17 Outubro 2017
Um temporal atingia o centro de Belém no final da tarde de quarta-feira da semana passada. Um grupo de 44 índios venezuelanos se juntou à multidão de brasileiros para se abrigar embaixo das barracas do Ver-o-Peso, tradicional mercado de rua da capital do Pará. A cena tem se tornado frequente no Norte: indígenas do país vizinho estão ocupando as ruas das principais cidades da região, muitas vezes em áreas de alta vulnerabilidade social, como pontos de tráfico de drogas e de prostituição.
A reportagem é de Leandro Machado, publicada por BBC Brasil e reproduzida por Amazonia.org.br, 14-10-2017.
A circulação dos índios, que originalmente entraram no país pela fronteira da Venezuela com o Estado de Roraima e que vivem em situação de penúria, levantou suspeitas no Ministério Público Federal (MPF). Os procuradores estão investigando se brasileiros estariam escravizando os índios, aproveitando-se deles financeiramente ou atuando como “coiotes” (traficantes de pessoas) para facilitar a circulação dos grupos pelo Brasil.
Os indígenas da etnia warao, que vivem basicamente de pedir doações nas ruas, começaram a chegar em massa ao país no ano passado – um dos motivos da migração seria a crise econômica e política da Venezuela. Inicialmente, centenas deles se abrigaram em cidades de Roraima, como Boa Vista e Paracaima, e também em Manaus. Mais de 500 pessoas ficaram na capital do Amazonas.
Em julho deste ano, porém, pequenos grupos começaram a chegar pela primeira vez ao Pará, e a se instalar em municípios como Belém e Santarém. Há três semanas, esse fluxo migratório se intensificou e mais de uma centena deles desembarcou na capital do Estado.
“Estamos investigando trabalho escravo, tráfico de pessoas e aliciadores que fazem a viagem dos índios mediante pagamento futuro”, explica Felipe Moura Palha, procurador da República com atuação em Belém.
“Alguns coiotes poderiam estar ajudando os índios a chegar ao Brasil e a circular pelas cidades, mediante trabalho ou pagamento futuro. A gente quer saber se há gente lucrando com a desgraça alheia. É o mesmo que aconteceu com os haitianos (há alguns anos, milhares de haitianos migraram para o Brasil). Essas pessoas estariam fazendo os índios trabalhar na rua, e endividando os warao”, diz Palha.
O procurador acredita que, em breve, membros da etnia devem chegar a cidades mais ao sul ou no Nordeste. “A facilidade de doações é que os atraem. Então, é possível que eles migrem para grandes cidades, como São Paulo”, diz Palha.
Em Boa Vista, o órgão chegou a investigar brasileiros que estariam “organizando” a mendicância dos índios em semáforos da cidade e depois retirando parte do dinheiro arrecadado pelos venezuelanos. Um vídeo foi gravado mostrando a operação, mas a investigação não conseguiu reunir provas contra ninguém.
A comunicação com os representantes da etnia warao é bastante difícil, porque eles falam apenas seu próprio idioma e não dominam a língua espanhola ou portuguesa. A BBC Brasil acompanhou um grupo de 44 pessoas em Belém e apenas quatro arriscavam algumas palavras em português. Do total, 23 eram crianças.
A funcionários da prefeitura, eles contaram que procuraram Belém por causa das festividades do Círio de Nazaré, um dos maiores eventos católicos do mundo, que reúne mais de dois milhões de devotos e que ocorreu no último fim de semana. “Alguém falou para eles que, no Círio, eles poderiam conseguir mais doações de comida e dinheiro”, explica Rita Rodrigues, psicóloga de um programa federal que atua com pessoas em situação de rua. Ela e um grupo de médicos vêm acompanhando os indígenas em Belém.
Algumas famílias foram para a cidade saindo de Manaus, numa viagem de barco que dura ao menos dois dias. A travessia custou R$ 50 por pessoa, mediante acerto de pagamento futuro – normalmente, a passagem custa R$ 200. O preço menor é uma das suspeitas de que brasileiros estariam facilitando a migração para explorar economicamente o grupo.
Em Belém, eles estão vivendo nas ruas em situação precária, com problemas de higiene e de alimentação – as crianças estão desnutridas. Segundo o Ministério Público Federal, há informação de que um bebê morreu devido a complicações de saúde.
Diante da insalubridade das condições de vida dos indígenas, o MPF, junto à Defensoria Pública, entrou na Justiça para garantir a eles um abrigo emergencial na cidade. O consulado da Venezuela também tentava conseguir um local.
“Eles estão passando fome, em situação de mendicância, as crianças em grave estado de desnutrição. O Estado brasileiro precisa dar uma resposta para essa situação, precisa dar um amparo para esses refugiados”, diz Palha.
Nessa terça, no entanto, depois de serem abrigados, o grupo decidiu voltar para as ruas e para a mendicância.
Na semana passada, um dia antes do início do Círio de Nazaré, com o centro de Belém já cheio de fiéis, a Polícia Militar chegou a cercar os índios para que os bebês e crianças não se perdessem do grupo no meio da multidão.
Segundo um relatório antropológico do MPF, que passou a acompanhar os indígenas desde o ano passado, os warao que chegaram ao país viviam anteriormente em regiões próximas do Orinoco, o principal rio da Venezuela. Eles são o principal grupo indígena da Venezuela, com aproximadamente 49 mil integrantes.
Durante o governo de Hugo Chávez, a etnia dependia de doações e ajuda de programas sociais. Muitos viviam nas ruas, em cidades como Tucupita e Barrancas. Depois, diante da crise econômica no governo Nicolás Maduro, tanto os benefícios sociais quanto as doações nas cidades rarearam a ponto de obrigar os índios a se mudar.
“Nas cidades venezuelanas, o comércio é o principal meio de acesso dos warao aos bens alimentícios, o qual ficou comprometido com o aumento substancial dos preços de itens básicos da alimentação local, como arroz, farinha de trigo, banana e mandioca”, diz o relatório. “A escassez de comida e seu alto custo na Venezuela eram constantemente ressaltadas como as principais causas para saírem de seu país de origem.”
A migração para obter melhores condições de vida é uma das características dos warao, segundo o MPF. Tem sido comum, por exemplo, algumas pessoas retornarem à Venezuela depois de uma temporada no Brasil.
Em Belém, eram as mulheres que pediam as doações nas ruas – normalmente elas ficam com crianças no colo. Conseguiram arrecadar roupas, frutas, cobertores, refrigerante e dinheiro. Quando a reportagem tentou falar com um garoto, ele perguntou se o repórter era da polícia – um medo constante entre os warao. O MPF também fez uma campanha de arrecadação de alimentos.
“O fato é de que eles estão numa situação de vulnerabilidade extrema. O Brasil não se preparou para recebê-los e, até hoje, o Estado não tem resolvido esses problemas. A gente fica muito preocupado, ainda mais por que a Funai (Fundação Nacional do Índio), que é o órgão que poderia ajudar, está numa crise gigantesca, com perda do orçamento e funcionários”, diz José Gladston, procurador da República em Boa Vista.
“Todos os países do mundo são obrigados por tratados internacionais a dar condições mínimas para refugiados. Esse grupo é duplamente protegido, por ser uma comunidade indígena tradicional e por ser refugiado. A existência deles está ameaçada, eles estão fugindo da fome, numa tentativa desesperada de sobreviver”, diz o procurador Felipe Moura Palha.
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Índios venezuelanos se espalham pelo Norte e autoridades suspeitam de exploração por brasileiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU