Giorgio Agamben e Hegel

Foto: FlickrCC/Alfons Freire

05 Março 2021

O argumento geral do livro O Reino e a Glória é a ideia de que a concepção teológica da economia trinitária — mediante a qual foram primeiramente pensadas a unidade e a diversidade imanentes de Deus e, depois, o que os teólogos modernos chamam a economia da salvação — constitui a base conceitual a partir da qual deve-se entender a unidade complexa do governo econômico do mundo, no âmbito do qual se combinam e complementam a ação dos governos e o que hoje, exotericamente, se denomina o domínio econômico, escreve João Carlos Brum Torres, professor aposentado de filosofia na UFRGS, ex-Secretário do Planejamento do governo do Rio Grande do Sul (1995-1998 e 2003-2006), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 03-03-2021.

 

Eis o artigo.

 

1.


O livro de Agamben é um estudo muito erudito, de natureza genealógica, sobre as matrizes teológicas de conceitos políticos fundamentais. Seu primeiro objetivo é demonstrar que a tese de Carl Schmitt segundo a qual todos os conceitos relevantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados deve ser ampliada para muito além “dos limites do direito público”, alargamento de escopo que iria a ponto de “englobar todos os conceitos fundamentais da economia e da concepção mesma da vida reprodutiva das sociedades humanas”. A consequência, diz ainda o livro, é que será forçoso sustentar – contra o entendimento de Carl Schmitt – que “a teologia cristã é, desde o começo, econômico-gestionária e não político-estatal”.

 

Mais especificamente, o programa de análise de Agamben recomenda que sejam distinguidos dois paradigmas antinômicos, embora conexos, de determinação teológica dos conceitos políticos, entendendo-se o adjetivo no sentido mais amplo possível. O primeiro, mais estudado, filia a teoria moderna da soberania à ideia de um Deus único e todo poderoso; já o segundo, ainda a ser pesquisado, desenvolvido e demonstrado, tarefa a que, justamente, se propõe O reino e a Glória, revelaria como a economia – entendida compreensivamente e em função também da origem etimológica do termo, isto é, como o governo geral das sociedades, em que se combinam gestão pública e iniciativas e ações privadas – tem como determinante genealógico último a teologia trinitária.

 

O que possa haver de inusitado e extravagante nessa sugestão é trazido para o registro mais ordinário pela advertência e recomendação metodológica de Agamben de que no trabalho de arqueologia conceitual, o investigador deve estar preparado para “a possibilidade de que a genealogia de um conceito (….) possa se situar em um lugar diverso do que o que se supunha ao partir”, o que seria justamente o que ocorre no caso das instituições e conceitos políticos, cuja “genealogia”, diz-nos o autor, “deve ser buscada antes nos Tratados De gubernatione dei e nos escritos sobre a providência” do que naqueles estritamente dedicados a questões políticas como, por exemplo, o De Regno de Santo Tomás.

 

Muito embora isso não nos seja dito expressamente, materialmente considerada, a sugestão parece ser a de que se se quiser verdadeiramente penetrar nos arcanos em que se decide genealogicamente o núcleo duro do pensamento sobre o político, é preciso substituir à simplicidade de uma leitura judaica, por assim dizer, do Velho Testamento e ao monoteísmo estrito que a caracterizaria, a muito mais complexa teologia neo-testamentária, cuja travação inicial se encontraria na primitiva, ardilosa e sofisticadíssima teorização econômica do dogma trinitário, a qual, porém, posteriormente – quando a explicação da trindade passou a ser sistematicamente feita em termos teológico-metafísicos – passaria a ser sobretudo compreendida como economia providencial e utilizada, portanto, como chave para interpretação da obra e dos mistérios da Providência.

