“Vivemos de Chávez a Maduro a passagem do totalitarismo à ditadura”. Entrevista com Rafael Luciani

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15 Agosto 2017

“A origem de tudo: Maduro ou Chávez?” A esta pergunta, o teólogo e professor venezuelano Rafael Luciani responde dizendo: “o que estamos vivendo não começa com Maduro. Tem sua origem no totalitarismo que Chávez exerceu e que levou à formalização de uma ditadura na Venezuela. Em 2005, Chávez começa a usar a expressão Socialismo do Século XXI, termo que não existe na Constituição da República aprovada em 1999”.

“A Conferência Episcopal Venezuelana chamou a atenção, nessa época, que isto ‘poderia constituir uma tentativa de impor um pensamento único’”, prossegue o teólogo.

“Para ganhar legitimidade, Chávez convocou em 2007 um referendo para reformar a Constituição, mas perdeu. Ao ser impedido pelo próprio povo, começou a implementar a reforma através de decretos presidenciais. O que lhe permitiu criar, sem consultas e de maneira unidirecional, o marco jurídico e ideológico que hoje vemos consumado na ditadura de Maduro”.

A entrevista é de Alver Metalli, publicada por Reflexión y Liberación, 09-08-2017. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

É possível uma ditadura de esquerda?

O que parecia impossível na América Latina, hoje se vê realizado: as ditaduras não são uma exclusividade da direita, mas também da esquerda, sob a fórmula de governo cívico-militares.

O atual regime de Maduro conserva, por um lado, as velhas formas democráticas, como os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mas todos submetidos à vontade do Poder Executivo por meio das decisões do Supremo Tribunal de Justiça.

Por outro lado, é um projeto cívico-militar. Chávez governou sobre o modelo ceresoliano de exército-caudilho-povo, que sobrevivia graças à imensa riqueza do petróleo. Mas agora que o petróleo não permite isso, e não havendo mais o carisma do caudilho, Chávez, o que resta a Maduro é o Exército como único mecanismo para se manter no poder. Devemos lembrar que quase metade do governo está nas mãos de militares.

O reconhecimento público do atual estado ditatorial veio do lado menos esperado: do chavismo político. Esse reconhecimento foi feito pela procurada da República, Luisa Ortega Díaz, que é uma figura importante do chavismo não castrista.

Ela declarou em março que “o fio constitucional foi rompido”, depois que o Supremo Tribunal de Justiça desconsiderou a Constituição de 1999 e fechou o Poder Legislativo. Após ter perdido as eleições na Assembleia Nacional em 2015, e agora sem a submissão da Procuradoria Geral da República, o Governo conta com dois braços: a força bruta e repressiva das Forças Armadas da Revolução e a construção de uma pseudolegalidade que está sendo construída através do Supremo Tribunal de Justiça e da atual Assembleia Nacional Constituinte. O panorama é muito preocupante.

Cumplicidade e silêncio da esquerda latino-americana?

É triste ter que reconhecer que grande parte da esquerda latino-americana continua dando o seu apoio ao governo de Maduro. Na Venezuela há fome e pessoas morrem por falta de remédios. Quem hoje não tem os meios para conseguir remédios para hipertensão, um remédio comum, sabe que poderá morrer de infarto em um curto espaço de tempo, porque não encontrará este tipo de remédio.

Há alguns meses, o governo não permitiu a entrada de uma grande doação feita pela Cáritas. Hoje vivemos algo que era inconcebível na Venezuela antes de Chávez: uma pobreza que passa dos 70% e quase 30 mil mortes por ano. E isso no país que tem as maiores reservas de petróleo do mundo.

Para entender isso podemos nos referir a duas posturas da esquerda sobre o caso venezuelano. A que é representada pelo ideólogo cubano Atilio Borón, que defende que o conflito venezuelano tem sua origem na agressão imperialista dos Estados Unidos e “se uma força social declara guerra contra o governo exige-se por parte deste uma resposta militar”.

A outra postura é representada pelo sociólogo venezuelano Edgardo Lander, que reconhece que há um fechamento das vias institucionais para resolver o conflito, porque o governo não reconhece a Assembleia Nacional, não permitiu o mandato constitucional de mudar os integrantes do Conselho Nacional Eleitoral, anulou o referendo revogatório e adiou por tempo indeterminado todas as eleições. Para Lander, “estamos muito longe daquilo que poderia ser chamado de prática democrática. Todos os instrumentos do poder são utilizados em função da preservação do poder”. Esta é a posição da procuradora Luisa Ortega Díaz e de boa parte do chavismo não castrista que se opõe a Maduro e que deve ser integrado em qualquer processo de transição.

Há a possibilidade de uma saída negociada da crise?

Não estamos diante de uma simples crise conjuntural. Estamos diante de um modelo ideológico e ditatorial que se quer impor a toda uma população que o rejeita.

Em 2004 começam as viagens do Estado Maior a Cuba para estudar o modelo político do governo perpétuo cubano. Começa na Venezuela a narrativa do inimigo interno, o ideal continental das lutas populares, o discurso anti-imperialista e a justificativa do controle total do Estado com a intenção de manter no poder a revolução bolivariana. Estes são os militares que hoje ocupam os altos comandos e proclamam publicamente “pátria, socialismo ou morte”. É possível mudar isso?

Não haverá mediação bem sucedida na Venezuela sem incorporar o diálogo com os militares, pois são eles que realmente governam. Neste contexto, é importante que a oposição torne público um plano de governo transitório e mostre o rosto de quem encarnaria uma presidência transitória. Mais de 80% do país rejeita a proposta socialista cubana, mas é impossível querer um projeto político alternativo que coloque de escanteio os militares na Venezuela. Não haverá saída viável sem negociar com o chavismo menos ideológico e não cubano, que não está no governo atualmente, e sem os militares. Infelizmente é assim.

Como se vê uma eventual intervenção do Papa? Há forças políticas do lado do chavismo e/ou madurismo que tomariam esse caminho?

O Papa sempre foi coerente e agiu em comunhão com as autoridades eclesiásticas venezuelanas. De fato, em sua reunião de junho passado com a presidência da Conferência Episcopal Venezuelana, manifestou sua total adesão à posição assumida pelos bispos em relação a Maduro.

No entanto, houve uma tentativa soez por parte do governo para desprestigiá-lo e tentar dividir a oposição ao falar de um Papa de esquerda e bispos de direita. Em maio, o secretário de Estado, o cardeal Pietro Parolin, que foi núncio na Venezuela, disse que “há a necessidade de muito boa vontade, a começar pelo governo, que deve dar sinais de que deseja resolver a crise e levar em conta o clamor do povo”.

O posicionamento mais recente é de 04 de agosto, quando o Papa enviou um comunicado através da Secretaria de Estado dizendo que: “a Santa Sé pede a todos os atores políticos, e em particular o Governo, para garantir o pleno respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais, assim como pela Constituição em vigor; evitar ou suspender as iniciativas em curso, como a nova Assembleia Constituinte, que, em vez de promover a reconciliação e a paz, favorecem um clima de tensão e de confronto e hipotecam o futuro; criar as condições para uma solução negociada de acordo com as indicações expressadas na carta da Secretaria de Estado de 01 de dezembro de 2016, tendo em conta o grave sofrimento do povo devido às dificuldades para obter alimentos e medicamentos e pela falta de segurança”.

As condições às quais se refere o comunicado são aquelas que o Vaticano tinha exigido em dezembro: “eleições, restituição das prerrogativas da Assembleia, abertura do canal humanitário e a libertação dos presos políticos”. A exigência destas condições levou a que o governo terminasse o processo de diálogo e negociação.

Tem sido impossível que o setor radical e pró-castrista do chavismo, que é quem atualmente governa, se abrisse a um processo sincero de diálogo sobre estes pontos. Só o chavismo menos ideológico e afastado de Cuba, representado pela procuradora Luisa Ortega Díaz e pelo ex-ministro Miguel Rodríguez Torres, poderia estar aberto a um diálogo sincero para restaurar a Constituição de 1999, que também é defendida pela oposição.

Restou alguém no cenário com autoridade e força para frear e reverter uma escalada para a pura aniquilação da oposição?

Com o plebiscito de 16 de julho passado ficou claro que mais de 80% do país quer uma mudança. Nesse dia, demonstrou-se a capacidade que o povo venezuelano tem, sem nenhum aparelho estatal, para se organizar e realizar uma consulta popular em nível nacional. O próprio povo se organizou e manifestou-se sem a ajuda do Estado. Isso é algo extraordinário. Cerca de 7,6 milhões de pessoas manifestaram-se pela volta da democracia.

Pois bem, nem todos puderam votar, porque em um contexto em que a maioria está passando fome e morrendo por falta de remédios, há uma dependência dessa maioria pobre das cestas básicas (Clap) fornecidas pelo governo e uma ameaça real dos coletivos armados do governo sobre os setores populares, o que torna impossível que as pessoas se manifestem abertamente nessas regiões, porque a ameaça é de morte.

As pessoas estão com fome e com medo. Medo de que sejam mortas por um coletivo por se manifestarem contra o governo, medo de não receber alimentos, medo de perder o emprego. Medo de serem presas e torturadas, como está acontecendo diariamente em lugares como a tumba e o helicóide, entre outros, onde opera o serviço bolivariano de inteligência militar.

Devemos lembrar que, atualmente, a dissidência venezuelana não é processada em tribunais civis, mas militares, e as condenações são “traição à pátria”, que é a mesma coisa que “traição à revolução”. Outro elemento que é cópia fiel do regime castrista.

Quais são as posições dentro da Igreja?

O posicionamento de todas as instâncias da Igreja venezuelana está em plena sintonia. Não há fissuras. No dia 31 de março, dia em que foi realizado o autogolpe do governo, a Conferência Episcopal da Venezuela denunciou que, para o governo, “tudo gira em torno da política, entendida como a conquista do poder, esquecendo as necessidades reais das pessoas”, e pediu que “não se pode ficar passivo, assustado e sem esperança. Temos que defender os nossos direitos e os direitos de todos. É hora de perguntar seria e responsavelmente se não são válidos e oportunos, por exemplo, a desobediência civil, as manifestações pacíficas internacionais, as justas reivindicações às autoridades nacionais e internacionais e os protestos cívicos”.

A essa voz aderiu a Conferência dos Religiosos da Venezuela, no dia 04 de abril, reconhecendo “a falta de autonomia entre os cinco poderes públicos: Executivo, Legislativo, Judiciário, Eleitoral e Cidadão” e ressaltou “a indolência do governo nacional diante da situação crítica que vive o nosso povo, demonstrando, mais uma vez, que o que interessa ao governo é apenas a luta para permanecer no poder” em um contexto de “iminente ditadura”.

Três dias depois, no dia 07 de abril, a Companhia de Jesus na Venezuela, através da revista SIC, do Centro Gumilla, que representa a teologia da libertação no país, tornou pública a sua posição oficial: “como cidadãos e como cristãos, enfrentamos uma ditadura” que foi consumada com “as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal de Justiça na Sala Constitucional nos dias 28 e 29 de março, que representam um golpe de Estado e um desmascaramento definitivo do governo como uma ditadura”.

Hoje, após a fraude eleitoral que levou à instalação da Assembleia Constituinte, em 04 de agosto passado, o jesuíta José Virtuoso, reitor da Universidade Católica Andrés Bello, referiu-se a esta assembleia fraudulenta como a “constitucionalização de uma ditadura militar socialista, como disse a Conferência Episcopal. Vamos ter uma mudança da Constituição para consolidar um regime autoritário, fortemente centralizado na figura do presidente, com amplos poderes sobre o Estado e do Estado sobre a sociedade. E penso que as sociedades não têm saída com um modelo desse tipo. Esta sociedade que lutou contra esse modelo vai continuar em rebeldia”.

Finalmente, como disse o teólogo da libertação jesuíta Pedro Trigo, vivemos de Chávez a Maduro a passagem do totalitarismo à ditadura. Convido-os para lerem seu artigo que tem o mesmo título. Concluindo, as posições da Igreja, tanto local quanto universal, foram, na realidade, muito coerentes.

Haverá saída eleitoral?

A eleição dos novos membros da Constituinte foi realizada em uma base setorial e municipal, e não em sufrágio universal direto e secreto. Foi seguido o modelo eleitoral cubano, que não admite a dissidência e em que os representantes dos setores do país estão agrupados em organizações governamentais e são membros do partido único.

Não há povo sem o filtro político do partido único. Esse é o modelo utilizado por Maduro para a eleição da Assembleia Nacional Constituinte, pois, como dissemos anteriormente, não tendo o carisma do líder e o dinheiro do petróleo, só lhe resta o apoio militar e a fraude eleitoral. Ele seguiu esse segundo caminho para a eleição setorial dos constituintes.

De fato, a empresa Smartmatic, fornecedora da tecnologia utilizada no Conselho Eleitoral Nacional, confirmou, no dia seguinte às eleições, que houve manipulação dos dados por parte da entidade. Um fato que põe em discussão não apenas as eleições recém-realizadas, mas todo o sistema eleitoral venezuelano desde que Chávez introduziu o voto eletrônico.

Devemos acrescentar a isso que a maioria dos partidos de oposição está, atualmente, “ilegalizada” por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, e os principais líderes da oposição, desabilitados, presos ou exilados. Para ser honesto, seria preciso uma ampla reforma do sistema eleitoral da Venezuela para focar em eleições livres e transparentes. Pelo menos, começar pela nomeação de agentes independentes que permitam os processos de auditoria previstos.

O problema é que estamos no meio de um grande dilema. Se a oposição inscreve seus candidatos para as eleições, seguramente a Constituinte suspenderá essa eleição, porque Maduro contra com uma rejeição de mais de 80% da população do país. Mas, se a oposição decidir não participar, então Maduro tolerará as eleições, com a certeza de que seus candidatos vão vencer ao não terem rivais.

A atual Assembleia Nacional Constituinte, instalada no dia 04 de agosto, autodenominou-se “supraconstitucional” e por um período de “dois anos” ela poderá decidir se haverá ou não eleições, se suspende ou não os outros poderes públicos vigentes, se modifica leis em vigor e todos os assuntos relativos ao governo e ao destino do país. De fato, sua primeira medida foi destituir de seu cargo a promotora Luisa Ortega Díaz, considerada traidora da pátria por ter denunciado a ruptura da ordem constitucional.

Este cenário faz com que a facilitação do Vaticano, como entidade neutra, seja um dos poucos organismos internacionais que podem contribuir para mobilizar a comunidade internacional para que pressione o chavismo ideológico castrista para fazer algum tipo de negociação. Pelo menos pode exercer um papel importante do ponto de vista da comunidade internacional, mais que dentro do país.

A oposição não tem armas, ou exércitos, ou forças paramilitares. A saída dessa crise começa a ser vista pela via da implosão social e política, mas isso só levará a uma revolta popular contínua, que vai aprofundar ainda mais a anarquia, até que o governo morra agonizante.

Por isso, o caminho menos traumático continua sendo o de um acordo por uma transição que incorpore as forças do chavismo político não castrista, os militares – fiadores da Constituição de 1999 – e a oposição democrática. Qualquer outro caminho não só não será viável, mas também envolverá o risco de mais violência e anarquia, e em poucos anos teremos novamente um chavismo radical no poder.

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“Vivemos de Chávez a Maduro a passagem do totalitarismo à ditadura”. Entrevista com Rafael Luciani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU