“A meritocracia tem um lado sombrio”. Entrevista com Michael Sandel

Fonte: Pixabay

23 Fevereiro 2022

 

Desigualdade econômica, abismo educacional, polarização política... O coquetel ameaça demolir o conceito de bem comum e de democracia como a conhecemos. E Michael Sandel, talvez o professor de filosofia mais renomado do mundo, encara o desafio que isso acarreta, apontando diretamente para a meritocracia. Ou seja, a forma como se distorce um conceito valioso: o mérito.

 

Como é isso? Sandel defende o esforço pessoal, a busca da excelência e a premissa da ascensão social através da educação. Mas alerta sobre os riscos de um sistema que funciona como uma nova aristocracia hereditária, onde os que mais têm acessam a melhor educação, melhores empregos e melhores contatos, levando seus filhos a usufruir a melhor educação, melhores empregos e melhores contatos, em um círculo fechado que exclui o resto.

 

Soa determinista? Não para Sandel, que se apoia em estatísticas. Dois terços dos alunos de Harvard e Stanford provêm do quintil superior da sociedade, medido pela renda, ao passo que apenas 4% dos estudantes das melhores universidades dos Estados Unidos vêm do degrau mais baixo. Simples questão de mérito? Ou por trás do suposto mérito se esconde um sistema injusto?

 

“Em vez de promover maior igualdade, a meritocracia reforça a desigualdade e inclusive oferece sua justificativa”, diz Sandel ao La Nación, direto da Universidade Harvard, onde há duas décadas ministra o curso mais popular da universidade sobre Justiça. Isso é paradoxal? Não é paradoxal para ele, que estimula seus alunos a responder uma pergunta só aparentemente simples: “O que conta como uma contribuição valiosa para o bem comum?”

 

Michael Sandel é filósofo, professor de Ciência Política na Universidade Harvard, membro da Academia Estadunidense de Artes e Ciências e presidiu a Comissão de Bioética da Casa Branca. Vencedor do Prêmio Princesa das Astúrias de Ciências Sociais, seus livros foram traduzidos para 27 idiomas.

 

Na entrevista a seguir, comenta sobre seu livro A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?.

 

A entrevista é de Hugo Alconada Mon, publicada originalmente por La Nación e reproduzida por El Tiempo, 19-02-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Por que este livro? Por que agora?

 

É uma tentativa de compreender a crescente divisão entre ganhadores e perdedores que vimos em países ao redor do mundo, após quatro décadas de globalização. Essa divisão se aprofundou, separando-nos. Um sintoma dessa divisão foi a eleição de Donald Trump, em 2016, e o voto na Grã-Bretanha para abandonar a União Europeia, também em 2016.

Foi essa reação populista dos últimos anos que me levou a escrever o livro. Essa divisão se aprofundou pelas crescentes desigualdades e pelas atitudes diante do êxito que as acompanham. Aqueles que chegaram ao topo, passaram a acreditar que seu sucesso é apenas obra própria e que, portanto, merecem toda a recompensa que o mercado lhes confere, enquanto consideram que aqueles que ficaram para trás devem merecer o seu destino.

 

 

O fator do esforço pessoal não é ao menos parcialmente válido?

 

A meritocracia diz que na medida em que as possibilidades sejam iguais, os ganhadores merecem suas conquistas. Este é um princípio atraente em muitos sentidos, especialmente se a alternativa é o favoritismo, o nepotismo, o clientelismo e o privilégio hereditário. A meritocracia parecia uma alternativa libertadora em comparação a esses sistemas de atribuição de recompensas e papéis sociais.

Mas a meritocracia tem um lado sombrio. Cria hierarquias que surgem da forma como definimos o mérito em uma sociedade impulsionada pelo mercado. Gera arrogância entre os ganhadores, e humilhação e desmoralização entre os que ficam para trás. Dizem: “Você teve a oportunidade de competir e ficou aquém. Sendo assim, seu fracasso é culpa sua’. Essa tendência das elites em menosprezar aqueles que não triunfaram gera os ressentimentos que levaram à eleição de figuras como Trump.

 

Pode explicar a diferença entre mérito e meritocracia?

 

Se preciso de uma cirurgia, quero que seja realizada por um cirurgião bem qualificado. Se estou em um avião, quero que um piloto muito qualificado esteja no controle. O mérito, entendido como estar bem qualificado para realizar um trabalho, é bom e é uma alternativa desejável frente ao favoritismo, o nepotismo, o clientelismo e o preconceito.

 

Mas a meritocracia é algo diferente. É uma forma de distribuir renda e riqueza, poder, honras e estima social com base no que as pessoas pensam que merecem. Isso requer uma forma de medir o mérito e normalmente há duas formas: dinheiro ou exames. Ou seja, o dinheiro que as pessoas ganham no mercado ou os exames padronizados para determinar, por exemplo, quem acessa as melhores universidades e quem não. Mas as duas medidas são defeituosas.

 

 

As pessoas com dinheiro ou diplomas das melhores universidades não necessariamente foram consideradas ‘essenciais’ durante a pandemia...

 

Correto. A pandemia destacou as desigualdades que existem em nossas sociedades. A mais dramática foi entre aqueles de nós que puderam trabalhar de casa e aqueles que perderam seus trabalhos ou que para trabalhar tiveram que se expor a riscos pelos outros. Mas aqueles de nós que têm o luxo de trabalhar de casa reconhecem o quão profundamente dependemos desses trabalhadores dos hospitais que cuidaram dos pacientes de covid, dos entregadores, dos empregados de depósitos e supermercados, dos médicos a domicílio, dos trabalhadores das creches.

 

Todos eles não são os mais bem pagos, nem os mais reconhecidos, mas passamos a chamá-los de trabalhadores essenciais. Isto poderia ser o gatilho para um debate público sobre como alinhar melhor salários e reconhecimentos com a importância do trabalho que se realiza. Ninguém se refere aos administradores de fundos financeiros como trabalhadores essenciais, mas ganham de 800 a 900 vezes mais do que uma enfermeira ou uma professora. O valor da contribuição à econômica ou ao bem comum é realmente 800 vezes maior que o da enfermeira? O que conta como uma contribuição valiosa para o bem comum?

 

Responder esta pergunta requer um argumento moral e uma deliberação pública sobre o quais contribuições importam mais. É um debate público mais amplo do que o que tivemos durante a era da globalização neoliberal, onde assumimos que o dinheiro que as pessoas ganham é a medida de sua contribuição para o bem comum. Isso agora é questionado.

 

 

O ressurgimento da ‘justiça contributiva’...

 

(Concorda) Isso deveria estar no centro do discurso público. Durante as últimas quatro décadas, ao abraçar o mercado, evitamos nosso juízo moral sobre a dignidade do trabalho e sobre o valor da contribuição social. Nós o delegamos aos mercados e teve o efeito não apenas de injustiça e aumento das desigualdades. Também esvaziou o discurso público, drenou-o das questões que importam, como o significado de nosso contrato social, da contribuição social e o que devemos uns aos outros como concidadãos.

 

Nosso discurso público esteve em grande medida vazio de um significado moral e cívico mais amplo, durante a era da globalização. Mas agora existe uma guinada para um tipo de debate público moralmente mais robusto que aborda essas questões.

 

Em seu livro, sugere promover políticas ativas de emprego, definir por sorteio que universidade receberá cada estudante, uma vez superados certos padrões mínimos de elegibilidade, e gerar encontros públicos que ajudem a reduzir a polarização. Como é isso?

 

A separação social é a coisa mais daninha para uma vida cívica saudável. Os ricos, a classe média e os mais humildes raras vezes se encontram no decorrer de sua vida cotidiana. Vivemos, trabalhamos, compramos e nos divertimos em lugares diferentes. Enviamos nossos filhos para escolas diferentes. E isto se reforça com as redes sociais, que nos alimentam com informações e opiniões que correspondem às opiniões que já temos, gerando bolhas. Cada vez há menos espaços comuns que nos reúnam.

 

A democracia não requer uma igualdade perfeita, mas requer que pessoas de diferentes origens e diferentes classes sociais se encontrem em sua vida cotidiana. Isso nos ensina a negociar e a tolerar nossas diferenças, preocupando-nos com o bem comum. Esse abismo também se dá entre aqueles que têm e aqueles que não têm uma educação universitária.

 

 

O abismo educacional se tornou uma das mais profundas no comportamento eleitoral das democracias de todo o mundo. Tradicionalmente, o Partido Democrata, nos Estados Unidos, o Partido Trabalhista, na Grã-Bretanha, e o Partido Socialista, na França, entre outros, defendiam os trabalhadores das classes médias frente aos privilegiados, os poderosos e as grandes corporações.

 

Mas em 2016 o Partido Democrata havia se tornado mais próximo aos interesses, valores e pontos de vista das classes profissionais, a classe bem-formada, do que aos trabalhadores braçais que antes formavam sua base. E é por isso que muitos trabalhadores que tradicionalmente votaram nos democratas foram com Trump.

 

Essa divisão educacional também explica o Brexit na Grã-Bretanha. Aqueles com alta formação votaram a favor da permanência na União Europeia, ao passo que o resto votou pela separação. E vemos o mesmo nos partidos socialistas na França e até nas recentes eleições alemãs. Os social-democratas só venceram após encarar uma tentativa de se reconectar com os trabalhadores.

 

Na Argentina, ocorre uma desigualdade nas credenciais entre certas universidades públicas e privadas. Diga-me qual é o seu diploma e lhe direi...

 

A consequência disso é recriar os tipos de vantagens hereditárias e familiares próprias de uma sociedade aristocrática tradicional. É paradoxal porque a vantagem moral da meritocracia sobre uma aristocracia supostamente era romper os privilégios que provêm do nascimento. Mas a meritocracia reproduz uma espécie de sistema hereditário. Há exceções, é claro. Há jovens de ambientes pobres que conseguem ascender no sistema de educação superior e são exemplos inspiradores.

 

 

Desde que você terminou o seu livro, Trump perdeu a reeleição e a pandemia expôs alguns grandes defeitos e desigualdades em nossas comunidades. Pode ser uma oportunidade para iniciar esse debate público mencionado por você?

 

Sou cautelosamente otimista. A pandemia reorganizou nossa compreensão acerca de quem é trabalhador essencial. Dependerá de nós se faremos esse debate público. Mas ao menos existe uma oportunidade.

 

Em segundo lugar, vale a pena ressaltar que Joe Biden foi o primeiro candidato democrata à presidência, em 36 anos, que não tinha um diploma de alguma universidade de elite. Durante a campanha falou mais sobre a dignidade do trabalho. É uma guinada esperançosa.

 

É possível que ocorra uma mudança? Pensamos que a crise financeira de 2008 poderia levar a uma reconsideração da fé nos mercados, mas não foi assim. Agora, a pandemia questiona o projeto de globalização que promoveu as finanças e que provocou essas desigualdades. Veremos o que acontece.

 

Quais são as perguntas que deveríamos ter nos feito há muito tempo? Quais são as perguntas que deveríamos nos fazer agora?

 

Nós, beneficiários da globalização, deveríamos questionar nossa arrogância meritocrática. Deveríamos nos perguntar: os talentos que me permitiram prosperar realmente são obra minha? Ou são dons pelos quais estou em dívida? A fé meritocrática também nos leva a esquecer nossa dívida com aqueles que tornaram possível nossas conquistas: família, professores, comunidade, país, os tempos em que vivemos.

 

 

Vivemos em uma sociedade e em uma época que recompensa os talentos que temos. Pensemos em LeBron James ou Lionel Messi. Trabalham duro, é claro, mas possuem grandes talentos atléticos em um momento e em uma sociedade que amam o basquete e o futebol. Se tivessem vivido durante o Renascimento, o basquete e o futebol não existiam! Importavam-se mais com afrescos do que com esportes!

 

E em nível social, político e cívico, deveríamos nos perguntar como podemos renovar a dignidade do trabalho para que honre e recompense as contribuições de todos pelo trabalho que realizam, as famílias que formam, as comunidades que servem. Deveríamos nos perguntar como queremos viver juntos, como podemos criar espaços comuns que conectem pessoas de diferentes esferas da vida. Como renovar a infraestrutura cívica de uma vida democrática compartilhada?

 

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