 

O desenvolvimento da demonstração genealógica de Agamben é longo, complexo, pesadamente filológico, e decididamente não posso reconstituí-lo aqui. No entanto, o argumento geral do livro é a ideia de que a concepção teológica da economia trinitária — mediante a qual foram primeiramente pensadas a unidade e a diversidade imanentes de Deus e, depois, o que os teólogos modernos chamam a economia da salvação — constitui, como antecipado acima, a base conceitual a partir da qual deve-se entender a unidade complexa do governo econômico do mundo, no âmbito do qual se combinam e complementam a ação dos governos e o que hoje, exotericamente, se denomina o domínio econômico.

 

É fundamental entender, porém, precisa-nos o autor que: “Os dois paradigmas [o da tradição política no sentido estrito e o da tradição econômico-governamental] subsistem juntos e se entrelaçam a ponto de formar um sistema bipolar cuja compreensão forma a condição preliminar de toda interpretação da história política do Ocidente”.

 

A partir dessa ótica, o exame dos textos de Hipólito de Roma, de Tertuliano, de Origines, de Clemente de Alexandria, de São Gregório Naziazeno, de Numênio, de Eusébio de Cesarea, de Santo Agostinho, de Santo Tomás de Aquino, de João XXII e Guilherme de Occam, de Leibniz, de Malebranche, de Bossuet, entre outros, serve para obsessivamente mostrar as derivações e desdobramentos doutrinários que comandam e que resultam da evolução do que Agamben denomina o dispositivo trinitário, mediante o qual são antecipatoriamente estruturadas, segundo o autor, as categorias centrais do que posteriormente viria a ser o pensamento especificamente político do Ocidente.

 

Há, contudo, na longa reconstituição dessa ainda muito mais longa e complexa história conceitual um passo absolutamente estratégico para a tese de Agamben e que me parece muitíssimo problemático e é precisamente para melhor apreendê-lo e para, pelo menos, demarcar-lhe as implicações que me parece de alto interesse cruzar a leitura de O Reino e a Glória com a concepção especulativa do silogismo.

 

O passo crítico que tenho em vista não é a tese geral do livro, essa ideia de que quando visualizadas sob a ótica de sua radicação teológica descobre-se uma relação interna entre a tradição política stricto sensu e a tradição econômico-governamental. Este ponto me parece hermeneuticamente muito instigante, persuasivo e iluminador. O que parece problemático é outra coisa, é a complemento, ou, quem sabe melhor, esta espécie de escólio que lhe é associado, a tese de que não há solução de continuidade quando o conceito de oikonomia é deslocado da interpretação do mistério da trindade para a explicação do que viria a ser chamado de a economia da salvação.

 

Ou por outra: ainda que esse deslocamento doutrinário do uso teológico do conceito de economia tenha ocorrido por assim dizer naturalmente, tendo em em vista o dogma da encarnação do Filho, isto não quer dizer que esse traslado não implique não apenas uma outra teologia, mas também uma outra maneira e incompatível maneira de entender as relações do finito com o infinito. Para entender este ponto é necessário, porém, passar a Hegel, mas, antes disso, como uma indispensável preliminar, convém recuar, ainda que por um instante, para o registro estritamente teológico.

 

2.

 

O capítulo II de O Reino e a Glória reconstitui a evolução dos usos da palavra oikonomia, e de sua traduções latinas, dispositio e dispensatio, entre os primeiros Padres da Igreja e mostra como o termo adquiriu um sentido teologicamente técnico primeiramente na obras de Hipólito de Roma e de Tertuliano, ponto que Agamben registra dizendo: “Segundo uma opinião difundida, é em Hipólito e Tertuliano que oikonomia deixou de ser apenas uma extensão analógica do vocabulário doméstico à esfera religiosa para se tornar um termo técnico utilizado para designar a articulação trinitária da vida divina”.

 

A anotação imediatamente seguinte explica que: “O conceito de oikonomia é, portanto, o operador estratégico que permitiu a reconciliação provisória entre a trindade e a unidade divina, antes que um verdadeiro vocabulário filosófico fosse elaborado nos séculos IV e V.”

 

Agamben sublinha que a marca distintiva dessa primeira solução do problema trinitário, desse apelo à economia, consiste em dar conta do paradoxo contido na ideia de um Deus único, mas constitutivamente trino evitando a ontologia e tratando de dar conta da diversidade das pessoas como sendo determinada não ontológica, mas sim praticamente, como uma diversidade, não da substância divina, mas de seu agir ou de sua operação. Essa tese implica, notadamente, a possibilidade de admitir que, embora o pai deva ser entendido como arkhé, o Filho seria anarchon, o Infundado, como se lê em uma passagem de São Gregório Naziazeno citada em O Reino e a Glória.

 

Seja como for, nesta altura, para os objetivos que temos na presente comunicação, é oportuno ressaltar, primeiramente, como aliás o faz um importante teólogo de nossos dias, o atual Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, arcebispo Luis F. Ladaria, que este emprego do termo oikonomia pelos primeiros padres, especialmente por Tertuliano, é designativo antes de tudo de uma realidade “intratrinitária”.[i] De outra parte, porém, é igualmente relevante insistir, como já aludido acima, em repetição de Agamben, por certo, que o paradigma econômico não tardou a ser deslocado para a explicação das relações de Deus com as coisas finitas, tendo se tornado, na verdade, um conceito central para a explicação do governo do mundo e para a doutrina salvífica.

 

Ora, o que aqui e agora me importaria examinar são as implicações desse deslocamento e mostrar como é possível ver, ou, pelo menos entrever, na silogística hegeliana uma espécie de demonstração pelo exemplo de que a contenção e a preservação da oikonomia como uma expressão de relações “intratrinitárias” permite evitar as aporias que resultam necessariamente de sua extensão para teorização da criação e de seu destino, isto é, para a doutrina da salvação e para o conteúdo escatológico que necessariamente lhe é associado. A explicação desse ponto, ainda que eu a vá fazer de maneira muito esquemática, não pode deixar de ser algo sinuosa e por isso requer alguma a paciência.

 

3.

 

Quando avalia esse deslocamento do emprego teologicamente técnico do conceito de oikonomia do plano das relações intratrinitárias para as relações de Deus com o mundo, Agamben trata de desconstruir as dificuldades exegéticas provocadas por essa mudança no uso do conceito, assim como se empenha em desqualificar a longa história de contradições e polêmicas suscitadas por essa importante expansão de seu domínio de aplicação, e para isso observa o seguinte: “O conflito das interpretações repousa sobre o pressuposto errôneo segundo o qual o termo oikonomia teria (….) duas significações contraditórias entre as quais os Padres teriam hesitado de maneira mais ou menos consciente. Uma análise mais atenta autoriza estabelecer que não se trata de duas significações do mesmo termo, mas de uma tentativa de articular conjuntamente numa única esfera semântica (a do termo oikonomia) uma série de planos cuja conciliação era problemática: exterioridade ao mundo e governo do mundo, unidade no ser e pluralidade das ações, ontologia e história. Não somente as duas significações (….) não se contradizem, mas elas só recuperam sua plena inteligibilidade se nos apercebermos de sua relação funcional. Elas constituem, com efeito, as duas faces de uma única oikonomia divina, na qual ontologia e pragmática, articulação trinitária e governança do mundo remetem umas às outras, reciprocamente, a solução de suas aporias”.

 

Todavia, para dizer o mínimo, esta solução é menos do que perfeita. Com efeito, uma vez compreendida a oikonomia trinitária em função da doutrina salvífica, a trindade torna-se constitutivamente escatológica e, portanto, incontornavelmente vinculada às ideias de Juízo Final e do fim dos tempos. Ora, feita esta associação — se a oikonomia trinitária passa a ser pensada, assim, em função da criação, da encarnação e da salvação dos justos — cabe bem perguntar se Deus não se fará dependente assim do criado e, dentro da criação, do próprio homem, cujo drama parece vir a tornar-se constitutivo da estrutura interna do próprio divino.

