11 Junho 2014
"O mal-estar na sociedade é muito real, mas também vem sendo alimentado por uma certa mídia, que busca desprestigiar de todas as maneiras o governo. Isso pode levar ao voto em branco ou nulo. Isso sim é um retrocesso à democracia. E a oposição não surge como alternativa, num vazio de propostas concretas. Como canalizar a reação das ruas com sensibilidade e com instrumentos de participação cidadã?", escreve Luiz Alberto Gómez de Souza, sociólogo.
Eis o artigo.
Vendo a legítima reação popular em nossos dias, não posso deixar de recordar experiências passadas. Em 1962/63, Herbert José de Souza (Betinho) e eu, com outros companheiros, participamos da criação de um movimento político (não um partido, na acepção tradicional), como uma alternativa original no campo das esquerdas: a Ação Popular, “expressão de uma geração ... resposta ao desafio de nossa realidade, como decorrência de uma análise realista do processo social brasileiro...” Lembro Betinho caminhando e ditando essa introdução no congresso que aprovou, em 1963, o documento-base do movimento. Queríamos estar organicamente unidos ao processo popular e estudantil. Para Candido Mendes, era “o momento por excelência da práxis” (Memento dos vivos. A esquerda católica no Brasil, Tempo Brasileiro, 1966).
Porém com a clandestinidade, logo depois, a AP não resistiu e caiu nas malhas da esquerda tradicional marxista, com seus permanentes rachas, entrando num debate abstrato de teses conflitantes: pensamento de Althusser, foquismo, maoismo... Essa discussão ideológica – no pior sentido de ideologia como falsa consciência, visão invertida da realidade, contraditoriamente inserida numa matriz idealista, empunhando textos de Lênin ou de Mao como um catecismo – afastou-se de uma reflexão concreta a partir da práxis, para cair numa discussão de ideias e correntes de pensamento, perdendo o pé na realidade. Marx dissera que havia que subir do abstrato ao concreto. Seus discípulos, em boa parte, não conseguiram dar esse salto de um verdadeiro materialismo - análise material das contradições - e esvaziaram o debate na guerra imaterial de teses acadêmicas, como aquelas sobre o possível modo de produção existente, se feudalismo, escravagismo, capitalismo, etc. A AP, em meados dos anos setenta, dividia-se em duas vertentes maoistas, a AP-ML de um lado, com a férrea direção do camarada Dori, arremedo de Mao e, de outro, mergulhando e desaparecendo no seio do PC do B. Em 1966, melancolicamente, eu tomara distância do movimento que ajudara a criar. Betinho, o principal líder, se afastou no começo dos anos 70, depois de um período que, confessou com mineira e triste ironia, veio “toda essa loucura que engoli” (Obra coletiva, Memórias do exílio, Brasil, 1964 - 19??, Lisboa, Arcádia, 1978).
Em 1977 voltei ao Brasil, Betinho, com a anistia, em 1979. Eu no IBRADES, Betinho fundando o IBASE, nos púnhamos a serviço dos movimentos sociais e da base na sociedade civil. Talvez marcados pela experiência anterior, não tivemos pertença partidária. Mas isso correspondia, principalmente, a uma postura diante da realidade brasileira, onde desejávamos nos engajar. Depois da ditadura, emergia uma sociedade civil que sobrevivera nos subterrâneos da sociedade e nos espaços eclesiais e à qual queríamos estar ligados.
Em 1994, Betinho se transformara na grande consciência ética do país e escreveu então um iluminador artigo: “Opção pela sociedade” (Jornal do Brasil, 18 de agosto de 1994). Ali dizia: “meu olhar e minha atenção estão concentrados sobre a sociedade. Por isso, para mim, mais importante que o estado é a sociedade ... Sou crítico do estado porque quero democratizá-lo radicalmente, submetê-lo radicalmente ao controle da cidadania. Não quero o estado no planalto mas na planície Não quero o salvador, mas o funcionário público eleito para gerenciar o bem comum ... Apesar de não acreditar que eu vá viver muito [morreria três anos depois, em agosto de 1997 ], o fato é que atuo como se a vida não terminasse numa eleição.”
Eu fora, em parte, responsável pelo texto, redigido com maestria a pedido meu. Escrevi-lhe no mesmo dia: “Estou em sintonia total com teu artigo ... O grande trabalho se dá na sociedade e nos poderes locais... há que desmistificar essa modernidade que reduz tudo ao estado e ao mercado. A sociedade vai muito mais além e a política tem mais amplas ambições e responsabilidades”. E terminava: “Teu velho companheiro de geração e de sonhos...”
Estava claro que, saindo de um período militar, éramos totalmente favoráveis a uma democracia representativa, partidos livres e eleições também livres. Mas queríamos articular esta opção com uma democracia participativa. Experiências como o orçamento participativo, que começou com o PT em Porto Alegre, eram uma maneira criativa de relacionar as duas dimensões da democracia.
A Constituição “cidadã” de 1998, no artigo 14, indicava o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular como mecanismos de participação direta dos cidadãos. Em 1997, uma iniciativa popular de combate à corrupção recolheu mais de um milhão de assinaturas e levou à Lei 9.840 de 1999. Em setembro de 2009, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), recolheu novamente mais de um milhão e trezentas mil assinaturas, com outro Projeto de Lei de iniciativa popular, sancionado em 4 de junho de 2010, a chamada Lei da Ficha Limpa. Foram experiências em que a participação popular pressionou e exigiu a aprovação de leis por um poder legislativo a princípio hesitante, sancionadas logo pelo executivo.
Estas reflexões são de enorme atualidade. Nos últimos anos, pelo mundo afora, surgiu o crescente chamado do “povo na praça”, título de um seminário que organizei na Candido Mendes em 30 de agosto de 2011. Foi aumentando a desconfiança por um sistema representativo com eleições financiadas e subordinadas ao poder econômico e com a manutenção de uma casta inamovível de “políticos profissionais”. Leio na imprensa que um professor da Unicamp, Marcos Nobre, a partir das manifestações de julho de 2013, escreveu um livro que ainda não li,“Choque de democracia – Razões da revolta”, onde parece ver que aquelas mobilizações liberaram uma enorme energia democrática. Estaria talvez próximo ao que pensávamos em 1994. Diz em entrevista: “de um lado uma enorme energia democrática liberada, um anseio por um ritmo mais rápido de democratização; do outro um sistema político que não consegue se organizar” (O Globo, 8.6.2014).
Eu estava em Madri, em 2011, no começo do 15-M, na Puerta del Sol. Frente a meu hotel surgiram rapidamente barracas e papelógrafos libertários. Um destes últimos, muito espanhol, era especialmente picante: “Os políticos são como as fraldas das crianças. Devem ser mudados com frequência e pelos mesmos motivos”.
Só com uma profunda reforma política poderemos recuperar o dinamismo e a legitimidade da democracia representativa e o prestígio de seus eleitos. O terrível é que a classe política dos velhos caciques, raposas escorregadias, dificilmente aceitará ela mesma revisar normas que implicariam em seu declínio inevitável.
O governo da presidenta Dilma tem sido sensível às mobilizações e sentiu a necessidade de estabelecer canais de comunicação entre as bases e as políticas públicas. O decreto 8.243/2014, criou a Política Nacional de Participação Social (PNPS), legitimando conselhos populares, pontes entre a sociedade e o estado. Foi o que bastou para que a oposição – que não tem propostas, mas vive de reações –, gritasse histérica contra os riscos do que poderia implicar, para ela, uma perigosa democracia direta. Um de seus intelectuais denunciou, com chavões impróprios, “a velha mistificação corporativista, sindicalista e fascistoide”. Outro alertava para o perigo de desconstruir a representação, como se ela já não estivesse se autodesconstruindo, ao ir perdendo legitimidade. Assinalam o perigo suposto de um chavismo, como Carlos Lacerda, décadas atrás, denunciava, violento, uma contaminação peronista. Para o senador Álvaro Dias, com seus olhos arregalados, sempre pronto a saltar diante de qualquer proposta do governo, “a presidente tenta enfraquecer o papel do Congresso como a Casa de debates da sociedade”. Como se este fosse o único espaço possível onde, aliás, está tentando, com enorme dificuldade, concretizar uma frágil reflexão político-social (O Globo de 3.6.2014 e de 8.6.2014).
A ponte entre o governo e a sociedade civil está, em boa parte, nas mãos do secretário geral da presidência, Gilberto Carvalho, notável militante histórico de movimentos e pastorais sociais, radicalmente democrático. É criando canais de comunicação que se pode, inclusive, recuperar o prestígio dos poderes públicos. Temos um legislativo desgastado por sua lerdeza em enfrentar os reais problemas do país. Não por casualidade, o judiciário vem suprir a carência desse poder, tantas vezes enfrascado em debates de política miúda ou ocupando seu tempo em CPIs eleitoreiras. Também o executivo deve fazê-lo, muitas vezes através de medidas provisórias que não atrasem o processo decisório. E a oposição, sem iniciativas, grita cada vez que o governo toma decisões inovadoras – Bolsa Família, Luz para todos, mais recentemente do Mais Médicos ao Pronaf (de apoio à agricultura familiar) e agora estes canais de participação social.
O mal-estar na sociedade é muito real, mas também vem sendo alimentado por uma certa mídia, que busca desprestigiar de todas as maneiras o governo. Isso pode levar ao voto em branco ou nulo. Isso sim é um retrocesso à democracia. E a oposição não surge como alternativa, num vazio de propostas concretas. Como canalizar a reação das ruas com sensibilidade e com instrumentos de participação cidadã? Esta Política de Participação Social pode colaborar no aprofundamento democrático, se estiver à escuta dos clamores da sociedade e aos novos códigos de comunicação dos jovens. Isso exige humildade, abertura aos desafios emergentes e capacidade de revisão constante. Ao ouvir alguns políticos autossuficientes e donos da verdade, - na oposição e também no governo -, tem-se a impressão que eles não parecem compreender o alcance da legítima reação de uma cidadania alerta, felizmente incômoda e impaciente, no exercício de seu legítimo direito à indignação.
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Radicalização da democracia e a impaciente voz das ruas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU