09 Dezembro 2016
Em entrevista, cientista político Jessé Souza afirma que estamos enfrentando um inimigo de altíssimas proporções que se põe de uma forma internacional.
Michel Temer já está no poder há mais de seis meses e a crise política não foi estancada. Analistas, sejam eles economistas, cientistas políticos ou da própria imprensa nem mais arriscam prever o futuro próximo da frágil democracia brasileira.
A instabilidade política é um fenômeno que tem se espalhado não só no Brasil, mas em todos os países nos últimos anos. Se por um lado é difícil prever onde os dados lançados pelos jogadores mais influentes do sistema político-econômico irão levar as populações de cada país, por outro, é possível compreender no exemplo brasileiro os interesses por trás da mudança abrupta no poder, e que levou ao afastamento da presidente Dilma. E um dos principais pensadores desse tema hoje no país é o professor da Universidade Federal de Brasília (UnB), Jessé Souza, autor de dois sucessos literários publicados nos últimos anos, "A tolice da inteligência brasileira" (2015) e "A radiografia do Golpe" (2016).
Em entrevista para Luis Nassif, do Jornal GGN, Jessé esclarece os motivos do desequilíbrio causador da pior crise financeira já enfrentada no país hoje: a inabilidade do grupo que assumiu o poder, através do golpe, de construir uma narrativa coerente com o que prometeu à sociedade, ou seja, de que era necessário derrubar um governo incompetente, em termos de gestão, para colocar o país nos trilhos, revelando que o único interesse real era retomar o poder, pelo poder, incentivados por interesses norte-americanos e, de forma mais abrangente, pelo capitalismo mundial.
O mais interessante, pontua Jessé, é que as elites nacionais podem até pensar, num primeiro momento, que saíram ganhando com o investimento que fizeram na crise política que alterou o governo, mas agora, sem capacidade de tirar o país da tempestade, correm sérios riscos de serem devoradas pela massa sedenta por “justiça” contra a corrupção que ajudaram a criar.
Em relação à participação de grupos estrangeiros na instabilidade política, o fato do “inimigo” ser maior torna a retomada do controle democrático do poder ainda mais desafiador. E esse é um fenômeno não só enfrentado no Brasil, mas também em outros países, onde a soberania popular está sendo soterrada por uma força sem rosto do capitalismo mundial. Ora, sem saber exatamente quem é o inimigo, como acertar o alvo?
"[Estamos] enfrentando um inimigo de altíssimas proporções e que a reação a ele é sempre local, é fragmentada. Ele se põe de uma forma internacional, como a gente viu no nosso golpe aqui (...), nesse filme novo do Oliver Stones, [chamado] 'Snowden', não por acaso, estava lá [a temática do] controle sobre o petróleo, como barrar empresas como a Petrobras, que há alguns anos atrás tinha uma enorme capacidade de investimento, mais do que o próprio estado brasileiro, isoladamente".
E os donos do poder não trabalham com uma estrutura qualquer, e sim a partir de uma refinada articulação que envolve meios de comunicação e cultura como principais indutores de comportamento das massas, daí o papel importante dos grandes veículos de imprensa em cada país para colocar ou destituir lideranças políticas. Por essa razão, Jesse chama atenção para o perigo da uniformização, cada vez maior, do pensamento.
“A gente está vivendo uma coisa que [Theodor] Adorno dizia, uma sociedade massificada, sem capacidade de reflexão. Você [como elite] retira a reflexão e o fascismo [acaba] vindo de uma forma normal”.
O professor também critica os grupos tradicionais de esquerda que chegaram ao poder e contribuíram para a crise institucional, por não terem avançado na reflexão das mudanças em cursos, tanto na forma como o capitalismo financista se rearticulava, como nas manifestações sociais que, aqui no Brasil, podem ser representadas pelas marchas de Junho de 2013 e, em termos mundiais, pelas ocupações na Europa e a Primavera Árabe.
A entrevista é publicada por Jornal GGN, 08-12-2016.
Eis a entrevista.
Jesse, nessa quadra atual de desmanche das instituições, o que você prevê como desdobramento?
Eu acho que nós estamos passando por um esgarçamento institucional, com as piores consequências por conta disso. No meu livro que você citou tentei fazer uma comparação com um assalto a um banco. Como a gente sabe, nos filmes policiais é fácil você arrumar aventureiro para assaltar um banco, mas a coisa começa a esquentar quando você vai dividir o saque. É exatamente o que está acontecendo efetivamente. Você assalta a soberania popular, e na hora de dividir o saque [acontece o conflito] porque, é claro, os atores entraram apostando o que tinham. Quer dizer, o Judiciário com a sua sobrevivência tem a ver com sua legitimação, o mesmo o Congresso, o sistema político. Embora isso [a crise política que levou ao golpe] tenha sido baseado em uma mentira construída midiaticamente, numa distorção sistemática da realidade, o fato é que sendo verdadeiro ou não essas legitimações enredaram os seus atores. Sem contar com a mídia, ainda, que fez o papel de criar um simulacro de realidade, para os fins mais mesquinhos e venais. Por enquanto ela ainda está pautando a realidade, mas eu acho que a médio prazo isso vai ter uma crise importante de confiança.
Para mim essa é a história, não se mexe em coisas como soberania popular, achando que você pode encontrar um substituto para isso. Não existe isso [a democracia] é o único acordo societário possível.
Quando a gente vê a crise da social democracia, ou dos estados nacionais em vários locais, o Judiciário qual que será o protagonismo dele aqui? Vai ser caça às bruxas?
Acho difícil de antecipar até porque estou pasmo como nós todos. O tema do judiciário tem a ver com o espaço de uma luta interna dentro do aparelho de estado por duas razões: dinheiro, vantagens. Obviamente é um judiciário que eu acho que agora que está se mostrando quanto ganha, suas vantagens, certamente não tem outro paralelo no mundo o que os juízes ganham, e acho que está entrando também outro aspecto que é do controle da agenda do estado, que está avançando.
Mas eu acho que, obviamente, eu não acredito que seja aquela caminhada da vitória para um aprofundamento desse processo, acho que tem a ver com o desespero também. Montou-se uma narrativa da qual ela não está correspondendo na realidade, no fundo era o afastamento da esquerda, e que estava atingindo o sistema político inteiro, e também os partidos que são os partidos base da banca rentista como o PSDB. Obviamente isso não pode chegar ao PSDB, porque foi a banca rentista que bancou o golpe inteiro. Acho que essas coisas todas estão sendo postas agora de modo muito nu.
Essa questão do PSDB, você tem uma blindagem da mídia... você pega esse negócio dos 23 milhões do Serra [repassados pela Odebrecht para caixa 2], O Globo não deu nada. Mas a existência das redes sociais, se por um lado também elas são muito segmentadas, é possível manter esse tipo de jogo sem calar as redes sociais?
É difícil. O fato é que a gente tem uma parte importante do público cuja opinião é moldada pela grande mídia, e essa grande mídia, no fundo, tem uma enorme influência sobre as redes. Existem pesquisa que 80% do conteúdo das redes é pautado pela grande mídia.
É, uma parte desconstruindo, fazendo uma releitura, e uma parte endossando.
Exato, temos um espaço importante nas redes, mas ele ainda é um tanto limitado. Mas voltando na questão do desespero, por exemplo, o apoio popular também tem diminuído. Essas últimas [manifestações em favor da Lava Jato]...apesar de ter sido engrandecido.
Tentaram transformar 130 mil na opinião nacional.
Exatamente, e obviamente é uma porcentagem mínima do tipo de manifestação que a gente tinha o ano passado. Você vê que é o seguimento mais radicalizado, com coisas como 'militares já', ou seja, é a pulsão fascista, que foi transformado em fascista por uma mídia histérica.
