22 Abril 2019
No Araguaia, Pedro Casaldáliga evangeliza contra o colonialismo e desperta ira da elite local ao denunciar seus crimes. Num mundo dividido por muros e ódio, seu exemplo é inspirador: o paraíso também pode ser construído na terra, escreve Ana Helena Tavares, em artigo publicado por CartaCapital, 18-04-2019.
“Quem fica um dia na floresta quer escrever uma enciclopédia.
Quem fica cinco anos quer ficar em silêncio para contemplar”.
(Pedro Casaldáliga)
Ouvi falar de Pedro pela primeira vez por intermédio de Dom Waldyr Calheiros, no início de 2012. Dom Waldyr, então bispo emérito de Volta Redonda e Barra do Piraí (RJ), contava-me, durante entrevista sobre a ditadura, que havia recebido em sua casa presos políticos recomendados aos cuidados dele por Dom Pedro Casaldáliga, vindos “láááááááááá” da Prelazia de São Félix do Araguaia. Ele pronunciou o “láááááááááá” assim longo, e que lugar “tão, tão distante” aquilo me pareceu!
Após entrevistar Dom Waldyr, eu sonhava entrevistar Dom Paulo Evaristo Arns para falar sobre a ditadura. Liguei para a arquidiocese de São Paulo, mas fui informada que, por problemas de saúde, Dom Paulo não dava mais entrevistas.
Quem me atendeu foi o padre Cido, que me disse que, se eu buscava gente da Igreja Católica para falar sobre a ditadura, tinha de ir atrás de Dom Pedro Casaldáliga. Eu disse: “Mas ele mora ‘láááááááááá’ no Araguaia.” E ele disse: “Sim, mas vale a pena.” Meses depois, eu estaria “láááááááááá”.
Não tive muitas oportunidades de convivência com Pedro. E, ao escrever este livro, lembro-me constantemente da frase dele que coloquei na epígrafe anterior. Não fiquei só um dia, mas fiquei muito pouco, e talvez por isso quis escrever esta biografia.
A primeira vez foi em setembro de 2012. Fui de ônibus, viagem que depois eu descobriria que Pedro fez a vida toda. Quando já estava próximo de chegar, meu ônibus foi barrado por um protesto de posseiros que resistiam a desocupar terras indígenas. Precisei descer, filmei, conversei com pessoas.
Um homem com chapéu de gado, daqueles usados por fazendeiros, quis me ajudar e perguntou qual era meu destino. Meio desavisada, eu disse: “Vou entrevistar Dom Pedro Casaldáliga.” O homem levou um baque, olhou fixo nos meus olhos e disparou: “Arrumo um carro para te levar, mas fique sabendo que aquele bispo não vai para o céu.” Aceitei a carona e, chegando à casa de Pedro, fiquei pensando que ali já era o próprio céu.
Ao fim da entrevista, Pedro tocou no meu ombro e disse, com sua voz baixa, mas firme, como deviam ser todas as vozes: “Nunca se esqueça das causas da vida.” Saí de lá de noite, novamente de ônibus. Lembro-me de olhar pela janela e imaginar que não mais voltaria. Voltei. Em abril de 2016, levando meu primeiro livro: O problema é ter medo do medo — título inspirado na entrevista de Pedro, uma das 26 que compõem o livro.
Perguntei-lhe onde eu poderia fazer a divulgação daquele livro. Eu não sabia se seria adequado ir à catedral, visto que as celebrações ocorridas lá têm sempre muita gente que não concorda com suas ideias. Ele, porém, não teve dúvidas. “Vá à catedral. A gente não joga rede em aquário, rede a gente joga no mar.” Um dos ensinamentos que ganhei para a vida.
Mas, quatro anos depois da primeira visita, eu queria levar para ele, além do livro, a certeza de que eu não iria me esquecer das causas da vida e a notícia de que, no auge de minha ousadia, eu pretendia biografá-lo. Ou “causografá-lo”, como ele prefere.
Também em 2016, já em novembro, eu voltaria pela terceira vez. Agora para participar do Dia Nacional da Juventude (DNJ). Foi quando tive oportunidade de ficar mais tempo e acompanhar um pouco o cotidiano da casa de Pedro. Desde a fé renovada todas as manhãs durante a oração comunitária na capelinha de seu quintal até a possibilidade de observar sua paixão pela natureza, em especial pelo rio Araguaia. “Está bonito o dia, menina, vá passear de barco pelo rio”, recomendou-me o bispo.
Obedeci, é claro. E vale dizer que, quando ele disse aquilo e riu, tirei dali um grande ensinamento de resiliência. Aprendi que a alegria traz em si uma chama revolucionária em meio a um mundo no qual os poderosos se regozijam da tristeza do povo. Com idade avançada e debilitado fisicamente, não são todos os que conseguem sorrir e ver a importância de um passeio de barco.
Na volta, hora do almoço, perguntou: “Como vai nossa biografia?” Fiquei feliz pela demonstração que deu ali de ter plena consciência do trabalho, mas o que me chamou atenção foi a primeira pessoa do plural. “Nossa biografia?” Ora, seria normal que qualquer outra pessoa falasse “minha biografia”. Mas não para Pedro. Para ele, tudo é coletivo.
É possível dizer, como comentou Eduardo Suplicy ao almoçar comigo em uma padaria, em janeiro de 2017, e saber do título deste livro, que, no mundo atual, Pedro representa uma “antítese de Trump”. É verdade. Enquanto o presidente dos Estados Unidos simboliza um mundo dividido por muros e ódio, para Pedro, os muros e as cercas “nos impedem de viver e de amar”.
E, embora as pessoas que representam essa antítese pareçam invisíveis, existem milhares de discípulos das ideias de Pedro no Brasil e no mundo. Nas redes sociais, muitas pessoas usam Casaldáliga como sobrenome simplesmente como homenagem. Muitas delas, religiosas ou não, atuam nos diversos organismos missionários e nas pastorais sociais. A semente da coletividade, da fraternidade e da esperança foi plantada por Pedro de maneira definitiva. Seu livro Pedro Casaldáliga, do qual retirei muitas informações, é um hino de amor à humanidade, uma ode à liberdade.
Lançar-me, ainda jovem, na aventura de biografar alguém de vida tão fascinante, um homem que muitos consideram um santo, pode parecer, mais do que uma ousadia, um atrevimento. E é. Mas me ancoro no incentivo de quem veio antes de mim, caso do jornalista catalão Francesco Escribano, autor do livro Descalço sobre a terra vermelha, que me escreveu uma alentadora dedicatória em seu livro, na qual dizia esperar por outro livro sobre Pedro. Ancoro-me nas palavras que ouvi do cineasta Silvio Tendler, autor de premiados documentários biográficos: “A revolução não persiste se não houver contadores”, encorajou-me Silvio.
Ancoro-me no próprio Pedro, que, em frase publicada no livro de Escribano, declara: “Somente se pode equivocar aquele que se aventura. Se fechas as portas a todos os erros, tu te arriscas a fechar as portas à verdade.” Aventurei-me, pois, sabendo que equívocos e erros são naturais a quem se movimenta.
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O bispo que não vai para o céu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU