Com Francisco, atualização ou declínio da doutrina social da Igreja?

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12 Dezembro 2017

A doutrina social da Igreja, embora a expressão passe a ser usada pelo magistério pontifício apenas durante o século XX, nasce com a famosa encíclica Rerum novarum, publicada pelo Papa Leão XIII em 1891. Ela tinha a intenção de apresentar uma proposta católica para a organização da vida coletiva.

O comentário é de Daniele Menozzi, professor de história contemporânea na Normale de Pisa, estudioso do papado moderno e contemporâneo, publicado por Adista – Segni nuovi, 16-12-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.

Essa proposta coloca-se em contraposição tanto ao arranjo liberal-capitalista, do qual se denunciam os profundos malefícios sociais causados pela industrialização regulada exclusivamente pela lei do lucro; como da perspectiva socialista, que é apresentada como contrária à natureza humana, pois não respeita um pilar constitutivo de qualquer consórcio civil ordenado, o direito à propriedade privada. A doutrina social é baseada na suposição de que somente a Igreja seria a intérprete exclusiva da lei natural desejada por Deus para os homens, e poderia indicar as normas para uma convivência próspera e pacífica.

Como foi demonstrado pelo teólogo Marie-Dominique Chenu em um profundo ensaio de 1979, a doutrina social representa a ideologia com a qual a Igreja entra em concorrência com as outras ideologias - o liberalismo e o socialismo - que disputam o controle da opinião pública no mundo contemporâneo. Ao se autoproclamar depositária da verdade, inclusive no âmbito político e social, a Igreja se propõe angariar o consenso necessário para a reconquista cristã de uma sociedade que nos tempos modernos havia se afastado dela. O valor universal de uma doutrina preocupada apenas com o bem comum deveria permitir aos leigos que professam a fé – a quem era atribuído o papel de novo braço secular no lugar da figura já extinta do príncipe católico –obter o consenso necessário para aceder ao poder político. Finalmente, assim seria restituído à autoridade eclesiástica o papel de liderança de que a havia privado a modernidade secularizadora.

Com o tempo mudaram as diretrizes de Leão XIII para melhorar as condições dos homens esmagados pelos processos de empobrecimento causados pela revolução industrial. A doutrina social precisou sofrer um processo de adequação às profundas mudanças gradualmente determinadas pelo desenvolvimento histórico. Basta pensar na proclamação da função social da propriedade privada. No entanto, o caráter ideológico da doutrina social não mudou. Pelo menos até o Vaticano II. A assembleia ecumênica precisou, de fato, se confrontar com uma demanda que colocava em questão a própria finalidade da doutrina social: o afastamento da Igreja do homem moderno, que tinha reivindicado a emancipação da proteção eclesiástica para estabelecer as formas de organização da coletividade, não dependia justamente da pretensão eclesiástica de determinar as instituições fundamentais? A resposta do concílio pareceu realmente um tanto ambígua: ele proclamava que o homem possuía uma justa autonomia que a Igreja devia finalmente reconhecer. Mas pelos textos conciliares também resultava bastante evidente que, a definir os limites dentro dos quais essa independência era legítima, ainda era chamado o magistério.

Coube a Paulo VI dar um contributo fundamental para o aprofundamento da questão. Em 1971, por ocasião do octogésimo aniversário da publicação da Rerum novarum, lançava a carta apostólica Octagesima adveniens, em que atualizava o legado de seus antecessores. Em primeiro lugar, em vez de falar sobre "doutrina social", usava a expressão "ensinamento social", de modo que, despotencializando a qualificação teológica das intervenções da Igreja em tal matéria, reconhecia o caráter contingente e variável. Podia assim, de acordo com as exigências pastorais do presente, formular orientações inovadoras. A carta atribuía às comunidades cristãs atuantes dentro das diferentes formações históricas e culturais em que viviam os crentes, a tarefa de definir as linhas de orientação em relação à presença da Igreja na sociedade. Certamente o papel de Roma não era anulado: os fiéis eram convidados a tomar suas decisões levando em conta as elaborações anteriores realizadas a respeito pelo magistério papal; mas, também, era bem claro que a responsabilidade principal estava agora confiada às Igrejas locais. Finalmente, a proclamação de uma posse exclusiva da verdade foi redimensionada: os católicos, embora ainda mantendo a dependência de seus bispos, amadureceriam suas escolhas no diálogo não só com os cristãos separados, mas também com todos os homens de boa vontade.

No entanto, provavelmente o esforço mais significativo de Montini foi com a tentativa de minar o caráter ideológico do ensinamento social da Igreja, lembrando que existia um critério supremo à luz do qual deveriam ser consideradas todas as suas expressões: o Evangelho. Tratava-se, inclusive, de uma proposta sem realizações concretas. Os dois pontificados sucessivos mostraram uma nítida inversão de tendência: a locução "doutrina social" era formalmente re-introduzida nos textos do magistério romano e era reiterada a sua ligação indissolúvel com a lei natural, da qual a Igreja era proclamada a única depositária autêntica. Por outro lado a linha geral de João Paulo II e Bento XVI pode ser reconduzida ao projeto de restaurar, embora em termos diferentes daqueles do papado pré-conciliar – a queda do comunismo soviético eliminava um possível caminho socialista para a solução dos problemas contemporâneos - um sociedade cristã, da qual a Igreja ditava as regras fundamentais. Nessa perspectiva, a doutrina social, mesmo atualizada à luz de uma relação positiva com algumas instituições da modernidade, voltava a adquirir o papel ideológico assumido nas décadas anteriores ao Vaticano II.

O advento do Papa Francisco delineou uma nova orientação. Se Bergoglio reapresenta a expressão "doutrina social", faz isso principalmente para mostrar que suas posições sobre a relação entre a Igreja e a sociedade estão enraizadas na tradição, de maneira a desarticular as críticas dos conservadores que colocam em dúvida até mesmo a sua ortodoxia. Não é preciso lembrar que apenas o prejuízo cego, ditado pela ignorância histórica, pode levar a avaliações como aquelas desses ambientes. O que importa, porém, é ressaltar que as referências de Papa Francesco constituem um desenvolvimento significativo das formulações de Paulo VI. Afirmando que a Igreja não tem uma receita para resolver as grandes questões que afligem o mundo, aliás, afirmando que tal receita não existe, mas deve ser encontrada através de um paciente trabalho de análise e discussão realizado por todos os homens de boa vontade (cristãos e não-cristãos), ele reconhece a plena autonomia das elaborações em matéria política e social realizadas por qualquer pessoa envolvida na vida pública. Esse reconhecimento, no entanto, não implica em uma renúncia da Igreja em intervir nesse âmbito.

Isso é testemunhado pelos discursos até agora proferidos diante dos movimentos populares. Eles mostram a vontade de Bergoglio para estimular o desenvolvimento sem interferir na sua autonomia. Partindo de um confronto entre o Evangelho e a sociedade contemporânea, ele identifica na atual idolatria pelo dinheiro uma radical contradição com o modelo de relações humanas sintetizado nas bem-aventuranças. Disso extrai a perspectiva de ter que sustentar todos aqueles que, crentes ou não, se dedicam à construção de processos de mudança dessa situação. Não se detém nas modalidades operacionais, confiadas à sua total responsabilidade; insiste, ao contrário, no incentivo para que participem da vida pública, a fim de conseguir uma mudança efetiva das relações humanas em escala global. Nessa perspectiva, a Doutrina social encaminha-se para se transformar em ideologia da reconquista cristã da sociedade e crítica dos arranjos sociais existentes com base nos valores evangélicos.

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