48 horas com Pedro Casaldáliga, o teólogo da Libertação que vive com os indígenas na Amazônia

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23 Fevereiro 2018

Alérgico à ostentação - dom, senhor - e a qualquer fórmula de cortesia que indique hierarquia. Discreto nas formas – 162 centímetros e um peso pena – e no fundo. É daqueles que prefere o estilo direto, olhar nos olhos, apertar a mão com força. Pedro Casaldáliga não gosta que o chamem bispo, nem monsenhor, nem padre. Apenas Pedro.

A reportagem é de Agnese Marra, publicada por El Mundo, 21-02-2018. A tradução é do Cepat.

Contudo, não se enganem, essas cinco letras com suas duas vogais e três consoantes, quando ressoam em São Félix do Araguaia, um povo amazônico do estado brasileiro do Mato Grosso, deixam de ser um nome e se tornam uma instituição. Em uma forma de entender a vida ao lado dos que sempre perdem e enfrentam aqueles que sempre ganham. Sem romanticismo, nem boas palavras. Com fatos, colocando a mão na massa.

Não em vão passou por 10 malárias, sete tiroteios, incontáveis ameaças de morte e cinco tentativas de expulsão do país. Viu como torturavam seus companheiros, enterrou centenas de camponeses e indígenas e salvou a vida de outros tantos. Alfabetizou adultos e crianças, recuperou terras para seus lavradores, deu saúde e educação a um lugar no qual não chegava o Estado, a essa “terra sem lei” que recorda o padre Saraiva, um dos agostinianos que ainda lhe acompanha.

São sete e quinze da manhã de terça-feira. Restam três dias para que Pedro Casaldáliga complete 90 anos, e caravanas com fiéis de todo o Brasil estão a caminho para festejar a data. Há apenas um mês, celebrou outro aniversário, seu meio século de vida em São Félix do Araguaia, o povoado no qual chegou como missionário, no qual se tornou bispo relutantemente e onde, hoje, é chamado “profeta vivo dos pobres”. Casaldáliga e São Félix são duas caras da mesma moeda. Unha e carne. Aqui, o padre claretiano pôde fazer três pequenas-grandes revoluções: a eclesiástica, a popular e a humana. Pôs em prática a Teologia da Libertação e se centrou em resgatar e dar apoio aos excluídos, mais que em evangelizá-los. Colocou no mapa uma terra perdida do Brasil e deu nome às feridas de um país que são as mesmas de seu continente: a luta pela terra, a desigualdade, a justiça para uns poucos. Nunca mais deixou São Félix porque o verbo abandonar não existe no dicionário deste catalão e filho de camponeses catalães que ainda pede a Diolice – sua cozinheira, que às vezes faz de mãe – pão com tomate para o café da manhã.

Começa a oração

A essas horas do dia, já são sentidos os 32 graus no corpo. Apenas dois cachorros tipicamente do povo – por esse gesto triste de pertencer a todos e a ninguém – ocupam a Avenida Governador José Fragelli. No número 1.310, a porta está aberta. A casa daquele que foi o primeiro bispo da região não se distingue da de seus vizinhos. Entramos. A oração irá começar.

O homem que gesticulava com os braços bem abertos e o dedo indicador levantado, hoje, está encolhido em sua cadeira de rodas. Suas mãos ossudas se juntam e o anel de madeira de Tucum (que simboliza a causa indígena), com o qual lhe nomearam bispo – rejeito o de ouro – destaca-se entre o branco neve de seus dedos. Sua cabeça antes erguida, com esse gesto de quem sempre busca algo, agora se curva à direita. Seus olhos grandes como globos, por trás dos óculos miram curiosos, continuam buscando.

O padre Casaldáliga diante do corpo de um camponês

Os tremores do Parkinson, que sofre há 10 anos, obrigaram-lhe a um silêncio que só às vezes consegue romper com pequenos gestos e escassíssimas palavras. Casaldáliga é um saquinho de ossos que quando escuta a palavra “índio”, incorpora-se como se ele tivesse sido chamado. Se lhe falam da Espanha, mexe-se na cadeira como para dizer “me importa”, e ao nomear “reforma agrária” – a peleja que lhe trouxe ao Brasil, e pela qual deu a vida – estica o braço e segura com força o braço da jornalista. Apesar da prisão na qual seu corpo se tornou, este homem que sempre teve o porte de um jockey de hipódromo e o estilo austero do missionário, ainda encontra os atalhos para nos dizer isso de “não abandono”.

Todos os dias, às sete e meia da manhã, Pedro e os três agostinianos com quem vive rezam para recordar os mártires da América Latina. Nesta terça-feira, dia 13, homenageavam o sacerdote Francisco Soares, assassinado por defender os pobres da Argentina. Ijaní, o índio karajá que cuida do religioso catalão, lida com os mosquitos que querem pousar na frente do bispo, que embora hoje se levantou um pouco sonolento, consegue se benzer e recitar o Pai Nosso.

A capela, assim como o restante da casa, é um museu da memória do continente americano. Uma mesa de madeira no meio, com uma toalha vermelha e verde dos índios mexicanos. Ao fundo, guarda duas relíquias especiais: um pouco de sangue de dom Romero e um pedacinho de crânio de Ellacuría, ambos assassinados. Em todos os cantos pregam recordações de lutas latino-americanas: um cartaz da reunião de Povos Indígenas; um poema do próprio Pedro contra o latifúndio, outro pecado capital segundo o bispo; uma cruz de palha em forma de camponês e cartazes da guerrilha sandinista nicaraguense: “A revolução mais bonita e cristã que já vi”, disse em seu dia.

Ijaní, que o limpa, ajuda com a comida, o levanta e o coloca na cama, nos diz que Pedro está lúcido, mas que às vezes gosta de viver no passado. Assim, explica que, de repente, pede que o leve a Santa Teresinha, aquele povoado no qual enfrentou, pela primeira vez, proprietários de terras que tinham latifúndios do tamanho de Astúrias inteira. Também pede que o vista para ir ao Centro Comunitário, o lugar no qual eram feitas as reuniões da Prelazia, onde organizavam o calendário das próximas batalhas. Depois, tem aqueles dias em que deseja telefonar para a Polícia Federal, com quem conversava de vez em quando para lhes informar a respeito de uma nova ameaça de morte. Leva toda a vida as resistindo e a velhice e o Parkinson não frearam as ânsias de vingança de seus inimigos.

Foram para matá-lo

Em 2012, a Polícia o escondeu durante dois meses porque os latifundiários da região queriam lhe matar por ter ajudado os índios xavantes a recuperar suas terras. Mas, a porta da Avenida José Fragelli, 1.310, nunca deixou de ficar aberta. Nesta terça-feira e nesta quarta-feira, recebeu a visita de 11 pessoas, entre fiéis e vizinhos. Dois caciques indígenas lhe pediam sua bênção, quatro fiéis lhe acompanharam na oração do dia e cinco mulheres indígenas chegaram na hora do almoço para comer um pouco de feijão com arroz. “Durante toda a vida, disse-me que se há comida, tem que oferecer, e eu obedeço”, disse Diolice, a cozinheira que aprendeu a fazer torta de batatas para alegrar o dia de Pedrinho, como o chama carinhosamente.

Poucos objetos podem salvar a vida de um homem e mudar a de um povo. Não exageramos se dizemos que a Lexicon 80, uma máquina de escrever que chegou em 1969 a São Félix do Araguaia, conseguiu ambos objetivos. Pedro Casaldáliga, tão espiritual como político, fez da escrita sua forma de se comunicar com o mundo, seu veículo de denúncia e o espaço para fluir na poesia, outro alimento que o mantém vivo.

Em uma de suas visitas para conhecer os problemas dos excluídos

É dessa Lexicon que saiu a polêmica carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, que quis publicar no mesmo dia em que se consagrou como bispo, para que essas honras que pouco lhe interessavam servissem ao menos para dar publicidade a suas causas. Graças a essa máquina de escrever, soube-se que no Brasil havia trabalho escravo, que os latifundiários roubavam as terras dos camponeses e que também os matavam e pediam suas orelhas como prova da morte.

Pedro contou que a ditadura militar da época não só torturava e assassinava guerrilheiros, também tinha por vítima índios, sacerdotes e qualquer um que ousasse se rebelar.

Graças a essa Lexicon 80, dezenas de jovens de todo o Brasil decidiram trabalhar com o “bispo que defende aos vagabundos”, como dizia a manchete de o Jornal de Brasília. Esse foi a manchete lida pela estudante de Direito Maria José Souza, Zezé para os amigos, e que a fez se decidir marchar a São Félix do Araguaia para conhecer o missionário catalão. O mesmo aconteceu com Agueda Aparecida, que saiu de Minas Gerais com seu título de professora para ajudar na Prelazia do Araguaia. Foi assim que o autor de El vuelo del quetzal: espiritualidad en Centroamérica y Sonetos neobíblicos fez sua revolução eclesiástica. Nem paróquias, nem párocos.

Os 150.000 quilômetros quadrados que o bispado controlava, funcionavam em redes comunitárias, com uma Prelazia formada por agentes pastorais, onde o voto do bispo valia tanto como o da freira ou do leigo: “Se havia algum problema em um município, inteirávamo-nos, fazíamos assembleias debaixo dessa mangueira – destaca uma que está junto à capela – e decidíamos o que fazer”, conta-nos Zezé, que todas as tardes se senta ao lado de Pedro e lê para ele durante uma hora. “Hoje, me fez os comentários irônicos de sempre”, disse-nos, na quarta-feira.

Pedro, o salvador

Maria do Carmo, uma camponesa de Porto Alegro do Norte que na quarta-feira de cinzas quis fazer sua visita anual ao “melhor bispo que o Brasil conheceu”, disse que não pode esquecer como Pedro salvou a vida de seu marido. Esta mulher negra, 60 anos, analfabeta, conta que as galinhas eram as únicas que ficavam tristes quando o bispo chegava a sua cidade: “Sabiam que nós as íamos cozinhar, porque não faltava um prato de comida para lhe receber”, relata com um sorriso. A professora Agueda Aparecida enche os olhos de lágrimas quando acaba a oração da manhã: “Ele mudou minha vida, ensinou-me todos os valores que me sustentam, eu os repassei para meus filhos”.

Zezé nos confessa: “Não é que Pedro necessite de mim, sou eu que necessito dele”. Já Diolice, a cozinheira que o catalão acolheu quando seu marido a abandonou com quatro crianças pequenas, vai além: “Na vida, agradeço a Deus e depois a Pedro”. Ele a alfabetizou, cuidou dela e permitiu que a mesma avançasse. “O mínimo que posso fazer é lhe acompanhar até o último dia”.

Todos falam da constância, da perseverança de sua luta, inclusive nestes dias. Na tarde da quarta-feira, ele mesmo nos disse: “Percorri muito caminho, mas me resta a fazer”. Eram seis da tarde, pouco antes do jantar – a pior hora, dizem seus cuidadores -, mas, nesse dia, Pedro Casaldáliga tinha vontade de falar e voltou a buscar a mão da jornalista: “Memória, é preciso cuidar da memória histórica”, disse e encostou a cabeça sobre seu ombro. Ao nos despedir, em meio a um abraço, seus olhos como globos contemplaram fixamente e suas mãos ossudas se movimentaram como um leque: “Sem amarras, seja livre”.

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