 

Além disso, como se verá adiante, pode-se também perguntar que articulação lógica restará, que razão haverá para manter e preservar a visão trinitária de Deus, depois, ao final dos tempos, nas condições do pleroma, quando, justamente, a economia da salvação tiver sido encerrada e concluída. Repare-se que é justamente aqui que emergem as discussões teológicas tradicionais cuja razão de ser Agamben trata de por abaixo no texto recém citado. A dificuldade, em questão é, contudo, fortemente resiliente e o próprio Agamben, de maneira algo inconsequente, a reapresenta mais adiante no livro como um sinal do limite de toda especulação teológica.

 

Na teologia moderna, com efeito, o ponto agudamente crítico envolvido nessa discussão costuma ser apresentado na exposição do que os teólogos chamam as doutrinas imanente e econômica do dogma trinitário. A exposição recente que o já referido Luiz Ladaria faz do ponto, em discussão com a versão proposta por Karl Rahner para compreensão da articulação dessas duas teologias, nos permitirá resumir com razoável segurança o essencial da problemática em discussão.

 

Segundo informa Ladaria, em sua obra Mysterium Salutis. Fundamentos da dogmática como história da salvação, Rahner enuncia o chamado “axioma fundamental” da teologia trinitária nos seguintes termos: “a Trindade Econômica é a Trindade imanente e vice-versa”.[ii] No entanto, segundo ainda o arcebispo Ladaria, não obstante a relevância do trabalho de Rahner para recuperação da antiga verdade de que só faz sentido falar do Deus trino a partir da “revelação acontecida em Cristo”,[iii] o vice-versa contido em sua fórmula é visivelmente problemático e virtualmente anatematizável, pois pode facilmente levar a pensar que Deus somente se faz trino na medida em que se comunica aos homens.[iv]

 

Ponto que, logo se percebe, o levaria quase diretamente a uma concepção hegeliana da trindade em que a abstração e a indeterminação do Pai é superada mediante sua manifestação positiva e particularizada na obra da criação e, assim, no Filho, graças a qual aquele recuperaria, enfim, a si mesmo na medida em que, por meio d’Ele, voltaria a si como saber de si, isto é, como Espírito Santo.

 

Ora, uma tal interpretação do dogma da Trindade faz com que Deus não seja Deus sem o mundo, torna necessária e não livre a criação e a Encarnação,[v] com a consequência de que, como se pode dizer parafraseando uma passagem de Hans Urs von Balthasar citada por Ladaria, torna forçoso que se veja a Deus como “absorvido no processo do mundo”, não podendo, portanto, “chegar a si mesmo a não ser através de dito processo”.[vi]

 

No presente contexto não importam as funestas consequências trazidas por essa interpretação hegeliana da Trindade para a integridade da doutrina da fé e sua Congregação.

 

Importa-me, ao invés, primeiramente, tentar mostrar, ainda que contra-intuitivamente, que interpretar a Trindade em termos genuinamente hegelianos, longe de reduzir ou de subordinar a chamada trindade imanente à trindade econômica, conferindo assim à visão do absoluto um caráter constitutivamente escatológico, faz antes o inverso, ocorrendo então, se não nos equivocamos na interpretação, que Hegel, na verdade, o que faz é recuperar o conceito de oikonomia trinitária proposto originalmente por Tertuliano, desvinculando a teoria do absoluto da escatologia.

 

Um segundo resultado e uma segunda vantagem da posição hegeliana pelos quais eu gostaria de argumentar, se me permitem falar assim, é que, admitida a precedência proposta por Agamben das estruturas conceituais teológicas com relação às dedicadas à explicação do político, ganha-se neste terreno, graças àquela – graças à passagem hegeliana – uma liberação de todo messianismo e uma visão muito mais realista e integrada da oikonomia ética, se, novamente, me for permitido empregar essa expressão que Hegel muito provavelmente recusaria. Mas vejamos isso um pouquinho mais de perto, ainda que o desdobramento – porque mais não posso – vá ser minimalista.

 

4.

 

Demonstrar com precisão e com abono textual como a silogística hegeliana recupera a concepção original da oikonomia trinitária e, assim, permite evitar as aporias envolvidas em sua extensão à doutrina da salvação e à escatologia que lhe é inerente, é uma tarefa exegeticamente complexa, cuja implementação requer uma leitura de textos extensa, ademais de condenada a confrontar-se com os mais complexos e difíceis problemas de interpretação da obra hegeliana.

 

Nesta comunicação, contudo, eu vou tentar seguir uma via curta. No entanto, antes disso, como epígrafe, ou, talvez melhor, como uma espécie de abono prévio, parece-me conveniente citar a declaração que se lê na seção sobre as provas da existência de Deus, nas Lições sobre a Filosofia da Religião, onde é dito muito expressamente que “na medida em que se fala do saber acerca de Deus, se fala imediatamente da forma de um silogismo”.[vii]

 

Tornar essa afirmação algo mais clara é um dos desideratos a perseguir aqui, mas, para alcançá-lo, é melhor ir logo a esses textos em que Hegel trata direta e taxativamente de questões teológicas. Assim, para começar, e não sem alguma ironia, no início da Filosofia da Natureza, no § 247, Hegel diz:

 

“A ideia divina é justamente isso, resolver-se, por fora de si essa outra coisa e de novo reassumi-la em si, para ser subjetividade e espírito”.[viii]

 

Esse resumo bruto do mais essencial da filosofia hegeliana é ainda muito indeterminado para mais esclarecer e corroborar a tese acima enunciada e é certamente necessário explicar com maior clareza em que consiste essa resolução da ideia divina. O tópos é recorrente na filosofia hegeliana e os textos abundantes.

 

Assim, para ir adiante, podemos nos reportar, por exemplo, ao Adendo ao parágrafo 381 da mesma Enciclopédia onde se lê o seguinte: “Como é sabido, a teologia exprime esse processo no modo da representação, dizendo que Deus-Pai (o Universal simples, que é em si), renunciando a sua solidão, cria a natureza (o exterior a si mesmo, o que-é-fora-de-si), gera um Filho seu outro Eu); mas esse Outro, em virtude de seu amor infinito, contempla-se a si mesmo, aí reconhece sua imagem, e nela retorna à unidade consigo mesmo. [Essa] unidade, não mais abstrata, imediata, e sim concreta, mediatizada pela diferença, é o Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho e na comunidade cristã alcança sua perfeita efetividade e verdade.”

 

Contudo, esta apresentação da trindade na linguagem da representação, no sentido peculiar que o hegelianismo dá à palavra, a despeito de que expressa nas palavras do próprio Hegel e introduzida como uma versão pedagógica de sua própria posição, por si só, ainda não confirma a afirmação que fizemos acima de que a teoria hegeliana da Ideia absoluta envolve uma interpretação do dogma trinitário que, expressa na linguagem dos teólogos atuais, seria antes imanente do que salvacionista. Muito menos nos faz ver porque envolveria, como afirmamos acima, uma renúncia a toda escatologia.

 

Na verdade, em primeira reflexão, bem se poderia pensar o contrário, uma vez que Hegel sustenta – por exemplo, ao expor o conceito de Deus – uma espécie de dependência constitutiva deste último com relação ao finito. Uma expressão clara dessa posição encontra-se na passagem seguinte: “O finito se mostra (….) como um momento essencial do infinito e, se colocamos a Deus como o infinito, Ele não pode, para ser Deus, prescindir do finito. Deus se finitiza, dá a si mesmo determinação. Isto poderia em princípio ser contrário à Divindade, mas isso já está presente nas representações ordinárias de Deus, pois estamos acostumados, por exemplo, a considerá-lo como criador do mundo”.[ix]

 

Além disso, colocadas as coisas em termos já não mais da representação, mas no registro estritamente especulativo, é preciso admitir que a processualidade da Ideia deve ser concebida como um desenvolvimento concreto e positivo, para tomar de empréstimo dois adjetivos empregados por Bourgeois.[x] O que é dizer que não faz nenhum sentido duvidar que tanto a decisão da Ideia de “deixar sair livremente de si o momento de sua particularidade (….), a ideia imediata como seu reflexo, como natureza” (Enc., § 244)[xi], quanto a autonegação da natureza – o queimar-se dela como um fênix[xii] – da qual sai o espírito, sejam processos reais.

 

Mais: quando o autoritativo comentário de Bourgeois nos diz que: “para o cristianismo a sequência trinitária é uma descida do Pai pelo Filho no Espírito”, enquanto que, para o hegelianismo, ela é: “uma ascensão do Pai, pelo Filho, ao Espírito”[xiii] parece bem confirmar-se a tese de que – como dizem os defensores da ortodoxia católica, e, aqui, para ser específico, o arcebispo Ladaria – de que o desenvolvimento trinitário “parece surgir mais da carência do que da superabundância do ser divino”,[xiv] eis que, como continua o teólogo nosso contemporâneo – e, como aliás já vimos nos textos citados acima – de acordo com Hegel: “Deus não é sem o mundo, o Filho não é sem a Encarnação, o Espírito Santo não é sem a comunidade cristã”.[xv]

 

Ora, se esta fosse a última estação, o fim da linha na interpretação e na compreensão da posição hegeliana então seria forçoso concluir que a alegação que fiz acima de que Hegel recuperaria uma visão imanente da trindade, acautelando-se graças a isso com relação às aporias escatológicas, não teria sido mais do que uma hipótese atrevida e insólita, carente de base filológica e de pertinência hermenêutica.

 

No entanto, as coisas são mais complexas do que parecem e não penso que seja hora de definitivamente entregar os pontos. No já citado § 247 da Enciclopédia lê-se, com efeito, o seguinte: “O mundo é criado, vem a ser criado agora e eternamente foi criado; isto acontece na forma da conservação do mundo. Criar é a atividade da Ideia absoluta; a ideia da natureza é, qual a ideia como tal, eterna. (….) O finito é, porém, temporal; tem um antes e um depois; e quando se tem o finito diante de si se está no tempo. O finito tem um começo, mas nenhum absoluto. Seu tempo começa com ele e o tempo é só do finito. A filosofia é compreensão intemporal também do tempo e de todas as coisas em geral, segundo sua determinação eterna.”[xvi]

 

Ora, se Hegel pode dizer até mesmo da Natureza que ela é eterna, então é claro que pode dizer o mesmo do Espírito e é por isso que, na outra ponta deste mesmo livro II da Enciclopédia, logo depois do passo em que o filósofo nos diz que espírito provém da própria natureza, o texto acrescenta: “ele [o espírito] é tanto antes como depois da natureza (….), Como fim da natureza, ele é, justamente por isso, antes dela, ela proveio dele, contudo não empiricamente, mas enquanto ele já está sempre contido nela e a pressupõe a si. Mas liberdade infinita dele deixa-a livre e apresenta o agir da ideia contra ela como uma necessidade interna nela, assim como um homem livre no mundo está seguro que sua ação é a atividade do mundo.” (Enc., § 376, Adendo).[xvii]

 

Mais: a própria lição da conclusão da conclusão da Enciclopédia, a que nos é dada no ponto culminante do sistema, o que nos é dito no parágrafo 577, é a confirmação plena do ponto, pois o que Hegel denomina o silogismo da ideia da filosofia, consiste justamente na afirmação de que se a Ideia se divide, tendo na natureza e no espírito suas duas aparições, ela, no saber absoluto de si, compreende-se como eterna e como eternamente ativa e engendradora de suas aparições e desfruta deste saber.[xviii]

 

Se, portanto, voltando à linguagem da teologia convencional, nos perguntarmos agora como se há de compreender a concepção especulativa da trindade, parece-me que a resposta deve ser que ela de fato supera a distinção entre as compreensões imanente e económica, pois os fatos da criação, da encarnação e da revelação de Deus no tempo são anulados ao serem reabsorvidos no caráter eterno da divisão da Ideia em suas aparições e no saber eterno de seu retorno a si.

