A economia de Francisco. Artigo de Armando Melo Lisboa

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22 Outubro 2019

"Ao invés de contrapor a cultura ecológica à tecnológica (e reduzi-la como “tecnocrática”), como propõe o Papa Francisco (especialmente no cap. IV, intitulado “Uma ecologia integral”), caso o cristianismo queira ter um papel no futuro próximo é vital que compreenda, assuma e dialogue criticamente com o mundo da tecnologia e do antropoceno, fertilizando-o e complementando-o, como ensinou Guardini".

O artigo é de Armando de Melo Lisboa, professor na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

Eis o artigo. 

Nada mais é do domínio dos deuses, dos poderes não naturais. O homem que vive no meio técnico sabe bem que não há mais nada espiritual em parte alguma. E, no entanto, assistimos a uma estranha reviravolta: o homem não pode viver sem sagrado, transfere seu senso de sagrado para aquilo mesmo que destrói tudo o que era seu objeto (do sagrado), para a técnica. No mundo em que vivemos foi a técnica que se tornou o mistério essencial
(Jacques Ellul, “A técnica e o desafio do século”, 1954, p. 146).

A ciência moderna com o seu rigor; a técnica com a sua exatidão e ousadia; o espírito caracteristicamente moderno de conquista, organização e elaboração do mundo – constituem autênticos progressos
(Romano Guardini, 1938, p. 29).

O problema essencial à volta do qual gira o futuro (...) é ainda o poder. Não já a sua ascensão, que é inerente ao próprio poder, mas a sua limitação e utilização correta
(Guardini, 1950, p. 112).

Temos demasiados meios para escassos e raquíticos fins
(Papa Francisco, LS, 203).

Compreendendo que vivemos numa gravíssima "crise ecológica", e invocando o grande inspirador de seu pontificado, il fratello di Assisi, o Papa Francisco promulgou em maio de 2015 a encíclica Laudato Si' (LS) [2], na qual busca um "diálogo com todos acerca da nossa casa comum" (31) de modo a ajudar a "construir o futuro do planeta" (13). Como este é o principal documento referenciado na convocatória para um encontro do Papa com os economistas a se realizar em Assis em março próximo [3], revelando sua posição sobre a dimensão econômica, nele nos concentraremos nesta breve reflexão da “economia de Francisco”.

Seguindo a tradição de buscar uma sintonia com a Doutrina Social da Igreja, LS se apresenta em continuidade com a mesma, especialmente como resposta ao convite seu predecessor, Bento XVI, de «eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente» (6).

Nesta carta encíclica Francisco reafirma as linhas centrais em economia de sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (EG), de novembro de 2013 [4], como a de não haver "espaço para a globalização da indiferença" (52) e sua crítica ao "mercado divinizado" (56) [5]. LS, portanto, retoma as extensas, mas genéricas, inflexões econômicas de EG, agora com mais vigor e foco na raiz última que comanda a “economia que mata”.

Centrada na dimensão ecológica, LS aprofunda meticulosamente as causas das "mudanças climáticas" e as razões que levam à depredação dos recursos da terra e à deterioração da qualidade de vida: são as "formas imediatistas de entender a economia" (32), a "serviço da finança e do consumismo" (34). Mais precisamente, são "as novas formas de poder derivadas do paradigma tecno-econômico" (53) e o seu “poder tremendo” (104) que impele à degradação ambiental e da vida. "A submissão da política à tecnologia e à finança" (...); "a aliança entre economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o que não faz parte dos seus interesses imediatos" (54).

O Capítulo III, voltado à "raiz humana da crise ecológica", concentra-se no "paradigma tecnocrático dominante" (101), pois "o problema fundamental" reside no modo como a humanidade assumiu a tecnologia" (106). Sua primeira parte é dedicada à "tecnologia: criatividade e poder"; e a segunda intitula-se "A globalização do paradigma tecnocrático". Para realizar o almejado “bem comum” (156) e a “justiça intergeracional” (159) há que enfrentar o desafio da "libertação do paradigma tecnocrático" (112), cuja "omnipresença" gera a "adoração do poder humano sem limites" (122).

Ainda que reconheça que "não é possível frear a criatividade humana" – pois a "capacidade criativa" e os "dons especiais para o progresso científico e tecnológico foram dados por Deus para o serviço dos outros" (131) – e ressalve que não se trata de "opor-se a toda e qualquer inovação tecnológica" (187), a ênfase de toda encíclica é a dura crítica ao progresso tecnológico gerador do disruptivo “poder tremendo”: “ninguém quer o regresso à Idade da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha ...” (114).

Isto transparece ainda mais quando, por entender que "a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia" (189), propõe que "não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano" (128). Assim, pressupondo que o problema resida na inovação, sugere combater a substituição dos postos de trabalho pelas máquinas para que se possa "continuar a dar emprego" (129).

Nesta mesma linha, descortina que aos “efeitos laborais dalgumas inovações tecnológicas” (46) vêm juntar-se “o ruído dispersivo da informação” advindo do “tipo de comunicação mediada pela internet”, e que se traduz “numa deterioração da riqueza mais profunda” da humanidade: “a capacidade de viver com sabedoria, pensar com profundidade, amar com generosidade” (47).

Na LS, a técnica apenas é legítima quando “tem em vista prioritariamente resolver os problemas concretos dos outros”. Uma “obstinada resistência” propiciará encontrar a “humanidade autêntica que (...) parece habitar no meio da civilização tecnológica” (112). Nesta linha de argumentação, a Encíclica direcionadamente interroga: “Como pode a sociedade organizar e salvaguardar o seu futuro num contexto de constantes inovações tecnológicas?” (177).

Desse modo, com a tecnologia sendo progressivamente tratada como o problema, a resposta que LS apresenta é “apontar para outro estilo de vida”, exaltando ousadamente uma “conversão ecológica” (217) com base na sobriedade, ascese e humildade. Ao sugerir “mudar hábitos nocivos de consumo”, dá como exemplo repensar o uso dos “condicionadores de ar” [6] (55). Sem dúvida que “um regresso à simplicidade” (222) é sempre libertador (223), porém tais conselhos contrários às máquinas ressoam obsoletos ecos luditas decimonômicos [7] e estão na contramão do desenvolvimento tecnológico moderno, levando a Encíclica a correr o risco de perfazer mais uma bela e estéril proclamação ética.

LS, ao louvar “a cultura ecológica” por ser “um estilo de vida” que opõe “resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (111), pressupõe que tecnologia e ecologia são âmbitos diferentes e opostos, como se uma natureza natural existisse independente da vontade humana – quando até as ervas silvestres não crescem livremente, mas decorrente da nossa vontade. Ora, tal dualismo dificilmente contribuirá para aproximar a técnica da ética, distando de construir a urgente autolimitação do seu crescente poder, como se propõe a Encíclica (136). A ecologia, enquanto percepção de que “tudo está relacionado” (117; 120; 142), sempre é muito bem vinda e necessária. Mas, esta percepção não será “integral” e se debilitará se não integrar a técnica dentro do metabolismo socioambiental.

Em Laudato Si' palavras com a raiz "tecn" abundam, com 91 inserções [8] – "tecnologia" e "tecnológico" aparecem 45 vezes, enquanto que "técnic(a/o)" outras 32. Vale destacar que “econ(omia/ômico)” surgem em 94 ocasiões [9]. Ou seja, constatamos que para o Papa Francisco “a deterioração global do ambiente” (3) decorre da (des)ordem econômica, tendo suas “causas mais profundas” (15) gravitando em torno da dimensão tecnológica.

Ora, tornar o âmbito tecnológico eixo principal de análise sem uma adequada compreensão do mesmo (teológica, antropológica e ontológica), pode levar tanto a rejeição das inovações técnicas (e que costuma ocorrer nas análises críticas e pastorais, como é o caso de LS); quanto a uma percepção deslumbrada e deificada do mesmo. No polo dos que, fascinados pelas mesmas, sonham com tecnologias demiúrgicas e incidem numa ideologia fetíchica, realço Teilhard de Chardin [10], o qual, como reforçou mais tarde McLuhan, “pressentiu que a humanidade, através da tecnologia e das redes de comunicação, objetivava um organismo ultra-humano, uma só consciência que une a todos, um sistema nervoso planetário” (PARENTE, 1993, p. 18).

Tudo que nos reveste e somos está impregnado por algum vetor tecnológico. Com tal omnipresença, muitos supervalorizam-no e tratam-no como onipotente e determinístico, perspectiva da ampla maioria dos economistas e denunciada corretamente na LS (122). Mas, sua crítica resvala e incorpora a segunda e oposta distorção que também emerge diante do fenômeno tecnológico, aquela advinda dos que teimam em não reconhecer e compreender a sua óbvia, crucial e irrevogável importância.

Estas duas posturas extremas não discernem a profunda, sinérgica e assombrosa relação do ser humano com a técnica. A relação entre a ferramenta e o humano não é linear nem unidirecional, mas constitutiva deste. “A mesma casa que edificamos é a casa que nos edifica”, afirma a sabedoria grega. Fazemos os utensílios, e eles nos fazem – “modelamos deuses que nos modelam”, provocará Edgar Morin – mas as escolhas humanas são o elemento decisivo. Como arquitetos do nosso destino, participamos do processo permanente de autocriação da vida, pois “o espírito do homem é livre, para fazer o bem ou o mal, para construir ou para destruir”, recorda Guardini (1964, p. 99).

Reluzindo entre aquelas posições tecnofóbicas e tecnófilas encontramos a rara figura de Romano Guardini (1885-1968) que, de forma sábia, soube forjar uma síntese entre as “falsas dialéticas” (LS, 121) que ainda nos aprisionam. Apesar da inflexão crítica à tecnologia em LS fundamentar-se em Guardini – que Bergoglio queria como objeto de um frustrado doutorado na Alemanha nos anos 80 – gerando a aparência dele ser o teólogo central não apenas desta Encíclica, mas o de maior influência sobre o presente pontificado, ela dista de refletir a visão do mesmo, indo inclusive na contramão do seu pensamento [11]. Como demonstraremos, o atual Papa faz um uso parcial e distorcido das considerações expostas por este teólogo, deixando de lado a compreensão integral do fenômeno tecnológico que ele apresenta.

Em “Das ende der neuzeit” (obra de 1950 [12], citada algumas vezes na LS e também destacada em EG); ‘Welt und person” (1938); bem como nas conferências “A situação do homem” e “A máquina e o homem” (1935) [13], Guardini discute de forma aberta, fenomenológica e sem maniqueísmos sobre a tecnificação crescente da existência humana e o significado da máquina para o homem. Diante da “erupção de forças desconhecidas provenientes de profundidades até agora ignoradas (...) o homem começa a conhecer o mundo e, no mundo, conhece-se a si próprio de maneira completamente nova” (1964, p. 96).

Este teólogo católico descortina profeticamente que o futuro se construirá em torno dos fenômenos do “homem não humano”, da “natureza não natural” e de uma “cultura não cultural” (p. 94; 108). Como um viajante no tempo, aqui ele antecipa as linhas gerais do contemporâneo debate em torno do transumanismo, vida pós-biológica e realidade virtual – circunstâncias “pós-modernas” que Claude Lévi-Strauss também vislumbrou de forma lapidar já em 1988: “passamos de uma situação onde os homens se transformavam em máquinas para uma em que máquinas são transformadas em homens”.

As novas realidades decorrem de que a evolução da técnica alarga de tal modo o campo do conhecimento e da ação do homem numa ordem de grandeza que ultrapassa a capacidade dos atos humanos serem processados com base na experiência direta e pessoal. “Uma vez que o homem é o que a experiência faz dele, o que acontece se os seus atos deixam de poder ser objetos de experiência?” (1964, p. 91). Penetrando no micro e no macrocosmos outrora inacessíveis, os humanos constroem realidades cada vez mais abstratas e artificiais, mediadas por aparelhos cada dia mais complicados, algoritmos e inteligência artificial.

A truncada visão de Francisco sobre Guardini e a tecnologia é visível, por exemplo, quando, citando-o, critica à técnica por ela não tratar “de utilidade nem de bem estar, mas de domínio” (LS, 108; Guardini, 1964, p. 77). Na sequência, decorrente deste maligno domínio conclui o Papa que “reduzem-se assim a capacidade de decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa dos indivíduos” (LS, 108).

Todavia, Guardini não maligniza o fato da técnica não ser da ordem da utilidade ou bem estar, nem associa o domínio proporcionado pela mesma à redução da liberdade e criatividade das pessoas, pelo contrário. Para ele a técnica manifesta “a essência da atividade criadora” (1963, p. 147), a qual não se limita nem se define pela procura de utilidade ou bem estar. A “mais pura forma” de agir humano se verifica no “fazer existir uma realidade nova” e no “edificar um mundo novo”; não visando “alcançar um objetivo, mas manifestar um sentido; não realizar um objeto útil, mas criar uma forma expressiva” (p. 146).

Somente o animal, distintamente do homem, “continua inteiramente subordinado à finalidade imanente do viver” (p. 144). Se o “agir animal” deriva “da procura de bem estar”, na vida do homem “entra em jogo um novo fator com sentido inteiramente diferente”: a obra humana, provinda “do espírito, das suas tensões e riscos (...), pode até marcadamente contrariar as necessidades vitais imediatas”. Conclui que “em geral e em definitivo, não é a utilidade que está em causa na técnica, mas a obra de criar” (p. 148-149, grifo meu).

Como fruto da vida determinada pelo espírito – o qual se afirma quando confere ao mundo “uma forma, isto é, criando um mundo próprio” (p. 139) –, a técnica é um florir do ser, pois

“na sua raiz mais profunda, se origina num autêntico querer criador. Nunca a simples finalidade impeliria o homem a correr o risco da técnica. No que tem de mais profundo, ela está ordenada a algo que difere essencialmente da fabricação de ninhos pelas aves, ou da construção da teia pela aranha” (p. 147).

Inspirado especialmente em Pascal – “o homem supera infinitamente o homem” [14] –, mas também em Hegel e Heidegger, Guardini já em 1938 entreviu que na medida em que é uma “realidade corporal e psíquica”, o homem pertence à natureza. Mas ele “não permanece na imediaticidade da ordenação natural”, separando-se dela devido à “força criadora” (1963, p. 18; 20) de sua segunda condição existencial: “a do Sujeito”, a qual lhe atribui “a tarefa de reconstruí-la pelo conhecimento, pela ação e criação” (p. 18). Ou seja, a natureza, “tudo o que há antes da intervenção do homem”, é experenciada como “uma plenitude oferecida de vivências, e, ao mesmo tempo, como uma tarefa proposta ao conhecimento, à apropriação e à atividade organizadora do homem”. O decorrente “devir” desvela um “movimento que simultaneamente transcende a natureza e a pessoa” (p. 15; 25).

Como a “essência do homem consiste em transcender-se a si mesmo, (...) está em jogo na obra total da técnica algo de gigantesco”, pois o que ela trata “é dominar o mundo e construir uma nova existência humana” (1982, p. 208). “Ao exonerar o homem do trabalho direto”, ela permite “alcançar os limites do prodigioso” (p. 213).

Divisa este sacerdote que “na medida em que o homem adquire poder, realiza sua essência humana” (p. 215) como ser criador. Ou seja, 

“o aumento progressivo do poder humano (...) significa uma libertação. O homem ignorante, que não compreende a natureza, é presa do medo. O homem impotente, que não manda na natureza, sucumbe aos ataques das energias desta” (ibid.).

Portanto, diferenciadamente da ótica adotada em LS (65-69), Guardini assume sem pudores e meias palavras o mandato bíblico de “dominar a terra” concedido ao ser humano, o qual tanto não se confunde com um “antropocentrismo despótico” (LS, 68), quanto não é apresentado reduzido ao idílico “cuidado” advindo de um “impulso apaixonado” do “eros cósmico” (1963, p. 212). “Uma propriedade essencial da obra de Deus” (p. 39) é ser o mundo “não um dado determinado e acabado” mas algo em devir com liberdade, autonomia e “atividade própria” (p. 97; 38). Assim, entende que este domínio é experenciado “com a intimidade de uma participação em amor”. Em consequência ao amor divino, Deus confiou todas as coisas como “nossa propriedade e amizade” (p. 117; 115) e concedeu “ao homem o trabalho do mundo” para “as transformar”, pois “nós somos as abelhas do invisível” (p. 40; 116).

Na perspectiva cristã e hegeliana de Guardini, o “gênio criador” é ”algo luminoso”, expressão imediata do “Espírito do mundo”. Com o mundo “entregue às mãos do homem” (p. 22; 29), a sua atividade criadora (a arte e a técnica) representa “um serviço realizado para preencher uma missão divina, a de guiar o mundo”, o que implica uma “grandiosa e perigosa (...) responsabilidade” (p. 36; 29). A técnica não se reduz a um mero instrumental técnico, pois nela assombra o poder do ser, manifesta-se uma potentia que atualiza a obra da criação.

A técnica “constitui a síntese de todos os meios e processos pelos quais o homem se liberta das conexões orgânicas” (1963, p. 23). Obviamente, esta percepção destoa completamente da lírica entonação franciscana da irmandade com o natural e sua “renúncia a fazer da realidade” um “objeto de domínio” (LS, 11). Não é mais possível voltar “ao estado de inocência original” (66), como induz a Encíclica a partir do exemplo de São Francisco. Ainda que não faça menção ao santo de Assis, Guardini explicitamente recusou o canto de sereia de Rousseau, o qual convidou “o homem a voltar-se para a natureza, único ser autêntico e puro” (1964, p. 97).

Todavia, também não se iludiu com sonhos prometeicos de domínio. Alertou, sabiamente, que a vivência dionisíaca do poderio do mundo “pode crescer em tais proporções” a ponto de sufocar a “afetividade do indivíduo”, oprimindo-o (p.97-98). Shakespeariano, Guardini compreende o mundo como lugar de “amor e fúria”, “vida e morte”, “luz e treva”. Ou seja, sabe que o mesmo tanto “condensa a ideia de que é ‘poderoso’ (...), triunfante”, quanto de “violento”, sendo “ao mesmo tempo uma prodigalidade inesgotável e uma força de destruição impiedosa” (p. 95) [15].

Esta situação de domínio, portanto, traz “problemas difíceis, que afetam o fundamento de nossa existência”, pois “quando me apodero de algo e o possuo, essa coisa possui também a mim” (1982, p. 216). Ou seja, as ferramentas e artefatos redefinem nossa relação existencial com o mundo. Caso os “assaltos à intimidade” proporcionados pela vigilância crescente se multipliquem, este “poder, cuja missão era libertar o homem, produz o efeito contrário: a falta de liberdade” (p. 218).

De forma contundente e premonitória [16], assim expressa sua inquietação sobre a possibilidade da aventura humana desembocar “numa catástrofe”:

“o domínio sobre a natureza cresce com uma enorme rapidez, mas o homem não dá impressão de crescer em maturidade (...). é como se da atividade produtora do homem nascesse um poder que, para além dos homens seguisse o seu próprio caminho” (1963, p. 150, grifo meu).

Com o advento da tecnociência, ultrapassam-se os tempos modernos e “começa uma nova era da História. A partir de agora e para sempre o homem viverá lado a lado com um perigo cada vez mais forte e crescente e que ameaça toda a sua existência”. Isto decorre de que o homem moderno “tem poder sobre as coisas, mas (...) não tem poder sobre o seu próprio poder” (1964, p. 111; 110, grifo meu).

“Poderá o homem acolher em sua alma o poder sempre crescente?”, questiona Guardini em 1935 (1982, p. 218). Ora, a objetividade proporcionada pela técnica prescinde do sentimento, o qual se esfriará e debilitará, “pois nenhuma realidade viva pode subsistir quando não exercitada” (p. 219). Assim, o ganho com a dose de liberdade proporcionada pela máquina pode ficar comprometido pois perde-se o sentido substantivo e não utilitário que preenche e dá significado à liberdade conquistada.

Como inexiste “um ethos da aventura técnica” (p. 201), alerta que “deste poder que a máquina proporciona surgem perigos dos mais diversos tipos” (p. 217). Daí decorre que “a tarefa máxima do futuro” é “desenvolver a capacidade de governar as energias já liberadas e que seguirão liberando-se” (p. 201). Deste modo, coerentemente, ao invés de anatematizar este poder tecnológico como “tecnocrático” e “excessivo”, propõe a missão de educar o homem moderno “para o reto uso do poder” (1964, p. 103 – afirmação endossada pontualmente por Francisco: LS, 105).

Nosso teólogo ítalo-germânico captou perfeitamente a dinâmica e os riscos da era de extremos onde surfa a humanidade contemporânea: “Ou o homem consegue realizar corretamente a obra de dominação – e então esta será imensa – ou tudo estará acabado” (1964, p. 78) [17]. Como vemos, trata-se de enfrentar a abissal situação, e não abrandar, renunciar ou demonizar o crescente poder tecnológico, pois este é a expressão incontida e plena do humano e do espírito.

Apesar desta condição ontológica, e das tecnologias terem se desenvolvido mais proficuamente no terreno da cristandade, ao contrário de outras civilizações, o cristianismo não elaborou uma “teologia da tecnologia”. Neste sentido, a contribuição de Guardini é única e excepcional. Ao invés de contrapor a cultura ecológica à tecnológica (e reduzi-la como “tecnocrática”), como propõe o Papa Francisco (especialmente no cap. IV, intitulado “Uma ecologia integral”), caso o cristianismo queira ter um papel no futuro próximo é vital que compreenda, assuma e dialogue criticamente com o mundo da tecnologia e do antropoceno, fertilizando-o e complementando-o, como ensinou Guardini.

 

Referências bibliográficas:

Guardini, R. (1963). “O mundo e a pessoa”. São Paulo: Livr. Duas Cidades.
____ (1964). “O fim dos temos modernos”. Lisboa: Livr. Morais.
____ (1982). “Cristianismo y sociedade”. Salamanca: Sígueme.
Kurzweil, R. (2018). “A singularidade está próxima. Quando os humanos
transcendem a biologia”. São Paulo: Iluminuras.
Marcuse, H. (1982). “A ideologia da sociedade industrial”. RJ: Zahar, 6ª ed.
Parente, A. (1993). “Imagem-máquina. A era das tecnologias do virtual”. RJ: 34.

 

Notas:

[1] Este ensaio origina-se de uma conferência na Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC (antigo ITESC) realizada em 14.10.19.

[2] “Laudato Si” (“louvado sejas”, expressão inicial do “Cântico das Criaturas”, de S. Francisco de assis) está disponível aqui

[3] Acesse o site aqui.

[4] Disponível aqui.

[5] Outras categóricas posições econômicas, que progressivamente distinguem o atual pontífice dos seus precedentes, também despontam na EG, tais como (grifos meus):

“(52) O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. (...) A desigualdade social torna-se cada vez mais patente. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas dum poder muitas vezes anônimo.
Não a uma economia da exclusão

(53). Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. (...)
Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos, «sobras».

(54). Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante. (...)
Não à nova idolatria do dinheiro

(55). Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.

(56). Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. (...)

A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa ...

Não a um dinheiro que governa em vez de servir (...)

(58) O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
Não à desigualdade social que gera violência (...)

(204). Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento econômico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos

(205) Estou convencido de que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e econômica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum social.

(206). A economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o ato econômico duma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo que a política local se satura de problemas por resolver.”

[6] Trata-se dum infeliz exemplo, pois a tecnologia de refrigeração artificial, uma das grandes conquistas da humanidade e decisiva na salvação de vidas, advém da nobre luta em meados do século XIX de um médico, John Gorrie, por salvar seus pacientes hospitalizados.

[7] No início do século XIX surge a primeira expressão moderna de mobilização operária: lutar contra as máquinas, quebrando-as e incendiando-as como se elas fossem suas inimigas, movimento na Inglaterra conhecido como “ludita” por ter como líder “Ned Ludd”, personagem provavelmente fictício.

[8] Ao contrário, em EG elas emergem apenas em duas ocasiões.

[9] Em comparação, as palavras “ambient(e/al)”, ”natur(eza/ral)” (no sentido de “mundo natural”), e as derivadas da raiz “ecolog”, se apresentam 147, 96 e 76 vezes, respectivamente.

[10] A exaltação do poder moderno tem um marco culminante em Ray Kurzweil, o qual, mais que um intelectual a discutir os rumos do mesmo, é no presente um dos principais inventores e do Vale do Silício, criador de tecnologias que todos nós utilizamos. Ilustra sua posição a seguinte frase de Ramez Naam, escolhida por Kurzweil para epígrafe em capítulo de sua obra (2018, p. 343):

“Brincar de Deus” é, na verdade, a expressão mais elevada da natureza humana. Os anseios de melhorar a nós mesmos, de dominar nosso meio ambiente e encaminhar nossos filhos pelo melhor caminho possível têm sido as forças motrizes fundamentais de toda a história humana. Sem esses anseios de “brincar de Deus”, o mundo que conhecemos hoje não existiria. Uns poucos milhões de humanos iriam viver nas savanas e nas florestas, mantendo a custo de uma existência de caçador-coletor, sem a escrita, ou a história, ou a matemática ou sem reconhecer nem admirar a complexidade de seu próprio universo e de seus próprios mecanismos internos”.

[11] Em verdade, no que tange à filosofia tecnológica, LS está mais próxima da visão frankfurtiana, em particular de Marcuse, para o qual a tecnologia não apenas chancela a “legitimidade da dominação”, como também “se tornou o grande veículo de espoliação” (1982, p. 154; 162).

[12] Mas relacionada com textos desenvolvidos desde 1927, informa a introdução (1964, p. 11).

[13] Publicadas em “Unterscheidung des Christlichen” (e na Espanha em 1982).

[14] Epígrafe inicial, e único, do livro ‘Welt und person”.

[15] Ecos schumpeterianos ressoam aqui. Em verdade, Schumpeter – o economista que melhor captou a força da dimensão tecnológica no metabolismo social, contemporâneo de Guardini e como este também vinculado à cultura germânica – vai cunhar sua famosa expressão “destruição criativa” em 1942. É mais provável que Schumpeter, face sua imensa erudição transdisciplinar e de origem católica, tenha se inspirado em Guardini.

[16] Pois esta obra é de 1938, muito anterior ao desenvolvimento da energia e da bomba atômica, por exemplo, sem contar as exponenciais e alucinantes dinâmicas advindas dos contemporâneos desdobramentos da nanotecnologia, robótica, genética e inteligência artificial.

[17] É com esta afirmação que Guardini conclui o parágrafo onde Bergoglio buscou a citação (LS, 108) analisada na página 7 deste ensaio.

 

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A economia de Francisco. Artigo de Armando Melo Lisboa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU