14 Abril 2020
Monsenhor Markus Graulich, subsecretário do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, escreveu uma série de objeções, bastante rudes e apressadas, contra a Carta sobre o estado de exceção litúrgica. Trata-se de um texto eminentemente jurídico, que mostra, no entanto, não atender nem seu significado nem o escopo da Carta Aberta e das questões que a justificam. O texto pode ser lido aqui.
O artigo é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, publicado por Come Se Non, 13-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Permita-me abordá-lo de forma quase confidencial, como a um religioso salesiano, mesmo que seja raro no mundo da autoridade eclesial. Será ainda mais estranho se alguém teve a paciência de ler a Carta Aberta e sua réplica muito superficial. Por esse motivo, não quero fugir do gênero da "refutação", que V.Sa. me impôs, mas desejo tentar entender o ponto de vista que o senhor expressou, como meu e nosso interlocutor. O senhor escreveu como advogado. Com as melhores armas de um bom advogado. Infelizmente, porém, essas são "armas formais", que permanecem na superfície dos problemas. O senhor nunca entra em nenhuma questão substancial e resolve tudo - ou pelo menos, como veremos, quase tudo - no plano do direito. Parece-me que dessa maneira algo importante não funcione.
Vamos em ordem. Explicarei apenas os pontos que considero mais problemáticos e me permitirei fazê-lo pelo menos com a mesma franqueza que o senhor considerou usar em suas objeções.
a) Antes de tudo, o senhor tenta desqualificar e liquidar a carta no contexto de "polêmicas" sucessivas à Summorum Pontificum. Digamos, entre os atos de insubordinação. Isso, no entanto, não desqualifica, mas qualifica a carta. É exatamente assim. Aquela lex, que o senhor parece tornar absoluta, é apenas um Motu Proprio que, não em sua origem, mas já depois de poucos meses após sua entrada em vigor, produziu frutos que conflitam com o Concílio Vaticano II e com a Reforma Litúrgica realizada depois dele. Como pode um jurista com responsabilidades de governo não levar em conta que as leis, todas as leis, podem ter problemas e causar outros? Que a lex condita não é o "último horizonte que o olhar exclui", mas também deve ser considerada em relação aos fatos e às "lex condenda", de que todo bom jurista deve sempre considerar? Não acredito revelar nada de novo a um canonista experiente. No entanto, o senhor parece trabalhar apenas dentro do horizonte estreito de um "direito positivo", marcado por uma excepcionalidade da qual o senhor não parece estar ciente.
b) Em segundo lugar, o senhor se permite dizer que a carta contém ideias falsas (até erros) e, de qualquer forma, expressa falta de conhecimento e uma leitura ideológica do conteúdo da SP. Acredito que um jurista deveria estar acostumado a medir palavras. Porque se o senhor diz que os 180 signatários - entre os quais estão os principais especialistas alemães, franceses, estadunidenses, espanhóis, etc. - dizem coisas falsas, mas depois não consegue explicar adequadamente o conteúdo do documento que pretende defender, a situação vai mal. Eu digo isso justamente falando a um canonista. Porque o jurista, que lê SP, deve fazer, como todos, um ato de grande humildade e entender que não é repetindo uma formulinha normativa que pode resolver um grande problema. Se o senhor quiser se safar com as formulinhas, misturando-as com insultos contra 180 teólogos, deve saber que não é assim que se enfrentam os problemas institucionais. Lembre-se de que por profissão, já há anos, aprendi a não ter medo dessas técnicas de prepotentes desprovidos de argumentos. Então, se quiser, vamos enfrentar a coisa séria e verdadeira. O que nós não teríamos entendido? Que se deveria falar de "duas formas do mesmo rito romano", e não de "dois ritos"? Esse seria o problema? Mas o senhor, mons. Graulich, pode dizer que tem certeza de que realmente sabe do que está falando? Alguma vez já se fez a pergunta - sistemática, não jurídica - se é suficiente repetir um artigo de SP para estar em paz com a própria consciência? Já se perguntou o que significa a frase "duas formas do mesmo rito"? Vou tentar explicar, com as poucas ferramentas que tenho à minha disposição.
c) A questão é séria, mas também é simples. Havia um rito de 1962, que João XXIII considerava provisório até o Concílio e, depois veio efetivamente o próprio Concílio e a reforma que ele auspiciou daquele rito romano de 1962, que assim se tornou o rito romano de 1970, aprovado por Paulo VI. É claro que se trata do mesmo rito romano, em uma forma anterior e em uma forma posterior. Há plena continuidade do rito, mas é evidente que não há continuidade nas formas. O Concílio solicitou que as formas mudassem para a continuidade do rito. Até agora tudo está claro? Eu quero ser ainda mais claro. Andrea Grillo e Markus Graulich, em 1970, quando o rito reformado entrou em vigor, tinham uma forma, mas hoje, em 2020, eles têm outra. Há plena continuidade nas pessoas: o senhor é sempre Markus e eu sempre sou Andrea. Mas outro era o senhor e era eu em 1970, e outro sou eu e é o senhor hoje. Seria muito estranho que nos pedissem hoje para ser como éramos em 1970, correr e pular como sabíamos fazer tão bem na época ou ler pouco ou nada como estávamos acostumados. Porque a continuidade da pessoa comporta a descontinuidade das formas. É assim que acontece com tudo que vive, mesmo para o rito romano, que tem duas formas diferentes "em tempos diferentes" de sua história. Mas se duas formas diferentes do mesmo rito são tornadas contemporâneas, elas não são mais duas formas do mesmo rito, mas se tornam "dois ritos diferentes". Que não podem estar de acordo. Como se pedissem ao senhor que fosse, contemporaneamente, justamente hoje, uma criança de 1970 e um adulto de 2020. Aquelas duas formas, na continuidade histórica da mesma pessoa, nunca se dão de forma contemporânea. Nunca se pode viver assim. E nenhuma lei, nenhuma afirmação, nenhuma invocação e nenhuma decisão jamais poderão impor que as coisas sejam assim. O que é branco não é preto, mesmo que um papa o decida. O branco permanece branco: um bom jurista nunca deveria esquecer essa verdade elementar.
d) Então, como vê, no coração de SP existe um problema sistemático do tamanho de uma casa. Esse problema é a chave para interpretar a Carta Aberta. Mas o senhor não consegue ver isso. Se um advogado não reconhece essa evidência, se pensa em se agarrar nos espelhos de um enunciado normativo, perde o objeto da discussão e entra no túnel das ficções. Veja bem, Padre, isso não significa, de maneira alguma, negar que SP seja uma lei ainda vigente, que com as modificações normativas desses anos as competências no âmbito litúrgico, limitadas ao rito extraordinário, tenham passado primeiro a Ecclesia Dei e agora à CdF. Se o senhor ler atentamente a carta, sem pular as linhas, verá que isso não é absolutamente negado, como o senhor afirma que nós estejamos dizendo. Mas aqui está o ponto. O senhor, como muitos canonistas costumam fazer, identifica uma lei com o bem. Mas nem sempre é o caso. Existem leis que não é oportuno serem aplicadas. Por quê? Aqui está outro aspecto que falta em sua leitura. Logo no início, o senhor diz que na carta se pede a transferência das competências da CdF para a CdC. Mas se ler atentamente, verá que o ponto decisivo não é o que o senhor diz. Em primeiro lugar é preciso restituir a autoridade sobre a liturgia a quem a possui primeiro, ou seja, ao bispo diocesano de sua diocese. Nem as Congregações nem o Papa estão imediatamente em jogo aqui. Os bispos não podem ser ignorados. E fico surpreso que um jurista não tenha clara essa nativa autoridade episcopal sobre a liturgia. Nessas coisas, o canonista deveria sempre repetir, como um dever inevitável: ai de quem chama de mal o bem e o bem de mal. Chamar de “enriquecimento” a ruptura da comunhão eclesial permanece um jogo de palavras que manifesta uma grave subestimação da autoridade episcopal e da verdade da liturgia. E tente se perguntar: se o canonista não falar essas coisas, quem as deveria falar na Igreja? Por que os liturgistas devem fazer o trabalho que o senhor deveria fazer?
e) Veja bem, no final, o senhor dá dois saltos mortais muito perigosas, com os quais poderia quebrar o pescoço. O primeiro é: do direito, o senhor passa repentinamente para o fato. Todo o seu castelo de normas excepcionais, no momento em que quer defendê-lo na substância, o reduz a um fato. Nós, digo nós os liturgistas, negaríamos o fato e, como tais, seríamos altamente censuráveis. Mas qual seria o fato? O senhor alude ao dado de fato da possibilidade de "assistir em todo lugar" a uma missa em rito extraordinário. Uau! Que fato incrível! O senhor, no entanto, no momento em que alega o único fato em sua opinião decisivo, comete uma imprudência, uma imprudência grave, porque acelera demais na argumentação e, assim, alega mal o seu fato. O senhor diz "assistir ao rito extraordinário". Muito mal. Escolheu justamente o termo mais infeliz. Então eu vou lhe dizer uma coisa. Sabia que eu "tal fato" o considero impossível? O senhor ficará assombrado, talvez até incomodado, mas "assistir a uma missa em rito extraordinário" é justamente o que a SC 48 proíbe a todos os católicos, ao senhor e a mim. Também o proíbe aos juristas. E o faz desde 1963. Sei que o senhor não tem o hábito de levar a sério os textos constitucionais e dá mais valor aos minúsculos decretos das Congregações. E sei muito bem que é justamente o seu trabalho - uma pequena deformação profissional, como todos nós temos - que lhe faz ler as coisas de maneira imprecisa. Mas justamente o "fato" que o senhor pretende alegar lhe digo que, proceduralmente, não é admissível. Sim, é inadmissível. Sinto muito, no plano do procedimento não posso conceder-lhe isso. Mas, veja bem, não sou eu quem sou tão severo. É o Concílio Vaticano II, que não quer "espectadores mudos" das liturgias eucarísticas. E que precisamente por essa razão decisiva, pediu e exigiu que a Igreja fizesse a reforma do rito de 1962. Aquele rito que agora o senhor se afoba em considerar intocável "in aeternum", o Concílio pede que seja alterado profundamente e irreversivelmente. E talvez justamente esse bendito texto conciliar, de sua parte, e digo isso a sério sem nenhuma ironia, precisaria de uma atenta revisão.
f) Por fim, e em conclusão, o senhor não resiste a opor ao seu suposto "fato" aos "pretensos liturgistas " que não gostariam de reconhecê-lo. Com seus fatos inadmissíveis, o senhor gostaria de silenciar os liturgistas. Que, ao contrário, falam e não se assustam com formalismos vazios. Entre esses liturgistas, digo-lhe: com base no Concílio Vaticano II, o estado de exceção introduzido por SP, com as mais nobres intenções de pacificação há 13 anos, gerou e continua gerando laceração e confusão. Um número considerável de liturgistas, com um senso de responsabilidade, pede formalmente: que se coloque um fim nessa condição distorcida. Que se restitua autoridade litúrgica nas dioceses individuais aos Bispos diocesanos, conforme prescrito pelo Concílio e pela grande tradição eclesial, juntamente com a Congregação para o Culto Divino. Que se saia do "estado de exceção litúrgica" que infelizmente altera de modo grave a normal vida litúrgica da Igreja.
Prezado padre Graulich, tente considerar a questão por esse ponto de vista. É diferente do seu, mas não é nem falso nem errôneo. Simplesmente olhe as coisas por uma perspectiva diferente daquela de um gabinete da cúria. Se o senhor também tentar fazer isso, toda a res lhe parecerá muito diferente: como dizia um grande jurista romano: rem tene, verba sequentur (Conheça o assunto, as palavras virão depois).
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As minhas respostas, em forma epistolar. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU