04 Setembro 2018
"Não por acaso são os dois, talvez até os três, candidatos anti-establishment que lideram as pesquisas. Lula, demonizado e crucificado pela mídia no período, com um julgamento casuísta de um juiz que perdeu qualquer aparência de imparcialidade ao abrir áudios com a Presidenta da República numa assimetria inconcebível para qualquer república democrática, figura em primeiro lugar disparado, marcando o rechaço do "desvio de rota" pelo eleitor que vivenciou no período reforma trabalhista e ameaça de reforma da previdência. De outro lado, Bolsonaro, um indesejado pelos principais setores devido ao seu despreparo e sua truculência, figura como o eleito pelas redes digitais e seus trolls que tornam o ar virtual irrespirável. Se incluirmos quem vai adiante, Marina Silva, seguimos no roteiro de alguém exterior ao establishment, a ponto de apenas agora — em período eleitoral — ser lembrada pelos analistas como alternativa", escreve Moysés Pinto Neto, graduado em Ciências Jurídicas pela UFRGS, mestre em Ciências Criminais e doutor em Filosofia pela PUCRS e professor no Programa de Pós-Graduação em Educação e no curso de Direito da ULBRA Canoas, em comentário publicado em seu Medium, 01-09-2018.
Moysés Pinto Neto estará nesta 3ª feira, dia 4 de setembro, na Unisinos São Leopoldo no 4º Ciclo de Estudos – A reinvenção da política no Brasil Contemporâneo: limites e perspectivas.
O Brasil encaminha-se a passos largos para um novo momento autoritário. Ele é reflexo do processo de desconstrução que se constitui em 2013 e não foi respondido organizacionalmente pelas mais diversas instituições, nem pelos movimentos sociais, nesse ínterim. O grito justo de protesto e indignação destituiu a legitimidade dos partidos e do sistema como um todo, colocando a suspeita de que "não nos representam". O vazio de legitimidade protelou-se no tempo e a atitude das instituições foi, desde então, fundamentalmente a denegação.
Assim como a campanha de Hillary Clinton denegou o Occupy Wall Street ao mesmo tempo em que rechaçava o apelo nostálgico ("Make America Great Again") de Trump, com seu "America is already great", também o Brasil viveu duas denegações: primeiro, dos governos petistas que prefeririam confrontar as ruas com a retórica dos fascistas e coxinhas, sem considerar uma possível aliança e momento constituinte a partir das demandas legítimas como transporte público, saúde, educação e negação da violência policial.
Essa denegação foi seguida pelo governo Temer, que diante da incorporação da pauta contra a corrupção das ruas pelo Poder Judiciário com a Lava Jato resolve efetuar um golpe parlamentar acreditando que cortar a cabeça petista seria suficiente para aplacar os ânimos e retomar a "normalidade". A aliança de Temer com Rodrigo Maia e Carmen Lúcia, aliás, é a expressão do velho regime pedindo "calma" às ruas para que tudo fosse colocado no seu lugar habitual, sem os incômodos que os protestos de 2013 e todas as agitações de 2015–2016 proporcionaram. Apesar disso, a Justiça Federal ignorou os apelos e seguiu com a Operação, atacando os principais ministros e o próprio Presidente, e a Greve dos Caminhoneiros mostrou que a insatisfação generalizada apenas se agravou em relação ao período do golpe parlamentar.
Não por acaso são os dois, talvez até os três, candidatos anti-establishment que lideram as pesquisas. Lula, demonizado e crucificado pela mídia no período, com um julgamento casuísta de um juiz que perdeu qualquer aparência de imparcialidade ao abrir áudios com a Presidenta da República numa assimetria inconcebível para qualquer república democrática, figura em primeiro lugar disparado, marcando o rechaço do "desvio de rota" pelo eleitor que vivenciou no período reforma trabalhista e ameaça de reforma da previdência. De outro lado, Bolsonaro, um indesejado pelos principais setores devido ao seu despreparo e sua truculência, figura como o eleito pelas redes digitais e seus trolls que tornam o ar virtual irrespirável. Se incluirmos quem vai adiante, Marina Silva, seguimos no roteiro de alguém exterior ao establishment, a ponto de apenas agora — em período eleitoral — ser lembrada pelos analistas como alternativa. O rumo natural se o plano denegatório tivesse funcionado seria Temer (ou Serra) ou Alckmin.