 

Gerard Lebrun, em uma das muitas passagens de seu A paciência do conceito, – ao qual, aliás, eu em parte devo a lição que acabei de apressada e canhestramente resumir – expressa ilustrativamente o que creio se deva considerar como a melhor leitura da tese hegeliana dizendo:

 

“Ora, dizer que Deus ‘se revela’, é dizer que o ser-outro, o Finito não está fora de Deus. (….) Sem dúvida, é difícil para o cristão conceber isso, na medida em que ele atribui mais importância a Encarnação do que ao Gólgota (….). No entanto, é no momento em que a diferença entre Deus e mundo se revela como simples diferenciação que a Offenbarung culmina: a alienação no finito foi apenas um clarão, o tempo que o reino da Finitude aparecesse como uma figura que o divino suscita para logo dissolver em sua esteira”.[xix]

 

5.

 

Se, voltando às preocupações iniciais destas notas, à tese de Agamben relativa à precedência genealógica das categorias teológicas com relação às categorias políticas, nos perguntarmos agora que derivações se seguem da compreensão especulativa da trindade para a estruturação dos conceitos políticos; se nos perguntarmos, pois, de que modo e em que termos a teologia especulativa do filósofo determina a política hegeliana, minha primeira resposta será a de que ela torna impossível todo messianismo e toda escatologia. A segunda será a de que, do ponto de vista hegeliano, não se pode considerar como antinômicos os paradigmas que Agamben denomina de econômico-gestionário e político-estatal.

 

Para esclarecer aforismaticamente o primeiro destes pontos eu poderia simplesmente dizer que para Hegel, do ponto de vista das estruturas conceituais fundamentais da eticidade, o jogo já está sempre jogado. Isto quer dizer que do ponto de vista especulativo suas macro-divisões – família, sociedade civil, Estado – são eternas, eis que tais instituições são necessárias, são as constantes que constituem os próprios termos do silogismo ético.

 

Como é sabido, essa posição exasperava a Marx, cuja crítica, inter alia, dizia: “A Ideia é erigida em sujeito e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado é apresentada como obra da Ideia e de sua atividade imaginária. A família e a sociedade civil são as pressuposições do Estado; elas são, portanto, os únicos elementos realmente ativos, mas na especulação tudo é posto ao reverso”.[xx]

 

Seja como for, consideradas as coisas do ponto de vista hegeliano, não faz sentido nem ironicamente criticar a divisão da vida social global em uma vida terrestre e em uma vida celeste, como lemos em A questão judaica,[xxi], nem esperar nem anunciar, nem lutar, por nenhuma sociedade, conceitualmente nova. O que é também dizer que a ausência de escatologia torna o messianismo uma paixão insensata e inútil, para usar a expressão famosa de Sartre.

 

Radicalizando ainda mais o ponto, se poderia dizer que é a própria discussão sobre o fim da história que esteve sempre mal colocada, porque vale com relação a ela o mesmo que Hegel diz a propósito da exigência de que se dê uma resposta taxativa à pergunta que interroga se o mundo teve um começo no tempo ou não, isto é, deve-se dizer que é este ou-ou da pergunta que não presta (§ 247, p. 29). É que, explica-nos ele, quando nos colocamos no plano do finito não se chega a nenhum fim e se pode dizer tanto que se tem começo, quanto que se o não tem. Certo, há uma história finita do infinito, uma história da volta a si da Ideia no tempo, mas esta, na medida em que é efetivamente história do infinito, e não a série monótona de eventos cronologicamente acumulados, é eterna, a despeito de que possa ser empiricamente esquecida e repetida no curso da história finita, como quando, por exemplo, nos países do dito socialismo real procurou-se dissolver a distinção entre o Estado e a sociedade civil.

 

Analogamente, com relação à segunda questão, como eu procurei mostrar em meu estudo sobre a concepção hegeliana do patriotismo, os paradigmas econômico-gestionário e político-estatal estão inextricavelmente associados, pois assim como há uma dupla figura do patriotismo – um das situações ordinárias, outro os das situações de exceção – assim também se pode dizer que de acordo com as situações concretas em que se encontra contigentemente a vida ética podem predominar uma ou outra das figuras do silogismo ético.

 

Aliás, para encerrar com uma alusão à conjuntura que estamos vivendo, se poderia bem dizer que mundialmente viveu-se nos últimos anos sob o signo da fórmula puramente formal e superficial do silogismo ético – S-P-U –, a fórmula do silogismo da aparência consoante a qual a universalidade parecia derivar simplesmente da interação dos singulares intermediada pela particularidade do sistema das necessidades, vale dizer em linguagem corrente, pela dinâmica imanente da globalização.

 

Agora, no entanto, a grande crise porque passa o mundo restabeleceu a fórmula mais fundamental, a fórmula S-U-P, em que o termo médio é o universal, cuja potência atesta a idealidade de todo singular e de todo particular –de todo finito‑ exibindo-se ao mesmo tempo como seu fundamento e fim último. Pois é isso que na verdade significa esse o extraordinário soerguimento dos governos que voltou a demonstrar que, eternamente, o Estado é a verdade última do social, a instância de que, em última análise, a totalidade ética depende para sua estabilidade e conformação.

 

Referência

 

Giorgio Agamben. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo [Homo Sacer, II]. Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo, Boitempo, 328 págs.

 

Notas

 

[i] V. Luis F. Ladaria, O Deus vivo e verdadeiro — O mistério da Trindade, tradução de Paulo de Gaspar Meneses, S. J., Edições Loyola, São Paulo, 2005, p. 157.

[ii] Apud Luis F. Ladaria, ob. cit., p. 37.

[iii] Id., 38.

[iv] Id., 45.

[v] V. Id., p. 45. O que do ponto de vista técnico da teologia leva à confusão “entre a teologia da Trindade e a Cristologia” (Id., 48).

[vi] Apud Ladaria, ob. cit., p. 49.

[vii] V. G. W. F. Hegel, Lições sobre a Filosofia da religião, I, obra citada aqui de acordo com a tradução espanhola de Arsenio Guinzo, intitulada El concepto de religión e publicada por Fondo de Cultura Económica, México, 1981, p. 248.

[viii] V. V. G. W. F. Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas – Em Compêndio (1830), vol. II, § 247, Adendo; trad. de José Nogueira Machado, publicada por Edições Loyola, São Paulo, 1997, p. 26

[ix] O conceito de religião, de. cit., p. 190.

[x] V. Bernard Bougeois, Présentation, in Encyclopédie des Sciences Philosophiques III – Philosophie de lEsprit, Vrin, Paris, 1988, p. 83, nota 34, in fine.

[xi] V. Enciclopédia das Ciências Filosóficas – Em Compêndio, I, ed, cit., p. 370-1.

[xii] V, id, II, § 376, Adendo, p. 536.

[xiii] V. Bernard Bourgeois, Hegel, Les Actes de lEsprit, Vrin, Paris, 2001, p. 231.

[xiv] V. ob. cit., 47.

[xv] Id. Ib.

[xvi] Ed., cit., p. 28.

[xvii] De. cit., 556,

[xviii] Cf.. ed. cit., 364

[xix] V. Gerard Lebrun, La patientce du concept, Gallimard, Paris, 1972, p. 137.

[xx] V. Karl Marx, Crítica do Estado hegeliano, na tradução francesa de Kostas Papaioannou publicada por 10/18, Paris, 1976, p. 59.

[xxi] Marx diz, com efeito: “Onde o Estado político alcançou seu verdadeiro desenvolvimento o homem – não somente em pensamento, mas na realidade, na vida – leva uma vida dupla, uma vida celeste e uma vida terrena: uma vida na comunidade política, em que ele se considera como um ser coletivo e uma vida na sociedade civil, em que ele age como indivíduo privado, considera os outros homens como meios, degrada‑se a si próprio fazendo‑se ele próprio meio e convertendo‑se em joguete de poderes estranhos a si”. In: K. Marx, Oeuvres, III: Philosophie, Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1982, p.356.

 

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