Por: Davi Rodrigues da Silva | 06 Outubro 2018
Uma reflexão eclesiológica sobre a XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos – Os jovens, a fé e o discernimento vocacional.
O artigo é de Davi Rodrigues da Silva, historiador, graduado na Universidade de Passo Fundo – UPF, Secretário Nacional da Pastoral da Juventude do Brasil. O texto foi apresentado no Simpósio Juventude e Fé, promovido pelo Anchietanum – Centro de Juventude da Companhia de Jesus no Brasil em 01-09-2018.
Refletir o Sínodo que tratará sobre os jovens, a fé e o discernimento vocacional é estabelecer uma série de perguntas. O objetivo dessa reflexão é perceber as conexões possíveis nesse momento histórico da nossa Igreja, considerando o pontificado de Francisco, e um olhar mais local – nem por isso pequeno e simples – para a realidade brasileira.
A primeira questão a pensar é: Qual o lugar do Sínodo no pontificado de Francisco? Por que um Sínodo como essa temática?
Ressalto que em recente conversa com dom Sérgio da Rocha, presidente da CNBB e relator do Sínodo, o cardeal revelou que o propositor do tema "juventude" foi o próprio papa Francisco.
A tentação primeira é uma reflexão mais simplista, baseada no afeto que o bispo de Roma eventualmente venha a ter pela juventude. Ou quem sabe pressupor que o tema se dá pela problemática de se perceber poucos jovens nas igrejas, e uma crise de vocações em dioceses e congregações, fator preocupante em certos lugares do mundo, sobretudo na Europa e América. Não descarto essas hipóteses, mas é fundamental olhar o Sínodo dentro de uma proposta eclesiológica traçada por Francisco no governo da Igreja. O que então pode nos levar a outras perguntas e cogitações.
Mais do que o lugar do Sínodo, talvez a questão a ser posta é: Qual o lugar das juventudes na Igreja de Francisco? Para isso me permito dizer aquilo que entendo por essa Igreja, por esse modo eclesial de ser.
Como bem sabemos, Francisco é o primeiro papa latino americano, jesuíta, que exerceu seu ministério presbiteral e episcopal na sua maior parte pós Concilio Vaticano II. É perceptível que sua formação e atuação está encharcada de uma teologia da América Latina, que na Argentina se configurou como a Teologia do Povo, ramo argentino da Teologia da Libertação.
Para o teólogo argentino Juan Carlos Scannone, o projeto desse pontificado está apoiado em três pilares, são eles: a espiritualidade da misericórdia; uma igreja pobre para os pobres e, por fim, uma igreja atenta aos sinais dos tempos.
Não quero me alongar nessa instigante questão de pensarmos essa eclesiologia, porque não sou a pessoa mais preparada para tal. Porém, me permito a uma pequena reflexão baseada nos escritos do professor Scannone, ao tratar da ética social do Papa Francisco, no caderno Teologia Pública, número 135, do Instituto Humanitas Unisinos, de São Leopoldo- RS.
A Misericórdia não é fruto de uma postura moralista e punitivista, mas é fruto do caminho de humildade onde reconhecemos que primeiro nós somos falhos. Para Scannone, “somos primeiros misericordiados, então nos convertemos em instrumento de misericórdia e assim experimentamos e comunicamos a alegria do evangelho”, ou seja, o primeiro pilar exige reconhecer-se frágil, limitado na humanidade, pressuposto para reconhecer a Graça de Deus.
Ainda sobre esse pilar deve-se refletir que, pelo “sangue redentor do filho não se redime apenas à pessoa individual, mas também a relação social entre os homens”. Não se trata apenas de uma relação individual, mas também coletiva e, por isso, a Igreja, comunidade por excelência, deve estar atenta aqueles que sofrem o pecado social de forma mais violenta. Por isso ser uma Igreja pobre para os pobres, o que nos leva ao segundo pilar.
É importante ressaltar que mesmo na história recente da Igreja o magistério e os antecessores do atual pontífice nunca deixaram de falar de uma Igreja a serviço dos pobres. O acento dado por esse pontificado é o fato de sermos “uma Igreja pobre”, não apenas a serviço dos pobres. Uma Igreja pobre significa não apenas um modo de vida baseado na simplicidade, mas uma Igreja onde os pobres sejam “protagonistas”, sujeitos ativos e privilegiados da vida e da missão da Igreja.
Nesse sentido, o profético e a novidade não está apenas na ideia de que a Igreja Instituição por caridade deve ajudar os pobres; mas vai muito além, a proposta a coloca como quem precisa ser/estar atenta a esses sofredores, para com eles aprender e construir novas relações de vida e “vida em abundância” (Cf. Jo 10, 10).
A relação com os pobres transcende à confissão religiosa e abre espaço para um profundo e frutífero diálogo, que sempre é entre sujeitos em pé de igualdade, e assim verdadeiramente fraterno, entre católicos e não católicos, entre crentes e não crentes. A raiz do projeto de uma igreja sinodal para suas questões internas e desejosa de “caminhar junto” com todos aqueles dispostos a construir a Civilização do Amor.
Assim o papel da Igreja é animar e caminhar com os homens e as mulheres de boa vontade. Exemplo desse modo de ser/viver expresso no pontificado de Francisco, está tanto no convocar uma Reunião Pré-Sinodal com jovens do mundo todo, tanto católicos como de outras religiões e jovens ateus; e também ao animar militantes dos movimentos sociais compostos por católicos e não católicos, crentes ou não crentes. E a ambos os grupos ter na centralidade o incentivo ao protagonismo. Como ao se dirigir as lideranças dos movimentos sociais “É também sua participação protagônica nos grandes processos de mudanças, mudanças nacionais, mudanças regionais e mundiais. Não se apequenem!” (Discurso de Francisco em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, 2015). Essa mesma tônica foi o que guiou o papa ao encontra-se com os jovens na reunião pré-sinodal. Não tenham medo de falar, mas e se o papa não gostar? Se o cardeal não gostar? Se o bispo não gostar? Peçam desculpas e sigam falando! “Falar com coragem. Sem vergonha, não é. Aqui a vergonha deixa-se fora da porta. Fala-se com coragem: digo aquilo que sinto e se alguém está ofendido, peço perdão e vou por diante. Vós sabeis falar assim. Falar com coragem. Sem vergonha, não é. Aqui a vergonha deixa-se fora da porta. Fala-se com coragem: digo aquilo que sinto e se alguém está ofendido, peço perdão e vou por diante. Vós sabeis falar assim”. (Discurso do papa Francisco por ocasião da reunião pré-sinodal com os jovens no pontifício colégio internacional "Maria Mater Ecclesiae”, 19 de março de 2018)
No Domingo de Ramos, que também foi o encerramento da reunião pré-sinodal, Francisco disse em sua homilia:
"Queridos jovens, a alegria que Jesus suscita em vós é, para alguns, motivo de irritação, porque um jovem alegre é difícil de manipular.
Calar os jovens é uma tentação que sempre existiu.
Há muitas maneiras de tornar os jovens silenciosos e invisíveis; muitas maneiras de os anestesiar e adormecer para que não façam ‘barulho’, para que não se interroguem nem ponham em discussão. Há muitas maneiras de os fazer estar tranquilos, para que não se envolvam, e os seus sonhos percam altura tornando-se fantastiquices rasteiras, mesquinhas, tristes.
Neste Domingo de Ramos, em que celebramos o Dia Mundial da Juventude, faz-nos bem ouvir a resposta de Jesus aos fariseus de ontem e de todos os tempos: «Se eles se calarem, gritarão as pedras» (Lc 19, 40).
Não fiquem calados. Cabe a vós não ficar calados. Se os outros calam, se nós, idosos e responsáveis - muitas vezes corruptos - silenciamos, se o mundo se cala e perde a alegria, pergunto-vos: vós gritareis? Por favor, decidi-vos antes que gritem as pedras...”."
Nota-se aqui que “Uma Igreja pobre para os pobres” e protagonizada pelos pobres passa inevitavelmente por uma Igreja protagonizada pelas juventudes. O tratamento dado aos movimentos sociais arrasta o mundo juvenil nesse paradigma. Não se trata de sacralizar as juventudes, mas perceber nela as sementes ocultas do verbo. Um espaço teológico.
Esses dois pilares que aqui de forma extremamente simplória quis identificar, por si só já revelam a busca de um programa eclesial profundamente conectado com a atenção aos Sinais dos Tempos, o terceiro dos que foram sugeridos pelo professor Scannonne. “Sinais dos tempos” vem do Concilio Vaticano II. Na Gaudium et Spes define-se “O povo de Deus movido pela fé com que acredita ser movido pelo Espirito do Senhor, o qual enche o universo, esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus (...)” (GS 11).
Assim, a partir desse panorama quero provocar que possamos conjecturar o lugar das juventudes nessa proposta de Igreja. Um lugar de protagonismo insubstituível.
Em resumo diria que:
Depois desse olhar mais panorâmico e macro podemos agora partir para a segunda parte da reflexão, que intitulo como:
“A fé e o discernimento Vocacional: O sínodo é verbo que deve se fazer carne entre nós”
Se partirmos da concepção que uma época de mudanças é uma época de disputas de narrativas e de projetos e que Francisco está propondo no âmbito eclesial uma posição clara sobre a postura da igreja, não devemos ingenuamente pensar que pelo fato de ocupar o lugar máximo da hierarquia católica essa será facilmente a posição assumida pelos católicos e até mesmo pela hierarquia como um todo.
Um exemplo disso é a atual posição dos novos católicos de direita estadunidenses, que segundo o historiador Massimo Faggioli são “Hoje uma geração composta tanto por leigos, padres seminaristas e até alguns bispos que interpreta um catolicismo teologicamente neo-ortodoxo, moralmente neointegralista, politicamente antiliberal e esteticamente neomedievais”.
É preciso termos cuidado ao comparar essas definições com nossos exemplos locais, a formação cultural do Brasil tem suas vastas diferenças com os Estados Unidos da América, mas penso que em algum aspecto vale essa síntese para nos ajudar a provocar e perceber essas configurações em nosso país, essa “disputa” muitas vezes velada mas atuante na narrativa católica contemporânea. Uma opção pelos jovens sem uma opção pelos pobres é um risco que não se pode correr.
Ao tratarmos de discernimento vocacional, ao tratarmos de ações de/com e para a juventude é indispensável perguntar qual a proposta pedagógica dessa ação? Em nossas propostas nosso objetivo é pelo evangelho libertar e gerar vida ou criar um espírito policialesco, moralista de um evangelho que leva a internalizar um vigia, que sem sessar busca associar as pulsões da vida com o pecado, fruto de moralismos intimistas e individualistas que é produtor de “pseudos fiscais da fé”.
Outras perguntas que esse processo sinodal pode nos gerar é: Quais estratégias pastorais são possíveis de viver para, com a juventude, construir o Reino em nosso tempo? É possível construir a civilização do amor com a juventude do século XXI? De que Reino estamos falando? Que modo de ser Igreja estamos construindo? Uma igreja em saída, disposta a estar aberta ao diálogo fraterno ou uma instituição dominada por neoconservadores, carrascos da era digital dispostos a incendiar com “cliques” quem ousar pensar diferente de suas concepções?
Na reunião pré-sinodal, os jovens latino americanos, advindos de experiências pastorais próprias, eram os sujeitos mais atentos a propor uma relação entre fé e vida, capazes de ligar suas realidades sociais com o modelo de igreja capaz de responder aos apelos de suas realidade. Vale ressaltar o quanto essa experiência pastoral também no Brasil é fruto de uma mesma vertente teológica na qual Francisco se inspira e o quanto ela vem sendo explicita ou implicitamente silenciada e atacada por alguns membros do corpo eclesiástico e pelas “novas” gerações de católicos neoconservadores brasileiros. Esse modelo pastoral acaba não encontrando apoio em setores progressistas da Igreja do Brasil visto suas posturas adultocentricas, que os torna incapazes de estabelecer uma relação estratégica capaz de perceber o lugar das juventudes na construção e sustento de uma Igreja pobre para os pobres.
O produto final do processo sinodal não deve ser encarada por nós apenas como uma exortação apostólica, mais um documento a ser posto na estande de nossas bibliotecas, mas sim como uma possibilidade de repensarmos as práticas pastorais a serem vividas em cada realidade local. É na vida das juventudes que o sínodo deve ecoar.
Cabe as pastorais, movimentos, conferências, congregações e todos os envolvidos com o processo de evangelização da juventude e dispostos a construir uma igreja libertadora e verdadeiramente conectada aos sinais dos tempos, questionarem-se como estão sendo como atores construtores dos novos paradigmas possíveis na construção do Reino? Quem estão sendo seus aliados? Qual modelo eclesiológico estamos construindo? Qual a fidelidade a unidade com o papa na pratica evangelizadora estamos dispostos a abraçar?
O protagonismo que somos chamados é por excelência de coragem, aquela que faltou a Pedro que o levou a negar a Cristo ou a que faltou a Pilatos que diante de um inocente por medos e melindres do poder resolveu optar pela negligência e lavar as mãos.
Uma Igreja Jovem que dialoga com os sujeitos do terceiro milênio não pode cair na mediocridade de achar que basta dominar as ferramentas de comunicação contemporâneas e propagar suas posturas arcaicas na “gíria” juvenil, sem se dar conta que a verdadeira questão está no modelo eclesiológico.
Tenhamos em mente ao falar de evangelho e juventude os milhares de jovens pobres, marginalizados que diariamente são exterminados no Brasil, as violências cotidianas que as jovens mulheres e as juventudes LGBT+ são submetidas pelo patriarcado e nossa cultura machista. Sejamos ousados em tornar o Sínodo da Juventude motivo para questionarmos as precarizações do mundo do trabalho, a PEC dos gastos, e tantas outras medidas que subjugam ainda mais nossas juventudes a situações de extrema pobreza e falta de oportunidades.
Façamos desse processo vida e “vida em abundância”!
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