Mas o mundo inteiro vive esse mesmo problema. Depois de uma "primavera" generalizada de multidões protestando contra a falta de democracia e a ausência de alternativa econômica, a resposta foi o retorno do populismo autoritário — cujo principal arquétipo de Vladimir Putin, da Rússia. Não custa lembrar que, no ecossistema de 2011–2014, Putin esmagou o movimento Pussy Riot, que visava a contestar a cultura hetenormativa e misógina do povo russo. Logo depois, foi Erdogan, na Turquia, e seguiu-se Orban, na Hungria, Trump, nos EUA, o Brexit, a ameaçadora Le Pen nas últimas eleições, o ressurgimento do neonazismo na Alemanha, a aliança fascista na Itália e, por aqui, justamente a figura de Jair Bolsonaro. A verdadeira polarização do nosso tempo é entre esse ecossistema mais ou menos indefinido, que Gerbaudo chama de "anarcopopulista" e eu, cidadanista, de um lado (a confluência das lutas ecológica, feminista, antirracista, LGBTTQ, indígena, pelo direito à cidade etc.); e o populismo autoritário, de perfil etnofascista, que é comandado pelos "homens fortes" e possui seu próprio ecossistema digital abastecido de fake news, supremacia branca, neonazismo, conservadorismo misógino e xenofobia. Enfim, negação da alteridade.
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Para além das óbvias contradições, há verdadeiros “obstáculos epistemológicos” que nos impedem de medir os riscos de eleger um fascista.
O primeiro é não compreender que a indecidibilidade entre o sério e a brincadeira é inerente à estratégia desses próprios candidatos. Quer dizer: o fato de nunca sabermos se é “pra valer” que haverá uma chuva de balas na Rocinha ou um muro na fronteira é uma forma de dar um catch all, abarcar tanto os grupos que são favoráveis quanto os que encaram como uma ironia. Dizer que vai receber com tiros o MST permite abocanhar tanto os que não simpatizam com o movimento, mas encaram como hipérbole, quanto os que tomam a coisa no sentido literal.
O "politicamente incorreto" nada mais é que o manifestação do sadismo na sua forma irônica. Espécie de sadismo pós-moderno, no qual o que é dito é interpretado de modo torcido, a fim de garantir uma aura de proteção das liberdades individuais para que obscenidades possam ser enunciadas. Coisas jogadas para fora de cena, como o racismo que o próprio "politicamente correto", com sua estrutura moralista, literal e eufemística, varria para baixo do tapete.
O segundo é continuar acreditando que para que absurdos aconteçam eles precisam estar chancelados pelo direito. Muitas coisas impensáveis acontecem sem que estejam necessariamente aprovadas pelo Poder Legislativo e Judiciário. Qualquer pessoa que tenha familiaridade, por exemplo, com instituições estatais de sequestro, como prisões ou manicômios, sabe que o impensável acontece lá todo o tempo. É necessária uma lei para que se execute uma pessoa? Para que um militante ambientalista seja assassinado pelos incomodados? Para que os índios sejam baleados por fazendeiros interessados nas suas terras? Para que jovens negros, criminosos ou não, sejam executados?
O risco dessa candidatura não é uma alteração ou revogação brusca da Constituição, mas um aumento ainda mais substantivo da violência nas frestas que separam a lei dos fatos. Esse é o estado de exceção que há muito tempo se vem advertindo estar presente, e não a declaração jurídica proferida pelo chefe do Executivo em caso, sei lá, de guerra. Enquanto ficarmos presos ao olhar jurídico-político estritamente formal, de viés liberal, não vamos conseguir compreender como se arranjam essas forças políticas. Ficarmos com Miguel Reale que, diante do livro de Giorgio Agamben, reagiu: "é um livro que não diz respeito ao Brasil, aqui temos apenas estado de defesa e estado de sítio".
É nesse caso que a leitura macropolítica baseada nos parâmetros clássicos de equilíbrio entre Legislativo e Executivo fracassa miseravelmente: o poder da candidatura é fundamentalmente micropolítico, ele produz subjetivações.
Quem vê o candidato ser recebido percebe que ele desperta TESÃO nos seus adeptos. Não é grande novidade que o vínculo fraterno nesse caso tem um alto componente homoafetivo e é essa aliança que justamente gera seu maior risco, sua contaminação e viralização. Freud, com a psicologia das massas, e depois Reich e Derrida, por exemplo, exploraram o vínculo. Além disso, é patente o lugar estratégico que desempenha o componente misógino, pois esses movimentos são também uma espécie de revanche antifeminista, como Franco "Bifo" Berardi, por exemplo, narrou no seu último trabalho Futurability.
Há uma repetição do pinochetismo como a forma com que o populismo autoritário se manifesta na América do Sul: uma combinação entre tecnocracia econômica e populismo moral guiado pela junção da "defesa da ordem" (baseada na tradição, família e propriedade) e o militarismo. Acresce-se a isso o componente carismático — phonie, como todo fascismo — que Bolsonaro traz. Ele agrega àquilo que os militares conseguiram durante o regime de 64 o componente bufão que, desde Berlusconi, caracteriza os governos autoritários das democracias do espetáculo. Com o acréscimo de prometer que o governo efetivo, aquele que tem mais a ver com prática e gestão que com espetáculo, será entregue aos tecnocratas liberais.
Essa é a doença que mata a democracia e pra isso — como aliás os próprios regimes nazista e fascista, assim como a nossa ditadura militar ensinaram — não é necessário a revogar formalmente.
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Se é assim, por que então não há coesão entre as esquerdas para enfrentar essa ameaça?
Para um setor da esquerda, Bolsonaro seria a assinatura final do processo golpista. Nele, estariam inclusos o impeachment de Dilma, a prisão de Lula e o impedimento da candidatura. Assim, essa esquerda — cuja principal representante é a direção do PT — entende que não é o caso de "normalizar a democracia", uma vez que isso seria aceitar passivamente o rumo que foi imprimido pelas máquinas dos poderes legislativo, judiciário e da mídia. A ameaça Bolsonaro, por isso, no máximo equivale ao impedimento de Lula concorrer.
Para outro, o fator Bolsonaro não comporia o mesmo campo político do golpe. Ele seria uma espécie de saída pela tangente que, de baixo pra cima, parte da população encontrou para escapar das contradições que os petistas apostam, especialmente em relação à figura de Aécio Neves. Mergulhando na cultura, aprofundam a polarização para mais dimensões, construindo um foro próprio que escapa dos radares casuístas da mídia tradicional, do mercado financeiro e do establishment político.
Além disso, estaríamos agora em outro patamar. Independente do golpe parlamentar, que alguns nem consideram golpe, a crise de legitimidade produziu processos de subjetivação que compõem parcela da população e colocam em risco não apenas a esquerda, mas a democracia como um todo. Com todos os defeitos da democracia liberal e representativa, é a partir dela, e não por fora, que podemos conseguir seu aprofundamento. Sem uma alternativa revolucionária no horizonte, é inviável imaginar qualquer alternativa que não uma solução pragmática, dentro do possível, para evitar o mal maior.
Assim, aparecem Ciro Gomes e Marina Silva. E a demanda por uma aliança mais ampla, capaz de abarcar o enfrentamento desse risco e isolar novamente o fascismo para o buraco de onde nunca deveria ter saído.
Ficamos divididos entre a atitude ambígua do PT e as alternativas pragmáticas se apresentam. Para a estratégia petista, esticar a corda do lulismo até o final é a melhor maneira de permitir o atravessamento dos votos para Haddad e ao mesmo tempo marcar posição. Veja-se que o PT, apesar da retórica radical, não cogita abandonar a eleição. Sua política se dá nos marcos da política eleitoral e, com esse gesto, acredita que num só golpe retoma a hegemonia da esquerda e a possibilidade de vitória eleitoral. A ambiguidade favorece a ambiguidade estrutural do PT, que é ter a estratégia de ser ao mesmo tempo partido e movimento, moderado e radical, pragmático e subversivo. O isolamento da candidatura Ciro foi o sinal mais evidente disso e pode gerar, a médio prazo, um campo de afetos parecido com o que aconteceu em 2014 em relação à Marina.
A outra estratégia seria apostar numa aliança sem o PT no comando, aproveitando forças progressistas que não esbarram no antipetismo e podem ao mesmo tempo ser legatárias do lulismo. Essa visão permitiria a pluralização da esquerda, repetindo a mais bem-sucedida estratégia na América do Sul: a uruguaia, na qual a "Frente de Esquerda" não é apenas um partido e seus satélites, mas uma real alternância entre diferentes partidos de viés progressista.
O que divide qualquer composição de esquerda, portanto, é a prioridade: afirmar a candidatura Lula e negar a normalidade institucional do país (que por sua vez pode ser paradoxal em um contexto no qual a principal força inimiga faz justamente o mesmo de modo afirmativo, entendendo isso como fenômeno positivo) ou formar uma coalizão antifascista capaz de bloquear a ascensão do fenômeno.
Se isso pode ser uma estratégia convergente ou antitética é exatamente o que nos separa.
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A ameaça fascista e o que divide as esquerdas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU