20 Fevereiro 2020
Em meio ao risco de nova crise, surge alternativa surpreendente. Impulsionada pelo Papa, articulação global com forte presença de economistas, questiona bases éticas do capitalismo e propõe alternativas. Leia Carta dos participantes brasileiros.
A carta é da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco, publicada por OutrasPalavras, 19-02-2020.
Embora poderosa e fulgurante, a Apple puxou, no início desta semana, a fila das corporações globais que soam o alarme de pânico, diante das consequências do Coronavírus. As vendas e os lucros cairão abruptamente neste trimestre, revelou um comunicado oficial da empresa. As pressões vêm de dois lados. Cerca de 50% fábricas da Foxconn, que produz na China a maior parte dos Iphones vendidos em todo o mundo, está parada em consequência da epidemia. Mas as vendas também despencaram, porque as 42 lojas no país – o maior maior mercado consumidor da marca, após os EUA – fecharam e até o momento só sete reabriram. E o drama não é apenas da Apple. Crescem os sinais de que o vírus pode contaminar a economia mundial, advertiu a revista “Economist” em 18/2.
Estamos condenados a um sistema econômico que, além de desigualdade e devastação, produz incerteza permanente? Em maio do ano passado, o papa Jorge Bergoglio apostou que não. Diante do silêncio com que a mídia conservadora e a própria hierarquia católica encobrem suas críticas ao sistema, ele convocou um encontro mundial pela Economia de Francisco. A referência é ao frade de Assis (Itália) que, no século XIII, desprezou a fortuna para abraçar a igualdade e a natureza. A mesma cidade sediará o evento, entre 26 e 29 de março. Já há cerca de 3,3 mil inscritos, de dezenas de países.
Mas no Brasil produziu-se uma movimentação maior. O convite de Francisco entrou em sinergia com um fenômeno novo e pouco observado. Há vários anos, desponta uma geração de jovens economistas claramente opostos à ditadura financeira. Eles se juntaram a ativistas experimentados, mas que encontram pouco espaço nas organizações políticas tradicionais. Resultou que a preparação do assembleia de Assis desdobrou-se em conferências, debates, oficinas, embriões de comitês. Uma reunião nacional, em São Paulo, reuniu mais de 500 pessoas, em novembro. O economista Ladislau Dowbor, uma das referências do processo, considerou-a uma das mais produtivas e inspiradoras de sua longa trajetória.
Outro participante destacado, o historiador Célio Turino, lança uma previsão ousada. Ele acredita que após Assis, a luta pela Economia de Francisco desdobre-se, no Brasil, num movimento social. Seria um passo sagaz, em conjuntura difícil: convidar a população a questionar a naturalidade da “leis” econômicas que produzem desigualdade e alienação; a compreender que elas são frutos de decisões políticas – e que, portanto, podem ser questionadas e transformadas.
Uma Carta expõe a profundidade do desafio a que se propõe a articulação brasileira. Ela sugere que a alternativa para as crises e incertezas da economia capitalista exige o questionamento das próprias bases éticas em que se apoia o sistema. Afirma que, por trás do fantasmas das crises, estão ideias velhas de séculos – como a competição incessante, o egoísmo, a produção sem limites, a acumulação de riquezas e o progresso baseado em extração. Estriam vinculadas não apenas à ideologia de mercado como ao patriarcalismo. Contra elas, seria possível propor uma economia baseada nos valores que nossa civilização associa ao feminino: o cuidado, a colaboração, a generosidade, o cíclico (em oposição ao linear), a distribuição.
A íntegra da Carta vem a seguir. Para examinar em detalhes as alternativas econômicas debatidas no âmbito da Economia de Francisco, vale ler três textos de Ladislau Dowbor (123). Para participar do processo, e do possível movimento que surgirá a partir dele, vale acompanhar o site criado pela Articulação Brasileira pela Economia de Francisco. Boa leitura! (A.M.)
Um ponto de partida.
Uma ponte, como as pontes que Santa Clara de Assis desejava construir.
Direto do Brasil, em Encontro Nacional, escrevemos nossa Carta iniciando pelo significado da Sagrada Feminilidade para a mudança de paradigma na economia global. A Economia, substantivo feminino. Todas as mulheres que nos habitam, a menina que há em mim, a mulher que há em mim, a mulher que é minha mãe, a mulher que é minha avó; a menina que é minha irmã e minha filha, a mulher que é minha companheira, a mulher que é minha mãe, a mulher que é minha avó. A todas essas mulheres, reconhecemos e pedimos perdão. Agradecemos, amamos e honramos os saberes ancestrais transmitidos por elas, pelo feminino que traz a vida em seu ventre.
Nossa proposta de uma economia baseada no feminino, no cíclico, na acolhida, no cuidado e no afeto, pressupõe uma transição radical nos modos e nas formas de produção linear, masculinizada, que impôs uma visão de progresso baseada na extração. Assumimos uma compreensão circular dos processos produtivos. Também expressa um profundo compromisso ético com as gerações que estão por vir.
Escutando a silenciosa linguagem de Clara de Assis, nós nos fazemos ponte a ligar “os que têm de sobra com aqueles que sentem falta de tanta coisa”. Para as novas economias no século XXI, masculino e feminino tem que caminhar lado a lado, ombreados, nem à frente nem atrás, mas de mãos dadas, como o “Irmão Sol” e a “Irmã Lua”. Economia de Francisco e Clara é o que pretendemos praticar e honrar.
Inspirados em Clara e Francisco, manifestamos nosso desejo por uma profunda mudança no enfoque até hoje estabelecido nas relações econômicas. A começar pela divisão sexual do trabalho, valorizando os saberes tradicionais das mulheres e suas formas de cuidado e respeito à natureza cíclica de nossa casa comum, o planeta Terra. O patriarcado reduziu a economia unicamente à dimensão material e produtivista. Essa concepção distorceu o sentido do bem-estar social, produzindo iniquidade e infelicidade. No caminhar junto, feminino e masculino buscam novos paradigmas: da competição para a colaboração; do egoísmo para a generosidade; da exploração para a sustentabilidade; da acumulação para a distribuição; do desequilíbrio nas relações entre pessoas e países para o equilíbrio, com comércio justo e solidário; do consumo desenfreado ao consumo responsável; da ganância ao altruísmo.
A caminho de Assis nos comprometemos com o chamado do Papa Francisco para “realmar a economia”. Uma “economia com alma” comunga as pessoas com todos os seres viventes na Terra, nossos irmãos, filhos da mesma Mãe. Medo, frustração e sofrimento, têm sido as imposições de uma economia sem alma, praticada sob o capitalismo, sobretudo em sua fase neoliberal. Individualismo, consumismo, desprezo ao próximo, egoísmo, vulgaridade, superficialidade e descarte levarão o mundo à ruína e à destruição. Timóteo, entre os primitivos cristãos, já apontava: “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”. Pensamos e pretendemos a economia a partir do Comum, a partir da escala da vida. Não mais a vida servindo ao sistema econômico, mas a economia à serviço da vida.
Uma Economia a serviço da vida precisa levar em conta a espiritualidade como uma dimensão do Ser. Distinta de religiosidade, a espiritualidade não é algo circunscrito às religiões e vem sendo gradativamente estudada nas ciências médicas, já reconhecida como categoria clínica há três décadas pela Organização Mundial de Saúde, assim como nas ciências sociais. Tanto sob a perspectiva religiosa como científica, a espiritualidade deve ser contemplada na Economia de Francisco e Clara a partir do exemplo iniciado pelo jovem de Assis, que se despojou de bens materiais para se enriquecer espiritualmente.
A Economia com alma não subestima a importância dos bens materiais, mas rejeita o culto à materialidade, baseada na ideologia do consumismo. Tal é a loucura do capitalismo e sua apologia ao consumismo que ao invés de fazermos utensílios são os utensílios que nos fazem. Edificamos a casa e a casa nos edifica. Entre as grandes cidades do mundo já proliferam imensos edifícios urbanos com a única finalidade de servirem à guarda de coisas não usadas, a despeito dos limites ambientais do planeta. Edifícios-depósito, verdadeiros monumentos ao descarte e à acumulação.
Um desenvolvimento na escala humana deve resultar em novo paradigma socioeconômico para o mundo, que leva em conta a espiritualidade, a interreligiosidade e o cultivo do Ser. Rompe com a cultura do descarte e vulgaridade e se atenta a outros fatores essenciais para a vida, aspirando abundância em afeto, solidariedade, vida digna para todos, entendimento, proteção, sororidade, convivência, identidade, diversidade, alteridade, solidariedade, empatia, companheirismo, ócio, criatividade, fantasia e imaginação.
Afeto e solidariedade por um mundo humano. Rejeitamos a “natureza não natural”, a “cultura não cultural”, o “humano não humano”. Não queremos ser comandados por algoritmos a maximizarem o lucro, transformando subjetividades em mercadoria. Rejeitamos a vida pós-biológica e a realidade virtual embaralhando a realidade real. Rechaçamos a imposição de um mundo da pós-verdade e do “transumanismo”. Não somos Coisa! Nem permitiremos que nos transformem em máquina para produzir e consumir, meras coisas desprovidas de sentido, sob o controle de gananciosos sem limites.
Conforme alerta Francisco, o Papa: “As gerações futuras vão herdar um mundo grandemente deteriorado. Nossos filhos e netos não têm de pagar o preço da irresponsabilidade de nossa geração e das gerações que nos antecederam”. Vivemos em uma época de profundas transformações. A começar pelas mudanças climáticas. E o tempo para reverter essas mudanças está se esgotando.
Não há mais tempo a perder!
Se a economia mundial continuar baseada no uso intensivo do carbono, caminharemos para o suicídio ecológico. “Há que mudar essa atitude perversa” de negacionismo sobre os efeitos das mudanças climáticas na vida do planeta, como bem aponta o Papa Francisco. Pelos jovens, pelas crianças, pelo futuro dos animais, das plantas, e de todos os seres que habitam o planeta, a Economia de Francisco e Clara só terá sentido se incorporar firmemente a decisão de manter os combustíveis fósseis no subsolo, reduzindo sua extração, até serem plenamente substituídos. A natureza levou milhões de anos para transformar formas vivas em petróleo ou carvão mineral, capturando carbono e colocando-o no fundo da terra. É ilógico, e criminoso com o planeta, expelir esse carbono em um período de menos de duzentos anos, quase que de uma só vez em termos de tempo geológico. Essa desfaçatez está afetando irremediavelmente o equilíbrio do planeta. Resta apenas uma década para contermos o aquecimento global, aponta relatório da ONU, avalizado por toda a comunidade científica. Se ultrapassarmos o limite de 1,5 grau centígrado no aquecimento global, os efeitos serão catastróficos.
Já estão sendo!
Doenças adormecidas ressurgem a cada dia.
As secas, as enchentes, as tormentas e os tornados.
A tenebrosa tarde que se fez noite na cidade de São Paulo, encoberta pela fuligem dos incêndios na floresta amazônica.
O óleo betuminoso a tomar conta de nossas praias; da costa do Maranhão à foz do rio Doce, no norte do Espírito Santo. Óleo que encarde praias, que mata peixes, tartarugas e mariscos. Óleo que impregna arrecifes e manguezais.
Rio Doce, o rio assassinado com a lama da ganância das mineradoras.
Será que não basta para darmos um basta?
Que tormentas mais estamos a esperar?
Quantos rios mais precisaremos matar?
Quantas novas barragens a interromper o fluxo da vida?
Água encardida não traz vida.
Quanto mais água fétida, mais cólera e febre amarela.
Quanto mais fuligem a adentrar em nossas narinas, mais asma e bronquite.
E quando os rios secarem e as matas virarem deserto?
E quando o ar que entrar por nossas narinas começar a arder?
O que diremos aos nossos netos?
O que os nossos netos dirão sobre nós?
Nossa feminina Economia de Clara e Francisco aponta para um novo padrão energético, com produção distribuída de energias limpas e renováveis. A energia do sol, a energia dos ventos, e todas as energias boas que se descobre a partir da boa ciência. Energias produzidas de nova forma, descentralizada, distribuindo conhecimento e permitindo que todos acessem os avanços tecnológicos. Placas solares ou cataventos desenvolvidos nas comunidades, pelas comunidades, unindo saber local com conhecimento científico. Iluminando e aquecendo casas, ruas, escolas e parques. E indústrias. Novas indústrias, ecológicas e sustentáveis, orientadas por princípios da economia circular, com produção descentralizada, sem resíduos, em cadeias produtivas curtas, aproximando produção de consumo. Uma economia integrada, a perpassar todas as dimensões do cuidado com a casa. Oikos, casa, lar, ambiente; Nomein, gerenciar, administrar, cuidar; do grego antigo Oikos/Nomein, economia. A produção na escala da vida, com justiça e equilíbrio, que democratize os ganhos de produtividade, que não podem destinar-se apenas aos donos do capital, mas sobretudo ao trabalho humano.
Produzir na escala da vida também significa preservar a vida dos demais seres, reconhecendo-os como Sujeitos de Direitos. Os animais têm direitos, as plantas, as águas, as flores, as montanhas, todos têm direito à dignidade que preserva o sentido de suas vidas, de sua existência. Essa é a lógica do Teko Porã, o “modo bom de viver na Casa”, dos povos Guarani. Os povos originários deste continente, que veio a ser chamado América, nos ensinam que é preciso cuidar de nossa morada e de nossa mãe, a Mãe Terra, nossa dádiva, nossa Casa Comum. Cabe a cada geração legar um mundo melhor para as gerações seguintes. Essa sabedoria se traduz por Bem Viver, Sumak Kawsay em Quéchua, Suma Qamaña em Aimara, Küme Mongen, em Mapuche. Promover o encontro entre Economia de Francisco e Clara e o Bem Viver significa o reencontro com e entre sabedorias ancestrais, reestabelecendo o fluxo para uma vida em abundância e harmonia. Colocando em questão a própria ideia de Des-Envolvimento, pois para “desenvolver” não é preciso separar. Essa compreensão ocidental de desenvolvimento gera uma falsa ideia de progresso, baseada no individualismo e no interesse privado, desprezando os direitos coletivos. É chegado o momento para uma nova noção de desenvolvimento com a Declaração dos Direitos da Natureza.
O contraponto é pensar uma Economia do Suficiente, do justo e do bom, que atenda a todas e todos com equidade, gerando o Bem Viver. Uma economia que fortaleça laços comunitários a construírem o desenvolvimento coletivo, tendo por foco as comunidades como autogestoras de seus processos de vida. O urbanismo colaborativo, as ecovilas, a agroecologia. A produção de alimentos saudáveis, sem veneno, colhidos pela agricultura familiar ou em hortas urbanas. Moradia digna, trabalho como direito. A livre circulação nas cidades, e entre cidades, e entre países. O convívio com o diverso, a cultura, o lazer. A educação e a saúde como bens comuns, jamais como mercadoria. Que as pessoas vivam bem, e que a boa vida de cada um não resulte em opressão e exploração sobre os demais.
Essa forma generosa de economia remete a formas colaborativas de produção, quando a tecnologia deve ser um vetor de inclusão, jamais de exclusão. Uma tecnologia a favor do humano, em que trabalho autônomo não pode ser sinônimo de precarização do trabalho. A aparente objetividade proporcionada pela técnica leva o mundo a horrores, porque desprovida de sentimento, esfriando e debilitando o próprio sentido da vida. Uma forma dadivosa de economia remete à generosidade intelectual, com o fomento a conhecimentos livres e transferência de conhecimentos e tecnologias para as comunidades, como no caso do software livre, energias renováveis e agricultura sintrópica, integrando, organizando, equilibrando e preservando sistemas energéticos e de produção.
Economias no plural. Economias solidárias e populares, criativas, colaborativas. A economia circular e ecológica. As economias da dádiva, a festa comunitária, a comunhão. A economia feminista, das mulheres. As economias camponesas e tradicionais. A economia do cuidado, a economia doméstica. As economias digitais e do software livre. A economia da cultura. O mundo do trabalho, enfim. As economias vivas.
Do coletivo, do comum. Daquilo que é de todos e que tem que ser repartido entre todos. Na Economia de Francisco e Clara não há lugar para o egoísmo, nem para a ambição desmedida, nem para a acumulação infinita. Nem para bilionários. Sim, um mundo sem bilionários e sem megafortunas. A concentração de riqueza, tal qual se apresenta nos tempos atuais, é infame. Não se pode tolerar uma economia em que, para acumular bilhões (de dinheiros) é necessário deixar outros bilhões (de vidas) sem nada. A era do capital improdutivo tem que acabar. De uma forma ou de outra. E começamos conclamando aqueles que, por diversas circunstâncias, estiverem na condição de detentores de megafortunas, que comecem a repartir, por iniciativa própria, por consciência, assim como fizeram São Francisco, Santa Clara e tantos jovens de Assis.
O mundo não pode esperar mais. É preciso instituir uma taxação internacional sobre fluxo de capitais e movimentações financeiras em Paraísos Fiscais. Lucros e dividendos, grandes Fortunas, artigos de luxo, supérfluos ou que fazem mal à saúde, precisam de taxação específica. Não é possível que aqueles que têm tanto sigam com tantos privilégios, recebendo isenções e subsídios, enquanto bens e artigos essenciais são taxados em razão inversa. Onera-se o trabalho e libera-se o capital. Esse é um mundo ao revés, que cobra muito daqueles que têm tão pouco e cobra tão pouco daqueles que têm muito. A acumulação capitalista se fez a partir da superexploração dos recursos naturais e humanos; o subsídio a tanta ganância foi pago com a vida de gerações inteiras; também as montanhas pagaram seu tributo, os bosques e florestas, repletos de plantas úteis e medicinais, os cursos d’água, os oceanos; sistemas de vida foram alterados, quando não destruídos por completo. Chegou o momento para uma tributação social e ecológica que resgate as dívidas social e ambiental. Bem como a rediscussão do Sistema de Dívida, que escraviza países e pessoas.
O sistema financeiro, controlando um emaranhado de empresas que assolam o mundo, está acumulando tamanha concentração de poder e riqueza que transforma pessoas e países em “escravos da dívida”. Dívida para ter uma casa, dívida para ter um carro, dívida para ter um diploma de nível superior, dívida pelo consumismo. Dívida de Estados a manter países no subdesenvolvimento. Dívida para sujar o nome das pessoas. Dívida para controlar nações. Um mundo de servidão imposto por um Sistema sem controle. Um sistema que controla Estados, Organismos Internacionais e corporações econômicas. Que concentra riqueza e poder com o objetivo de mastigar vidas. Na forma que existe, o Sistema Financeiro precisa acabar. Se quisermos viver a vida tal qual nos foi ofertada, como dádiva e milagre, será preciso reinventar esse sistema.
Pensar um mundo menos desigual é o principal desafio para a Economia de Francisco e Clara. O modelo econômico capitalista e produtivista, tal qual se apresenta em nossos tempos, se contrapõe ao cuidado da Casa Comum. As dimensões do Planeta Terra, nossa Casa, são finitas, e os recursos esgotáveis. É ilógica a prevalência de um modelo econômico que prega a acumulação sem limites e a exploração infinita. É inaceitável um modelo econômico que pretende transformar a última gota de água limpa em líquido pútrido, transfazendo o humano em coisa. A ideologia de mercado, agravada pelo neoliberalismo, está levando a humanidade ao suicídio.
Para que a Economia de Francisco e Clara floresça é necessário assumir essa visão com clareza, sem meias palavras. Nosso método de ação é fraterno, é de paz. Mas sabemos de que lado estar. Nossa opção preferencial é pelos pobres, pelos excluídos, pelos desvalidos. Pelo pão, pelo trabalho, pelo teto e pela terra, pelo planeta. Pelo que é justo. Não nos restringiremos a ações paliativas ou pontuais. Vamos também a elas, ao propor o Mutualismo, a exemplo das Associações de Auxílio Mútuo, criadas pelos movimentos operários ao final do século XIX e início do XX, para mitigar o desamparo a que famílias de trabalhadores eram abandonadas. Em nome da acumulação primitiva do capital, um mundo sem leis e sem direitos se impunha sob a bandeira do liberalismo econômico. Com o neoliberalismo essa regressão e desamparo voltou. Não nos furtaremos a enfrenta-la. Seja lutando pela preservação de direitos trabalhistas e sociais, seja estando lado a lado dos desamparados, aliviando suas necessidades imediatas. Mas também iremos pôr em questão discutir a macroeconomia e o poder que a impõe.
Enfrentar o debate macroeconômico pressupõe firmeza em reconhecer que, no tempo histórico atual, não há como prescindir do Estado como estrutura para promoção do equilíbrio entre igualdade na diversidade, e liberdade no individual e no coletivo. A desigualdade se agravou a níveis nunca vistos na exata proporção em que os Estados foram enfraquecidos, até serem plenamente capturados pelo poder absoluto do dinheiro, degradando o sentido da democracia e do bem comum. Cabe reverter esse quadro. Os benefícios gerados pela Economia Nacional e Global não podem continuar sendo apropriados por uma minoria que controla o poder nos Estados e Organismos Internacionais. A vida deve ser boa e justa para todos.
Políticas públicas de qualidade, inventivas e universais, justas e bem executadas, também dizem respeito à Economia de Francisco e Clara. Assim como a ética na execução dessas políticas. Nós vamos disputar a formulação e implantação das políticas públicas, via Estado e via ações de natureza pública não estatal, na esfera do comum. Sempre com amplitude, em diálogo respeitoso e sem sectarismo, mas assertivo, com estudos aprofundados, experiências concretas e propostas. E traduzido esse debate em linguagem acessível, popular, que desmitifique o conhecimento, permitindo que todas as pessoas possam compreender, ao menos um pouco, o intrincado mundo da gestão do Estado, do Poder Público e das finanças. É preciso mudar a legislação tributária no Brasil e no mundo. Reforma da arquitetura financeira, com fomento a Bancos Públicos e Comunitários; regulação de fluxos de capital; reforma tributária, com desoneração do consumo popular e cobrança de impostos sobre propriedades, heranças e renda de capital; redução de subsídios a combustíveis fósseis e incentivo às energias renováveis.
Reunidos no Brasil, reafirmamos a importância e necessidade de consolidação de propostas e experiências iniciadas em nosso país. Propostas que precisam ser reapropriadas por nosso povo, bem como ofertadas para o mundo. Como já acontece com algumas políticas públicas idealizadas e experimentadas por aqui. A Renda Básica da Cidadania, iniciada como Bolsa Família, que permitiu retirar mais de 30 milhões de pessoas da condição de pobreza ou miséria; uma Renda Cidadã, caminhando para uma Renda Universal, a assegurar dignidade e meios de sobrevivência para todas as pessoas. Orçamento Participativo, em que os cidadãos possam decidir sobre a aplicação de recursos públicos em suas comunidades; essa experiência se espalhou por cidades brasileiras e de muitos países, cabe aprofundá-la, contemplando a origem das receitas públicas, não se atendo apenas às despesas, e ampliar para a efetividade em outras esferas de poder, não somente a local. Rede de Economia Solidária e Finanças Solidárias, estimulando a criação de moedas virtuais locais, com controle social e arranjos produtivos locais. Segurança alimentar, como o Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura camponesa e familiar, com incentivo à produção de alimentos saudáveis, livres de veneno, em transição agroecológica. Especialmente na merenda escolar, estimulando a educação alimentar e nutricional, a exemplo do Guia Alimentar para a População Brasileira. Programas como as Farmácias-vivas, que preparam remédios de baixo custo para distribuição gratuita. a partir das plantas medicinais.
Saberes e experiências, nascidos nas franjas, nas bordas do sistema hegemônico, não podem mais ser considerados ações periféricas. Vamos atuar para que passem ao centro do debate sobre economia e desenvolvimento. A economia de mercado tem colocado os povos à serviço da lógica dos mercados, exacerbando comportamentos individualistas, consumistas e irresponsáveis. Cabe jogar luz para outras formas de ser, pensar e agir. As linguagens do coração, da cabeça e das mãos, que brotam do Brasil escondido e até sufocado. Partimos das ações simples, do real, das experiências bem-sucedidas, idealizadas e construídas no seio das comunidades brasileiras, de norte a sul do país, de leste a oeste, das favelas aos pequenos municípios, do litoral ao sertão, das grandes metrópoles aos povos das florestas. Em meio à escassez brotam as saídas. E voltará a esperança.
As moedas sociais, locais, que incentivam as comunidades a aplicarem seus recursos em negócios gerados na própria comunidade, com bancos comunitários que amparem a fiança solidária. As relações econômicas surgidas na base da confiança nas relações interpessoais, as compras coletivas, os pequenos empreendimentos. A exitosa política com a instalação de um milhão de cisternas no semiárido brasileiro. Tal programa, fruto de ampla articulação de organizações comunitárias, vem melhorando a qualidade de vida das famílias que convivem com a seca naquelas regiões. A agricultura familiar e camponesa, em que o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra é o maior produtor de alimentos orgânicos na América Latina, com 14.000 toneladas de arroz orgânico, entre outros alimentos. A rede de Agroecologia e Agroflorestas, com mais de mil entidades. As cooperativas de produção, o cotrabalho, a revalorização dos ofícios e saberes tradicionais, atualizados nas formas contemporâneas possibilitadas pela cultura digital. Os Pontos de Cultura, fomentando a identidade e a diversidade cultural em 1.100 municípios, com mais de 3.500 Pontos, espalhados pelos rincões mais afastados, de favelas a aldeias indígenas. Os coletivos de artistas, de jovens, de mulheres, de negras e negros, dos LGBT. As redes dos povos quilombolas, dos povos indígenas, das comunidades tradicionais.
O quadro acima sistematiza o que já está sendo feito e que pretendemos potencializar. Também apresentamos propostas novas, como a educação dos jovens para a ação solidária e cidadã, com os Agentes Jovens da Comunidade. Uma política pública que ainda não teve escala necessária, mas que já foi experimentada com bons resultados, em uma primeira edição, com 5.500 jovens na cidade de São Paulo, e outra com 11.000 em todo o país. Um aprendizado-serviço junto a organizações comunitárias. O oposto do serviço militar, um serviço civil, que valoriza organizações comunitárias a serem transformadas em potentes espaços de acolhida, aprendizado e experimentação, para os jovens da Economia de Francisco e Clara.
Toda essa vitalidade, presente no solo brasileiro, ensaia novos modelos de política e autogestão. É esse caldo de cultura colaborativa que nos faz ter esperança no Brasil, mesmo em meio a um ambiente de regressão econômica, social, política, e até mesmo civilizatória. Enfrentaremos o horror, os preconceitos e violências, com a Cultura da Paz ativa. A Economia de Francisco e Clara chega para ficar e começa fazendo o necessário; depois, o que é possível; até que estaremos fazendo o impossível. Como São Francisco de Assis, pretendemos realizar o impossível a partir das coisas simples.
Viemos para escutar e para falar. Falamos de democracia porque queremos evitar a barbárie e desenvolver a civilização. Com democracia real, substantiva, para além das aparências, do simples votar. Não somente a democracia representativa, mas participativa (referendos, plebiscitos), tendo a democracia econômica como condição para a democracia social e política. Uma democracia para um mundo diverso, plural, poliédrico, não esférico e uniforme. A beleza do mundo está em conviver com as muitas formas e cores. Nossa beleza reside no fato de que somos iguais e diferentes ao mesmo tempo. Uma democracia verdadeira pressupõe que os povos se apropriarem dos meios de governança e autodeterminação, com Estados e sociedades democráticas, e que os recursos do Estado sejam colocados à serviço da vida, não dos mercados. Para tanto é preciso ir além dos Estados, fortalecendo a Sociedade Civil e Processos Democráticos a partir da Base, autogestionários, comunitários, com conselhos e ouvidorias, com direito à cidade e democratização dos meios de comunicação.
Democratizar os processos de controle cidadão sobre os Estados e a Economia demanda novas leis. A começar por mecanismos que possibilitem uma maior participação de mulheres, negros e indígenas nos parlamentos, como espelhos mais reais da diversidade refletida pela sociedade. Tudo isso demanda legislação e regulação, repensando modelos de financiamento de campanhas eleitorais e governança democrática. Democracia é também acesso à Justiça, com casa familiar inviolável, redes de proteção contra casos de injustiça, abuso de autoridade, perseguição (lawfare), genocídio e crimes de ódio. Há que ter controle social sobre o Judiciário, Ministério Público e as Polícias, fortalecendo as Defensorias Públicas e o exercício da advocacia, justiça restaurativa, ações civis públicas, mandados de segurança e participação comunitária em processos judiciais de interesse coletivo público, via amicus curiae.
Do local e comunitário à governança planetária, com a reformulação e democratização dos Organismos Internacionais. Vivemos todos em uma mesma Casa. É chegado o momento para se abrir espaço para uma Cidadania Planetária. Neste mundo ao revés, imposto pela ideologia neoliberal, as mercadorias e as coisas podem circular livremente entre países, menos as pessoas. Somos todos cidadãos de um mesmo planeta, queremos um mundo com menos muros e mais pontes.
Tratar de democracia é tratar da democratização das cidades, a ocupação dos espaços públicos e os Bens Comuns. Bens Comuns, os bens que são de todos e que não podem ser aprisionados pela ganância. A água, o ar, a saúde, a educação, a cultura e o lazer, o ir e vir. O Teto e o direito à moradia digna. O trabalho como direito. Não é ético um país subutilizar dezenas de milhões em sua força de trabalho. No Brasil são sessenta milhões de pessoas entre desempregados, subempregados e precarizados. É muita energia humana descartada, ainda mais em um país em que há tanto por fazer. Democracia real é debater o mundo do trabalho, a democratização dos ganhos de produtividade e as transformações em curso, a redução da jornada de trabalho. Terra, trabalho, teto e liberdade para que todos possam viver uma vida justa e em paz.
A caminho de Assis nos somamos ao Pacto Educativo Global, também lançado pelo Papa Francisco. Concordamos que é “fundamental trabalhar a partir da educação em sistemas alternativos que não tenham como premissa a ideia de idolatrar o dinheiro. Temos que buscar desenvolver programas e estudos em torno do conceito da economia circular, que contribuam para uma educação consciente da sustentabilidade ambiental, que requer devolver ao meio ambiente o que lhe é retirado”, conforme pronunciamento do Nobel de Economia, Joseph Stiglitz em encontro no Vaticano, com o programa Scholas Occurrentes.
Unidos ao Pacto Educativo Global, propugnamos por mudanças nos currículos dos cursos de economia. Também pela mudança nos currículos de todos os cursos. Da educação infantil ao ensino superior, passando pela educação do trabalho. Buscamos alcançar uma educação integral para uma ecologia integral. Defendemos a valorização dos professores e sua formação para orientarem seus alunos na redescoberta do sentido do Bem Comum. Também valorizando os saberes tradicionais e comunitários como parte integrante dos currículos. Abraçamos uma educação sobre nossos direitos e deveres, sobre a ética da responsabilidade e da reciprocidade, em que a educação econômica aconteça desde a educação básica
Nessa caminhada afirmamos nosso compromisso por uma Transformação Global, tendo por base cinco palavras, que, em português, são iniciadas pela letra E:
Com essa base lutaremos para o surgimento de um novo modelo civilizatório. Nesse modelo, não mais será “um ou outro” e sim “um E outro”. Um mundo em que caibam outros mundos. Que a beleza e a partilha do sensível sejam uma constante em nossas ações, harmonizando forma e conteúdo. Em que a educação seja transformadora, emancipadora, fazendo com que nos reencontremos com a ecologia, nos reconhecendo como uma espécie que não pode viver “à parte” do planeta, e sim como “parte” do planeta. Somos filhos de uma mesma mãe e um mesmo pai. Nossa ação econômica será orientada para novos modos de obtenção e utilização dos recursos necessários ao bem comum, com respeito ao próximo. E que a ética jamais se afaste de nós.
Beleza e alegria, arte e cultura, justiça e felicidade, são os nossos votos para Realmar a Economia. Para tanto propomos trocar os números frios para medição do Produto Interno Bruto dos países, pelos indicadores quentes da Felicidade Interna Bruta. “A alegria é a prova dos nove!”, disse o poeta modernista Oswald de Andrade. A Economia de Francisco e Clara, para dar certo, deverá ter como principal indicador a alegria que irá proporcionar aos viventes desta abençoada província do universo. Quando isso acontecer, saberemos que Clara e Francisco também estarão alegres.
A Economia de Francisco e Clara, inspirada no Cântico das Criaturas, está chegando e nos unimos a ela!
Bela e radiante,
Louvada sejas, com todas as suas criaturas.
A Economia do irmão Sol e da irmã Lua com as estrelas
Louvada sejas, pelo irmão vento, pelo ar ou nublado.
Serena, às tuas criaturas dará sustento.
Útil e humilde, saciará nossa sede.
Os frutos diversos, as coloridas flores e ervas,
Todos somos filhos de nossa mãe Terra.
Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças!
Articulação Brasileira pela Economia de Francisco
São Paulo, 19 de novembro de 2019
I Encontro Nacional, realizado no Teatro de Arena - Tucarena - da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP.
(Carta revista e ampliada a partir do encontro de planejamento com os jovens rumo a Assis, em 18 de janeiro de 2020, na Escola DIEESE de Ciências do Trabalho – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
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Poderá Francisco salvar a Economia e o planeta? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU