O panóptico do coronavírus rastreia seus contatos

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02 Abril 2020

Quando em maio passado, a artista trans taiwanesa Shu Lea Chang apresentou no pavilhão oficial de seu país sua complexa videoinstalação de 3x3x6, na Bienal de Veneza, muitos a julgaram de paranoia exagerada, uma ode ao abolicionismo jurídico. O título se refere ao calabouço de 3x3 metros, observado 24 horas por dia, 7 dias por semana, por 6 câmeras no panóptico carcerário. Sua homenagem fervorosa a Michel Foucault, por seu estudo do sistema de vigilância inventado por Bentham, foi uma proclamação a favor da liberdade sexual. Na verdade, Chang estava apenas nos alertando sobre a projeção invasiva da privacidade através da tecnologia do estado e das grandes empresas. A tecnologia tem sido, até agora, a principal arma de Taiwan contra o vilão virótico. Alguns dias atrás, o historiador israelense Yuval Harari falava em uma peça antológica da presente “vigilância subcutânea”. Ou seja, até agora, o controle estatal tem sido epidérmico. Estamos internados em uma nova fase.

A reportagem é de Matilde Sánchez, publicada por Clarín-Revista Ñ, 31-03-2020. A tradução é do Cepat.

E de sexo, melhor nem falar. A tela de aplicativos de namoro com coordenadas urbanas, como o Happen, em breve se transformará - já existente nos países orientais – em um detector infeccioso: onde costumava marcar um contato possível, aparecerá agora uma pessoa infectada. Não é uma metáfora, é literal. Em seu editorial desta semana, a revista The Economist analisa a intrusão na privacidade e já fala sobre um coronópticon, uma grade de hipervigilância tecnológica nunca vista e colocada on-line em países asiáticos que não são precisamente defensores dos direitos civis.

Antes de blindar o país dos voos de chegada do exterior, na semana passada, as autoridades de fronteira chinesas pediram aos viajantes que anotassem um número e deixassem o WhatsApp ocidental no modo “sempre on”, atualizando-o duas vezes por dia. China e Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura têm esse fator em comum. Além do desenvolvimento de testes expressos, os países da Ásia Oriental defendem agora a luta contra a pandemia por meio da tecnologia de comunicações.

As ferramentas disponíveis para as autoridades de saúde geralmente são divididas em três tipos: para fins de documentação (a tecnologia lhes diz onde estão os infectados e os cidadãos em risco). A segunda categoria é modelling, informações básicas para criar modelos populacionais de saúde: reúne dados pessoais com os quais são elaboradas estatísticas de como se espalha a doença. A terceira e mais perigosa é a rastreabilidade dos contatos: identifica aqueles que estiveram em contato com um cidadão, onde, por quantos minutos, bebendo qual bebida e em que mesa...

Nesses países, o contato das autoridades com cada cidadão já é através do contato por celular. Deixou de ser necessário tocar a campainha e se expor. A Coreia do Sul usa seu próprio aplicativo. No país, a quarentena está em vigor apenas para uma parte da população e em poucos dias de vigência do dispositivo digital, quase metade da população está sendo monitorada.

Taiwan rastreia e controla sua gente em quarentena. Por meio do telefone celular, detecta aqueles que foram embora, alerta e avisa as autoridades de suas coordenadas espaciais, caso seja necessário removê-las de onde estão. Sair sem telefone celular, tanto lá como na Coreia, leva à multa e, em breve, acarretará pena com prisão.

Ao contrário da China, a ilha de Hong Kong, uma província autônoma, continua utilizando o WhatsApp. Mas, no continente, a China lançou o HealthCheck, um aplicativo das autoridades de saúde que é instalado por meio de sistemas de conversação como WeChat e Alipay e gera um código de saúde, graduado nas cores verde, laranja e vermelho, de acordo com a liberdade de movimento permitida ao indivíduo. Nele há graus de isolamento, entre deslocamento irrestrito, quarentenas de uma semana e quinze dias. De acordo com Alipay, na China existem 200 cidades que estão usando o HealthCheck para poder se mover mais livremente, em troca de fornecer suas informações.

Em Cingapura, essa cidade-estado tão regulamentada que nos tempos de seu fundador nacional, Lee Kwan Yu, ia preso quem jogava um papel na calçada, a Agência Estadual de Tecnologia e o Ministério da Saúde lançaram, em 20 de março, o aplicativo TraceTogether, que pode rastrear retrospectivamente os contatos próximos de cada pessoa e avisá-lo se um amigo ou conhecido contraiu o vírus. TraceTogether - rastrear juntos, mas juntos quem exatamente? - também avisa via Bluetooth se houver um infectado dentro de dois metros. Caso um infectado assintomático registrado e um cidadão saudável falarem por mais de 30 minutos, a reunião é gravada e é informada às autoridades mais próximas. É particularmente útil, afirmam, para relações entre desconhecidos, viajantes e participantes de um evento público.

A pergunta que se segue é quantas pessoas serão consideradas um público sanitariamente aceitável? Continuará existindo esse conceito político e demográfico otimista das multidões, alcunhado por Toni Negri e Michael Hardt? Por razões de saúde, um governo poderia decidir dispersar vinte pessoas. Será fácil que aceite reunir voluntariamente esse modesto piquete?

Esses países, no entanto, não devem ser considerados os monstruosos pioneiros nessa invasão de telefones celulares. Afinal de contas, são os que estão combatendo melhor o flamejante vilão. De fato, o aplicativo chinês HealthCheck está sendo estudado pela Organização Mundial da Saúde com a finalidade de desenvolver um aplicativo semelhante, o MyHealth. Os governos ocidentais empregam outra retórica e, acima de tudo, se concentram no modelling, pois os telefones podem não apenas coletar dados para o governo, mas também para instituições de terceiros, como laboratórios farmacêuticos, sistemas pré-pagos. Tudo são novas linhas de oportunidades de negócios.

Nesse quadro histórico, a manipulação de dados para fins eleitorais denunciadas por Snowden parece hoje um simples e infantil teste-piloto. As empresas de celulares sabem exatamente onde está cada um de seus bilhões de usuários, e as companhias digitais como Google e Facebook reúnem montanhas de dados úteis para ajudar a prever a expansão do coronavírus (no caso do Reino Unido, essa cooperação é legal e não precisa de aprovação prévia). Google maps, Uber, Cabify e Waze também conhecem as rotas e o histórico de seus usuários.

No entanto, existem estatísticas dentro das estatísticas e descobertas surpreendentes. Assim, o histórico de amizades de um usuário não necessariamente prevê a disseminação do mal, porque no contágio entram em jogo instâncias mais aleatórias: um pacote entregue pelo e-commerce, a maçaneta contaminada da própria casa, em que se apoiou o carteiro. Em uma realidade que tende à distopia, quem se lembra da graça brincalhona que nos causava o otimismo tecnológico de Jeff Bezos, quando anunciou ao mundo, em 2014, que sua Amazon estava trabalhando na futura entrega de pacotes via drone, diretamente para os terraços e varandas?

Há apenas quinze dias, dois países conseguiram implementar respostas muito mais rápidas para padronizar o acesso das autoridades às suas populações em contatos diretos seguros e individuais. Em seu ensaio para o jornal Financial Times, o historiador Harari denunciava que o governo israelita autorizou o serviço de segurança interna a usar o mesmo software e mecanismos de uso corrente em suspeitos de terrorismo para a localização de suspeitos de contágio. Com o objetivo de conseguir maior rapidez e fluidez na detecção, a Coreia do Sul, que lembramos que desenvolveu o primeiro teste de coronavírus quase imediato, agora também possui requisitos mínimos para automatizar o rastreamento de contatos. Se antes podiam localizar qualquer cidadão em 24 horas, hoje, só precisam de 10 minutos.

Até agora, o Google e o Facebook disseram que não pretendem contribuir com seus dados para os grandes estudos de saúde da população que hoje correm contra o relógio e afirmam que os mecanismos de produtos como o Android e seus buscadores “não estão projetados para reunir registros fidedignos para fins médicos, e nem serão adaptados para esses usos”. Mas isso parece um pouco teórico no momento e, digamos de forma realista, dependerá de como continuará se expandindo a pandemia e de quanto tempo se leva para encontrar sua cura e seu antídoto. Bem-vindo ao coronópticon: sorrimos enquanto o celular mede nossa temperatura.

 

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