos neonacionalistas.

IHU On-Line - Qual é o papel da diplomacia vaticana nesta crise pandêmica? Alguns avaliam que o Vaticano tem ocupado o vazio deixado por grandes líderes mundiais, como China e EUA. Concorda?

Yann Moulier Boutang - Em uma ordem mundial neoliberal dominada até agora pelo livre comércio e pelo triunfo do capitalismo financeiro, mas também pelas reações populistas e xenófobas que ele engendra, o papado foi capaz de representar uma das vozes fortes. Sobre o escândalo das desigualdades, a injustiça, os tratamentos indignos infligidos aos migrantes às portas da Europa, a destruição do planeta e as condições de vida, o Vaticano fez ouvir palavras revigorantes para muitos daqueles que estão envolvidos em ONGs. Se considerarmos que a crise da covid-19 trouxe para o primeiro plano um questionamento radical dos objetivos e métodos do desenvolvimento econômico, particularmente no plano da ecologia, e que a questão da vida (e da saúde) dos idosos (uma parte crescente da humanidade) não tem sido subordinada ao crescimento do PIB, nos países mais moderados, ou às teses assustadoras e eugênicas da imunidade coletiva, como no Brasil e nos Estados Unidos, então os valores da vida, da justiça e do cuidado (care), entendido como imperativo da caridade nas sociedades modernas, voltam a ter importância.

 

Papel das igrejas

 

Por outro lado, o tipo de nova guerra fria pós-moderna dos Estados ou dos Impérios que sabotam metodicamente as instâncias de diálogos internacionais, ou tentam manipulá-las grosseiramente, assim como as posturas populistas que pregam o ódio, representam ameaças reais à paz no mundo. Talvez tenha chegado o momento nestes tempos de pandemia global (cujos efeitos catastróficos ainda não vimos nos países mais pobres) que as Igrejas, incluindo obviamente a de Roma, que tem uma audiência muito grande, não se contentem mais com um papel de autoridade moral. A iniciativa dos encontros de Assis sobre a nova economia deve, na minha opinião, ser ampliada no futuro para abarcar os bens comuns em seu conjunto, incluindo os da política (os processos de governança, a criação de opiniões públicas pelas novas tecnologias digitais).

Por outro lado, estou muito impactado com o papel das Igrejas Evangélicas no Brasil, nos Estados Unidos, na Ásia (incluindo China) e também na África. No caso do presidente Bolsonaro, isso é particularmente caricatural. Certamente, os tradicionalistas conservadores católicos atribuem esse desenvolvimento a uma perda do magistério da Igreja Católica, que teria deixado o campo aberto a uma ideologia individualista, familiarista, de promoção social, muito reacionária em questões morais, mas muito permissiva em relação às limitações autoritárias da democracia e dos direitos das minorias étnicas (penso nos ameríndios e em todos os povos autóctones). As grandes religiões reveladas, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo e o budismo (e até o hinduísmo na gigantesca e pouco conhecida Índia), também conhecem os desafios dos extremismos populistas, radicais e terroristas.

O Vaticano II representou um aggiornamento interno da Igreja Católica. Talvez um projeto do tipo Vaticano II, com vistas a um aggiornamento da mensagem das Igrejas do mundo sobre a política e os bens comuns da humanidade, incluindo os da ética do cuidado da terra e da vida, poderia ter um grande impacto e preencher um vazio preenchido atualmente pela necessidade de uma espiritualidade torta e desviada. Admito que acredito mais no poder desse tipo de magistério do Vaticano do que em pequenos jogos de poder com os Estados, já muito tentados a empunhar seu eterno sabre com todas as formas modernas de hissope.

Notas:

[1] Trabalhadores, homens e mulheres, que seguem trabalhando enquanto grande parte está parada. Realizam trabalhos essenciais, mas precários e invisibilizados, em geral esquecidos pelas mobilizações tradicionais. Embora tenham ganhado visibilidade durante a pandemia, sua existência a precede. (Nota do tradutor)

[2] CNN. Four years after Brexit support for the EU surges in Britain, por Luke McGee, 26-06-2020. (Nota do entrevistado)

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