A América Latina surge como a nova “Igreja fonte” com o Papa Francisco

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16 Março 2015

"Dois anos atrás, na Capela Sistina, os cardeais escolheram não só um líder, mas também um programa. Cientes ou não, ao elegerem Francisco eles estavam permitindo que o fogo acendido no encontro de Aparecida fosse trazido para Roma, para agitar o Vaticano e acender a Igreja universal", escreve Austen Ivereigh, autor do importante livro The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope”, amplamente comentado na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 13-03-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis o artigo.

Uma das histórias não contadas por detrás da eleição do Papa Francisco em março de 2013 foi o surgimento da América Latina como a nova Igreja fonte para o catolicismo global. Os cardeais não apenas elegeram Jorge Mario Bergoglio, mas também um programa, o qual encontrou expressão sobretudo no importante documento produzido pelos bispos latino-americanos em Aparecida, São Paulo, em maio de 2007. O principal autor deste documento foi o então arcebispo de Buenos Aires.

Aparecida marcou o momento de amadurecimento de uma teologia. O seu enfoque – missionário, evangelizador, pastoral e dos pobres – agora sublinha o programa do Papa Francisco, delineado na exortação apostólica de novembro de 2013 “Evangelii Gaudium”.

Assim como a Igreja na Espanha e Itália foi a fonte para a Contrarreforma, e a Igreja da França e Alemanha a fonte para o Concílio Vaticano II, a América Latina é, hoje, a fonte de uma nova era de reformas. Se Francisco deixa perplexos os europeus e norte-americanos, há muito acostumados a pensar em termos de “progressista e conservador”, é porque ele usa uma lente e uma linguagem que vem de fora destas categorias.

Como exemplo, podemos considerar os seus comentários em janeiro deste ano sobre o controle de natalidade que acabaram sendo postos de lado, nas reportagens feitas sobre a entrevista abordo do avião papal de volta de Manila, Filipinas, por causa de seu dizer “como coelhos”. O que marcou foi a articulação de Francisco sobre a oposição do Papa Paulo VI à contracepção artificial em termos de uma postura corajosamente profética em nome dos pobres do mundo contra os poderes reinantes, orientados pelas suposições neomalthusianas e eugênicas de que a pobreza é uma consequência do aumento populacional.

Os progressistas do Norte, que tanto dentro quanto fora da Igreja viram isto como uma questão de autonomia pessoal em vez de uma defesa anticolonial dos direitos dos pobres, foram pegos de surpresa. Mas o mesmo aconteceu também com os conservadores, acostumados a defender a “Humanae Vitae” em termos doutrinais.

As palavras de Francisco foram inteiramente inspiradas no encontro de 1968 do CELAM, a conferência episcopal dos bispos latino-americanos, ocorrido em Medellín, Colômbia. Este evento teve um impacto profundo em Jorge Mario Bergoglio, então u m jovem padre terminando os seus estudos jesuíticos de teologia.

Medellín – que articulou a “opção pelos pobres” – considerava a “Humanae Vitae” assim: Roma auxiliando os países pobres utilizando estratégias de desenvolvimento financiadas pelos países ricos e impondo um “erotismo da civilização burguesa”. Esta era a Igreja falando em nome dos pobres evangelizados, defendendo a cultura deles. De forma semelhante, mais de 40 anos depois, no avião papal, Francisco falou da “colonização ideológica”, tal como havia dito antes em Manila: “Os povos não devem perder a sua liberdade. Um povo tem a sua cultura, a sua história”.

Esta é exatamente a linguagem que Bergoglio como provincial usava na década de 1970 com seus companheiros jesuítas, divididos na época por ideologias rivais de elite. Ele instava-os a se focarem nas necessidades e valores daquilo que chamava de o “santo povo fiel de Deus”, termo que misturou a ideia do Vaticano II de povo de Deus com a opção pelos pobres, de Medellín, tendo sido moldado pelo nacionalismo e pela cultura em vez de sê-lo pelas ciências sociais.

Embora o termo 'santo pueblo fiel de Dios' fosse de Bergoglio, o seu pensamento refletia uma expressão especificamente argentina da teologia latino-americana, identificada sobretudo com os teólogos Lucio Gera e Rafael Tello. Em essência, a 'teología del pueblo' rejeitava as categorias progressistas e marxistas como instrumentalização imperialista dos pobres, e abraçava a ideia de ver as pessoas como sujeitos da história e da cultura, tanto como recipiendários como agentes da evangelização.

Bergoglio costumava dizer que as pessoas têm um modo de ver, uma consciência, uma hermenêutica. Como ele falou aos jesuítas em 1980: “A primeira questão que qualquer pastor que busca reformar as estruturas [de injustiça] deve se perguntar é: O que o meu povo está pedindo de mim? O que ele está pedindo que eu faça? E, em seguida, ele deve se pôr a escutar”.

Esta fé na história e na cultura, e não nas ciências sociais ou na revolução política, foi uma importante linha divisória entre a versão argentina da Teologia da Libertação e a versão centro-americana e andina melhor conhecida dela. Esta fé também foi a fonte de discórdia entre os bergoglianos “nacionalistas” e os bergoglianos “progressistas” dentro da província jesuíta argentina.

No entanto, embora Bergoglio acabaria sendo removido de lugar dentro dos jesuítas, foi a 'teología del pueblo' que, aos poucos, prevaleceu, no documento de 1975 intitulado “Evangelii Nuntiandi”, do Papa Paulo VI (texto fortemente influenciado por Gera e Tello e fundamental para o clero da geração de Bergoglio), e no encontro do CELAM, quatro anos mais tarde, em Puebla, México.

Para os teólogos do povo, o projeto de libertação não é um projeto de confisco do Estado via revolução, mas o projeto nacionalista católico de construção feita pelo povo, em que Deus está chamando o seu povo para participar de um renascer de justiça, protegido e incentivado por uma Igreja que olha, primeiramente, para os pobres e marginalizados.

Uma figura-chave para a articulação de Bergoglio relativo à ideia de construção feita pelo povo foi, durante muitos anos, o seu filósofo e amigo uruguaio Alberto Methol Ferré. Possivelmente o maior intelectual leigo católico latino-americano do século XX, Methol Ferré passou a maior parte de sua vida convencido de que a América Latina estava mudando: de uma “Igreja de reflexão” (uma que ecoou na Europa) para uma “Igreja fonte” que iria, em tempo, revigorar a Igreja universal.

Ele via a retirada primeiramente do marxismo e, depois, do neoliberalismo na América Latina como a abertura de uma nova era para que os povos locais assumissem, finalmente, o palco, a arena. Este processo foi, no entanto, atrasado, tanto pela assunção da teologia latino-americana pela esquerda quanto pelo centralismo do Vaticano sob o Papa João Paulo II.

Em 2005, Methol Ferré e Bergoglio acreditavam que o momento da América Latina não havia chegado ainda; os dois achavam que o Cardeal Ratzinger deveria ser o papa. Em parte, foi por isso que Bergoglio resistiu à tentativa de um grupo de cardeais para elegê-lo no Conclave daquele ano.

Mas depois de 2005, começava a ficar claro que o momento havia chegado. No contexto de duas décadas, a América Latina irá desempenhar um “papel-chave nas grandes batalhas que estão tomando forma no século XXI”, escreveu Bergoglio no prólogo para um livro que veio a ser publicado naquele mesmo ano.

Em Lima, no Peru, ao celebrar o 50º aniversário da fundação do CELAM, Bergoglio disse que havia chegado a hora para um continente, que somava a metade dos católicos do mundo, “prestar um serviço à Igreja universal” e partilhar os dons que o Espírito Santo despejou por sobre este povo.

Antes, porém, a Igreja latino-americana precisou se encontrar novamente. Methol Ferré estava muito doente para participar em Aparecida, e morreu dois anos mais tarde. Mas, como Moisés no Monte vislumbrando a Terra Prometida, ele viveu para ver isto tudo acontecer. Em sua entrevista intitulada “La América Latina del siglo XXI”, o filósofo defendeu que a eleição do Papa Bento XVI iria inaugurar uma nova primavera no pensamento católico latino-americano, pois este papa, enquanto fora o Cardeal Ratzinger, havia se envolvido profundamente com a teologia deste continente, ao preparar as suas famosas instruções sobre a Teologia da Libertação.

Com efeito, entre os primeiros movimentos de Ratzinger esteve o de dar permissão para o encontro do CELAM em Aparecida, que o cessante secretário de Estado, o Cardeal Angelo Sodano, há muito vinha impedindo. No voo de São Paulo para o santuário de Aparecida, Bento disse: “Estou convencido de que a partir daqui será decidido – pelo menos em parte, mas uma parte fundamental – o futuro da Igreja Católica”.

Em sua homilia no santuário citado após a partida de Bento XVI, Bergoglio usou uma marcante metáfora quando falou, pela primeira vez (pelo menos num grande evento público), das "periferias existenciales". Esta frase deixou muitas pessoas impressionadas. Ela sugeria não só as favelas, mas um mundo de vulnerabilidade e fragilidade, um lugar de sofrimento, saudades e pobreza, e também – por causa da proximidade de Cristo – um mundo de alegria e esperança.

Bergoglio foi eleito por seus bispos companheiros para ser o responsável da redação do documento final de Aparecida, que é repleto de conceitos da 'teología del pueblo'.

Em sua visão e vigor, em sua defesa ferrenha dos pobres e em sua espiritualidade missionária, em sua proclamação corajosa do nascimento de uma nova primavera de fé, o Documento de Aparecida era agora a chave para um importante e novo esforço de evangelização na América Latina relacionado, indissoluvelmente, com a libertação de um povo. Em nenhum outro lugar do mundo houve algo parecido com o que se poderia comparar. Era a expressão de uma nova maturidade, de uma Igreja local amadurecida.

Por isso é tão pungente que Bento tenha decidido, em 2012 no México, voltar à América Latina em 2013. É difícil não enxergar uma Igreja europeia exausta, pondo-se de lado para permitir que a vigorosa Igreja latino-americana assumisse o seu lugar.

Que uma tal transição estava acontecendo ficou óbvio no Sínodo dos Bispos sobre a nova evangelização. As Igrejas da Europa e dos EUA estavam ansiosas, centradas em si mesmas, focadas naquilo de que careciam. Por que um bispo asiático ou do Oriente Médio, cujo rebanho estava sendo morto e bombardeado, poderia estar tão esperançoso e alegre, enquanto que bispos de uma Igreja onde ninguém sofria daquele tipo verdadeiro de perseguição falavam como se a civilização cristã estivesse vislumbrando a sua aniquilação?

“No Sínodo, os ventos sopraram do Sul”, disse um teólogo argentino enviado por Bergoglio à Rádio Vaticano.

Bergoglio viu assim também. A Igreja dos países ricos estava culpando a cultura por seu declínio. Não obstante, o primeiro obstáculo não era a cultura, mas uma Igreja que crescera de forma mundana e autorreferencial, que não mais evangelizava e que permitia que a água viva ficasse obsoleta. O problema, disse Bergoglio a um grupo de agentes da Caritas durante um retiro, era que “temos Jesus amarrado na sacristia”.

Apenas três meses depois, ele diria aos cardeais que, às vezes, era como se Jesus estivesse não exatamente a bater na porta para entrar, mas sim no lado de dentro, pedindo para sair. Ele ofereceu-lhes a escolha entre uma Igreja voltada para a missão e a misericórdia, ou uma Igreja paralisada que crescera distante e obsoleta.

Dois anos atrás, na Capela Sistina, os cardeais escolheram não só um líder, mas também um programa. Cientes ou não, ao elegerem Francisco eles estavam permitindo que o fogo acendido no encontro de Aparecida fosse trazido para Roma, para agitar o Vaticano e acender a Igreja universal.

Os nossos olhos estão ainda se ajustando.

Nota da IHU On-Line:

Sobre o livro de Austen Ivereigh veja as resenhas publicadas no sítio do IHU:

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