Você falou da questão do voto popular desmonta tudo isso. Tem espaço para uma eleição direta? Fernando Henrique andou levantando essa hipótese. Hoje uma eleição direita legitimaria um governo com toda essa dispersão que tem de partidos, com destruição de um partido, inabilitação do outro? A coesão estaria como? Num segundo turno eleitoral?
Essas questões são extremamente difíceis, porque até o ponto da soberania popular já foi quebrada, tem um encanto aí, porque mesmo que você eleja o outro, você tem agora um jogo... Então, sempre pode tem agora, por um mecanismos de golpe parlamentar, uma forma de um parlamentarismo. Quer dizer você tem um voto de desconfiança, no fundo, da presidente, isso significa uma essência que vai ficar na nossa vida política.
Mas eu acho que, do que está acontecendo agora, do que está acontecendo agora, e com um presidente completamente inábil e disposto a ir às últimas consequências com a maior truculência possível com um projeto antipopular, seja quando você está no meio do jogo, o outro time faz um gol de mão, mas eu tenho que continuar jogando.... Acho que talvez seja uma possibilidade, embora eu tenha dúvidas quanto à eficácia dela.
E essa questão das esquerdas? Independentemente do golpe, você teve uma crise do próprio governo Dilma que coloca em dúvida políticas típicas de esquerda, embora muitas pessoas digam que foi a implementação que estava errada. De que maneira? Quando você pega a socialdemocracia na Europa endossando esses ajustes que quem paga é só o povo. De que maneira se desconstrói? Essa questão do livre fluxo de capitais que nem Lula nem Dilma ousaria enfrentar... A crise traz a questão dos juros, o peso do fluxo, de alguma maneira pode haver um tempo rápido de recomposição desse pensamento mais social democrata?
Acho que pode porque o tempo na política é muito distinto do tempo real, do tempo linear. O tempo político pode se tornar muito intenso e em poucos meses a gente pode ter uma situação completamente nova. E isso tem a ver, por exemplo, porque essa narrativa é tão histérica e tão distorcida que você pode exercer uma crítica em torno dela, claro que precisa ter espaço, obviamente as nossas cartas não são as melhores como a mídia, que é completamente homogênea nesse aspecto.
Mas você toca em uma questão que acho importante que é da pouca tematização que houve da forma juro de comunicação, que tem a ver com o controle do orçamento, orçamento pago pelos mais pobres. É ridículo entre nós isso, o orçamento público é pago 53% por pessoas que ganham até três salários mínimos. Se você joga um pouco mais alto, para 5 salários mínimos é quase 70% do orçamento. Ou seja, não é juste de coisa nenhuma, é uma transferência de renda de todas as classes, o controle do orçamento, que significa uma forma de dominação social, de expropriação do excedente econômico e isso não foi tematizado entre nós. [Bernie] Sanders fez isso nos Estados Unidos, e o país que sofre muito mais com isso, jamais tematizou esse tema, e eu acho que é o tema mais importante, que é a forma que você pode mostrar à Dona Maria e ao seu João, da rua, que não é uma dívida que ele paga na esquina. É o contrário. Todas as falcatruas, no fundo, estão implícitas na própria dívida pública. Quem fez a auditoria em dívida pública no mundo sabe que ali é onde estão as negociatas, falcatruas, em grande escala.
E a mais institucionalizada que é juros sobre juros.
Exatamente, e os juros reais mais altos do mundo. Então é um mecanismo cruel, primitivo, de uma rapina por parte de uma mínima elite e, eventualmente, da casta superior da classe média, que ganha também com isso sobre a população como um todo, que não percebe a forma. É incrível isso, e essa coisa nunca foi tematizada efetivamente. E é uma forma difícil, é uma forma juros e tal. Ela é muito oculta, você precisa tematizar isso, montar essa narrativa, porque é uma forma de exploração midiaticamente santificada com mentira.
Um dos pontos que a gente tem notado, principalmente no segundo governo Lula e no começo do governo Dilma, um fortalecimento das empreiteiras como agentes de desenvolvimento junto com Petrobras, e agora a gente está percebendo da parte da equipe econômica uma tentativa de tirar o protagonismo das empreiteiras e jogar para o mercado financeiro, inclusive através de fundos de investimento que vão adquirir essas empreiteiras. Esse negócio de tirar os 100 bilhões [de reais] do BNDES, proibir o BNDES de financiar... Essa brigas de protagonismo no meio empresarial, esse fenômeno de empreiteira chegou a estudar? A indústria dançou, nos últimos anos, teve enfraquecimento grande. Então as empreiteiras tiveram um papel central, de emprego, parte de tecnologia, inovação, defesa...
Exatamente, uma capacidade tecnológica enorme, o que é uma coisa absurda, ou seja, de você penalizar as empresas e a capacidade produtiva do país. Nenhum país com o mínimo de racionalidade faz isso com suas empresas e com sua capacidade de intervenção. E o que é incrível, no fundo, é o plano que obviamente tem a ver com o mecanismo de dominação internacional. Óbvio, no fundo quem está metido nessa coisa está comprometido com lesa-pátria. Ou seja, está acabando com o futuro de uma sociedade inteira, uma desmontagem de cadeias produtivas: petróleo, gás, marinha mercante, e as construtoras que eram parcerias nesses aspectos. Isso aí tem a ver com uma velha leitura dos Estados Unidos no mundo que é manter a divisão de riquezas, e transformar o trabalho, onde você tem aqui uma massa só que exporta e outros que tem produtividade de alto nível tecnológico.
Os Estados Unidos sempre quiseram manter esse status quo, e o Brasil, o BRICS, aproximação com a China, obviamente foi um grande perigo, e o que está se refletindo internamente é que esses agentes nacionais, no fundo, realizaram planos de amesquinhamento nacional acomodados por uma potência estrangeira.
Luis Nassif - Você vê alguma semelhança com os anos 50, onde você teve projetos nacionais aí, [acordos bilaterais com] Egito, Argélia, que acabou... Você vê algumas semelhanças entre a estratégia americana lá e aqui?
Vejo sim, claro, tem uma continuidade que me parece óbvia. A manutenção do Sul como municiador de matérias primas e não competidor, e você iria ter o mercado desses países para produtos industrializados.
As Forças Armadas, como você está vendo o papel delas?
Eu não conheço o tema, nem a coisa por dentro, mas eu imagino que é tradicional nas Forças Armadas também o tema do nacionalismo, que até no fundo, se nós pensarmos no Segundo PND [Plano Nacional de Desenvolvimento] do presidente Ernesto Geisel, que era também um plano extremamente ousado, nacional, desenvolvimentista pela direita. Teve que ter a criação não só de uma matriz produtiva, também a partir de minério etc, também universidades em todas as capitais, centro de pesquisa. Foi um plano extremamente ousado que foi, no fundo, a base das Direitas Já. Não teve nada a ver com espontaneidade popular, isso foi tudo construído também pela imprensa. Na época, jornais de grande circulação lançaram séries de artigos como "República Socialista Soviética do Brasil". Uma loucura, um histerismo como a gente vê agora também. E você tem o quê? Esse tempo se reproduzindo: uma elite irresponsável, que não tem projeto de longo prazo, interessada numa rapina de recursos etc, que foi a base desse processo, também. E as Forças Armadas foram desestabilizadas, também pela mídia, por conta desse ponto.
As Forças Armadas é uma base do pensamento positivista entre nós, que no fundo o único outro, de um aspecto de liberalismo conservador. Por exemplo, caras como Sergio Buarque, Raymundo Faoro, representam também, e que também influenciaram a esquerda. A esquerda foi colonizada por esse tipo de liberalismo. E nas Forças Armadas você teve, de algum modo, sempre historicamente, um contraponto a isso.
O Iseb [Instituto Superior de Estudos Brasileiros, criado em 1955 e que orientou o desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek] tentava definir um projeto de país na época. Hoje você não tem esse projeto de país. Onde que você vai buscar esse projeto de país?
Ele acabou de ser destruído.
Você teve no governo Dilma a construção dessa base, a indústria naval, com o trabalho dela mesmo, a lei de partilha do petróleo e tudo, mas do ponto de vista conceitual, a gente não viu uma sistematização de maneira a virar uma bandeira, inclusive do próprio PT. O que aconteceu? Você tem hoje uma multiplicidade de pontos de discussão, novas universidades, mas a discussão de Brasil, o que aconteceu para chegar a esse empobrecimento? Com exceção do seu livro, você não vê um negócio focado em discutir Brasil. O que aconteceu? Foi a superficialidade das redes sociais?
Eu acho mesmo que o que houve foi um processo extremamente bem-sucedido dessas eleitas liberais, que começou com uma espécie de contraposição, especialmente, a partir de 1930, aonde essa elite liberal constrói a USP, tem o Sérgio Buarque como seu grande elemento e tal, grande amalgama, para se contrapor ao projeto estatista, do positivismo, especialmente, do Rio Grande do Sul, que também é as Forças Armadas. E essa coisa um pouco que continuou até hoje, só que essa largada liberal conseguiu convencer, ela é hegemônica na sociedade como um todo.
Vamos pegar um fenômeno que a gente percebe hoje, nitidamente com o jornalismo, no Ministério Público, no poder judiciário, que é esse fenômeno do jovem internacionalizado. Porque se abordou muito nesse período a ascensão das massas da Classe C, mas o grande ator político que a gente viu aí foi esse jovem internacionalizado que vai para o serviço público, forma a elite do serviço público, os concurseiros, é um padrão que vem do mercado financeiro... Por que esse fenômeno demorou para ser percebido, a ponto de que, quando eles saem às ruas e passam a articular no ministério público, no TCU, na imprensa, a gente levar aquele susto?
Eu acho que isso tem a ver com o fato de que a esquerda...e as pessoas acham que isso tem a ver com ideias, não. Não tem a ver com ideias. No fundo as ideias montam nosso comportamento e eu acho que isso mostra uma prisão da esquerda a esses modelos. De tal modo que a coisa que a esquerda faz quando ela atinge o poder, é pensar ou de modo conjuntural, sem um plano, se uma visada de futuro, e também pensa a sociedade como os liberais, como mercado. A única distinção importante aí é que pensa como um mercado um pouco mais ampliado. Mas aí acham que é uma espécie de vulgata marxista, ou seja, de que se você faz modificações no mercado, a sociedade vai, automaticamente, tipicamente um marxismo vulgar, vai mudar a cabeça. Ou seja, como se mudanças na base econômica fossem produzir, milagrosamente, mudanças na forma como você pensa o mundo.
Porque o que foi que essa esquerda fez? Ela não refletiu sobre como funciona o estado. Ou seja, não tem um projeto, uma ideia disso. Não conseguiu captar as lutas corporativas interestatais. Agiu do pior modo, inclusive ingênuo, quer dizer, o contrário, alimentou o corporativismo de modo sistemático. O que é incrível.
E depois, como não montou uma narrativa, para a própria mudança econômica que estava fazendo, essas classes que subiram acham que a vontade política fica em vigésimo lugar. Primeiro vem Deus, primeiro vem a família... Então você teve aí uma inabilidade, uma incapacidade de montar uma narrativa, uma percepção do mundo.
Quando você olha, tanto o PSDB quanto o PMDB, um afastamento da intelectualidade que marcou os partidos. O PT tinha lá seus pensadores que foram saindo gradativamente, assim como os movimentos sociais... O papel do intelectual, o papel do jurista hoje, você acha que tende a substituir o papel do antigo cientista social? Está havendo uma reaproximação da política com os intelectuais, para a tentar entender esse imbróglio todo ou ainda há muita resistência das burocracias. Como você vê os intelectuais e a política aí?
Esse é um tema extremamente importante, acho que tem a ver com o fato de uma não reflexão e as pessoas tendem a reproduzir comportamentos e ideias anteriores, quer dizer, tem uma relação que é muito incrível que é, as pessoas tem uma relação afetiva com as ideias que sempre tiveram, com se fosse uma coisa nascivica [que nasceu com elas], ou como se você tirasse um órgão de dentro de si, e tal, quando deveria ser o contrário, você deveria estar distanciado disso e tal para que você possa aprender, melhorar.
Eu acho que a gente tem pouquíssimo debate universitário. Não que o debate universitário seja imensamente importante para a esfera pública, mas ele é um alimentador importante, para que depois você tenha ideias públicas, discussão, argumentos, construção. E a gente não tem essa tradição de debate, nem na esquerda. Tanto que você tem aqui a continuidade de consensos acadêmicos absolutamente anacrônicos: Sérgio Buarque, Raymundo Faoro, esse pessoal todo, não ficou no começo do século passado. Eles são hoje a cabeça do Brasil, não tem nenhuma forma dominante nova disso. Obviamente existe o esforço de algumas pessoas, inclusive eu próprio, de tentar criticar partes desse tipo de coisa, que é extremamente perversa e facilita a dominação de uma forma acrítica.
Mas eu acho que no tema dos advogados, acho que é uma classe extremamente importante. Eu até conheci outro tipo, advogados populares que estão se envolvendo agora, acho que está se montando também uma frente ofensiva que é arrasadora também em forma de resistência. Eu tenho visto isso, etc. E, os advogados, mais do que os economistas hoje, é a corporação profissional do poder, ela é o pilar agora. Vocês está num campo aonde a luta está sendo montada e, apesar da maioria desse pessoal sair [nesse jogo] por motivos mesquinhos, também é muito importante que tenha uma minoria, mesmo que seja 10%, mas com um comportamento muito incisivo, que pode ser uma das fendas onde a gente pode ter uma oposição à essa forma dominante.
Teve com a queda da presidente teve uma ampliação do estado de exceção. Na sua opinião tem condições para poder piorar muito mais aí, a ponto das liberdades civis serem mais ameaçadas?
Acho que sempre tem esse perigo, e é muito assustador tudo, porque se você chegou até aqui, por que não arrebentar mais? Porque é o tema da soberania popular, que a gente já tinha discutido antes. Quer dizer, se você chuta a porta da casa, você já entrou no terreno e aí, se você vai roubar os móveis, se você vai destruir a louça, etc é mais circunstancial do que efetivamente...
Mas é bom a gente perceber porque a gente está enfrentando agora é algo internacional, ou seja, é o capital financeiro que não é só uma forma de valorização do capital, não é só uma realidade econômica, é uma realidade hoje em dia política não só aqui. Aqui, talvez, em um dos processos mais absurdos disso, mas isso existe em outros lugares... Índia, etc, em governos formalmente democráticos ainda, que é a mídia assumindo papel de partido, as instituições estatais sem ser mais uma instância de debate, de argumentação, comprada por dinheiro, só para carimbar decisões que a mídia já monta.
É um sistema que tem a ver com a nova concepção de mundo, então ela entra nas pessoas, também o capital financeiro. E vai ser extremamente difícil para a esquerda, por conta disso, o capitalismo financeiro ele monta uma noção, uma nova noção de felicidade para as pessoas. Quer dizer, é uma forma que tem a ver com a exploração sem limites, de não diferenciar mais o tempo de trabalho do tempo de lazer, tem a ver com você imaginar que você é empresário de si mesmo, quando no fundo você deve ao banco. Ou seja, você alimenta essas estruturas hierárquicas mais visíveis de supervisão e controle, porque você põe isso, e claro, o medo de perder emprego e tudo, e é o próprio trabalhador que cumpre essa função agora.
Houve um caso agora aonde esse tipo de interesse, de algum modo, se coaduna, ele se apropria das almas das pessoas, do sentimento, das noções de felicidade que é o que a gente tem de mais importante e de mais íntimo. Então a gente está enfrentando um inimigo de altíssimas proporções e que a reação a ele é sempre local, é fragmentada. Ele se põe de uma forma internacional, como a gente viu no nosso golpe aqui e até, por exemplo, não sei quais dos seus expectadores viu esse filme novo do Oliver Stones, 'Snowden', não por acaso, estava lá o controle sobre o petróleo, como barrar empresas como a Petrobras, que há alguns anos atrás tinha uma enorme capacidade de investimento, mais do que o próprio estado brasileiro, isoladamente. Então essa coisa do capitalismo ser financeiro, com a sede nos Estados Unidos, montam um esquema...
Durante anos 1990, 2000 eles [Estados Unidos] vendiam a ideia de que no fim do arco-íris tem um pote de ouro, querendo dar a lição de casa. Como modelo, isso aí garantiu a elegibilidade de vários governos, inclusive a própria socialdemocracia acabou cedendo um pouco. Hoje como gestão de países isso aí acabou, fracassou. Então a democracia, no caso, vamos pegar essa Ponte para o Futuro [programa de crescimento de Michel Temer], isso aí não se sustenta eleitoralmente. De alguma forma o conceito de democracia entrou em crise globalmente?
Completamente, quer dizer, isso aí é uma coisa de muito alcance. Porque se você pensar bem, a democracia no ocidente é uma realidade a partir da segunda guerra mundial. Durante várias décadas, entre as guerras, só a Inglaterra e os Estados Unidos eram democracias liberais. Então, obviamente, o jogo democrático exige distribuição de renda, não existe democracia sem, minimamente, você compartilhar, embora alguns tenham muito mais que outros, como sempre. O que está acontecendo agora é que alguns estão tendo um nível de concentração de riqueza inauditos. Não consigo imaginar nenhuma época humana aonde essa riqueza tenha sido tão concentrada. E isso associado à uma espécie de imbecilização do público. Isso que está acontecendo.
A gente está vivendo uma coisa que [Theodor] Adorno dizia, quer dizer, uma sociedade massificada, sem capacidade de reflexão, você retira a reflexão, e o fascismo vindo de uma forma normal, a gente fica controlando ressentimento, medo das pessoas, que é o que está acontecendo aqui.
Ao mesmo tempo você tem a mídia que está exercendo esse papel globalmente. Esse modelo de mídia tende a terminar, ou seja, tem que ter uma diluição. Ou seja, o caos, no fundo, vira o alimento das massas?
Exatamente. É uma guerra no fundo, de violência simbólica, no fundo, e nós estamos aí acho que no pior nos casos, porque não tem mídia tão ruim como a nossa. Eu não consigo imaginar, nunca ouvi falar... Fico pensando Coreia do Norte [como pior]. Mesmo nos Estados Unidos você tem uma competição maior, e você tem nos países europeus a TV Pública, que não é estatal, que é aonde você tem a diversidade de opiniões. Isso é uma instituição importante, quer dizer, uma sociedade para ser democrática, efetivamente, tem que ter coisas que não se compram com dinheiro, como por exemplo o futuro, educação etc. Isso não é uma coisa que você possa transformar em mercadoria impunemente.
A gente está numa esquina aonde o pensamento de curto prazo, que significa no fundo burrice, porque a definição da falta de inteligência é você pensar a curto prazo, e você não jogar as consequências, ir à longo prazo. Você tem isso tanto no horizonte aonde poderia vir alguma crítica a esse modelo, que é à esquerda. A esquerda não se empenha, não se repensa e não pensa a longo prazo, pegando essas novas coisas. Mesmo partidos que tenham uma extraordinária capilaridade aí, como o PT tem efetivamente, mas aí pensando nas lutas de 30 anos atrás, como se isso fosse voltar, e o mundo é completamente novo, e obviamente as coisas que aconteceram refletem isso, refletem essa incapacidade, mas também a dominação do mundo com essa associação mídia e capital financeiro também pensa a curto prazo. Ou seja a gente está numa quadra histórica extremamente...
Ou vem um Hitler ou vem um Roossevelt...
[Risos] Tomara que seja um Roossevelt...[risos]
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A elite global por trás da crise da socialdemocracia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU