A reforma urbana é uma via para combater as desigualdades sociais. Entrevista especial com Thiago Trindade

A luta pelo direito à cidade visa à construção de um ambiente em que os cidadãos e cidadãs possam usufruir de forma satisfatória dos serviços, vantagens e oportunidades que a cidade oferece, diz o pesquisador

Foto: Observatório das Metrópoles

Por: Patricia Fachin | 16 Setembro 2021

 

Um dos pontos fundamentais para enfrentar as diversas desigualdades sociais que marcam a sociedade brasileira é garantir o direito à cidade aos cidadãos e promover uma reforma urbana. Essa proposta tem sido defendida por pesquisadores que atuam em diferentes áreas do conhecimento e que veem na atual disposição espacial das cidades um elemento que intensifica as desigualdades sociais. Entre eles, Thiago Trindade, integrante do coletivo BrCidades e professor da Universidade de Brasília - UnB, argumenta que "não adianta apenas colocar dinheiro na mão das pessoas, distribuir renda via política pública, se a pessoa mora em um local em que não tem acesso a transporte coletivo, saneamento básico, e não tem acessibilidade a outras partes da cidade".

 

Segundo ele, "a dimensão espacial é crucial para pensar o combate às desigualdades porque ela tem uma capacidade assustadora de amplificar as desigualdades sociais: para uma família que tem uma renda mais baixa, dependendo de onde mora, as desvantagens do ponto de vista social e econômico se acumulam de tal forma que é quase impossível romper com aquele ciclo de pobreza".

 

Na entrevista a seguir, concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Trindade comenta o processo de "mercantilização das cidades" brasileiras, o aumento dos despejos e ocupações, as principais mudanças que ocorreram no espaço público em decorrência da pandemia e adverte para as consequências pós-crise sanitária. "O medo e o receio de conviver com o diferente no espaço público vai se intensificar. Esse processo de encastelamento das elites e classes média e média alta deve se intensificar nos próximos anos e isso terá consequências desastrosas do ponto de vista do que imaginamos como sociedades democráticas".


Sobre os desafios para assegurar a reforma urbana nos próximos anos, ele enfatiza: “Precisamos criar menos expectativa em relação às transformações que podem vir a partir do Estado e entender que, sem pressão social, os direitos sociais não avançam”.

 

Thiago Trindade (Foto: Arquivo pessoal)

Thiago Trindade é graduado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp, mestre em Ciência Política e doutor em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Atualmente, leciona no Instituto de Ciência Política - Ipol da Universidade de Brasília - UnB, e integra o coletivo BrCidades. É autor de Protesto e democracia: ocupações urbanas e luta pelo direito à cidade (2017, Paco Editorial).

 

Confira a entrevista.

 

IHU - O que significa falar em "direito à cidade" hoje no Brasil e por que isso é crucial para reconstruir o país pós-Bolsonaro?

Thiago Trindade – Essa ideia de direito à cidade é mais recente entre os brasileiros. Do ponto de vista histórico, o movimento que lutou pelas questões urbanas foi chamado de movimento pela reforma urbana. Então, essa pauta foi reconhecida como reforma urbana, da mesma forma que a luta pela reforma agrária. A ideia de direito à cidade ganhou uma difusão grande desde os anos 1990, mas no Brasil ela se popularizou a partir dos anos 2000.

 

 

Direito à cidade versus reforma urbana

Eu, particularmente, não entendo direito à cidade como um sinônimo de reforma urbana, porque a ideia de direito à cidade foi cunhada pelo filósofo francês Henri Lefebvre no final da década de 1960. O direito à cidade pressupõe um outro modelo de cidade que não está, de modo algum, relacionado ao que a cidade capitalista proporciona para as pessoas. Quando falamos de direito à cidade, estamos falando de um projeto de ruptura com o modelo de cidade capitalista e, portanto, com a própria lógica da sociedade capitalista.

Já a ideia de reforma urbana tem como finalidade a implementação de um conjunto de medidas, políticas e ações para reformar e aperfeiçoar determinados mecanismos dentro da ordem vigente.

A ideia de direito à cidade foi sendo incorporada pelo vocabulário da política pública, por movimentos sociais que não têm necessariamente uma pauta de ruptura, e por vários estudos acadêmicos que passaram a usar esse termo sem prestar atenção na origem dele, para basicamente se referir à seguinte ideia: quando falamos de direito à cidade, estamos falando de uma cidade mais justa, mais democrática e mais igualitária, portanto, uma cidade menos segregada, em que a segregação urbana não seja tão violenta quanto se apresenta na sociedade brasileira. Hoje, a ideia de direito à cidade se popularizou de tal forma que quando mobilizamos essa ideia, estamos falando de uma cidade onde os cidadãos e cidadãs possam usufruir de forma satisfatória dos serviços, vantagens e oportunidades que ela oferece. Portanto, falar em direito à cidade hoje no Brasil tem essa conotação.

 

 

Segregação

 

As cidades brasileiras, de modo geral, foram constituídas e planejadas para afastar as pessoas, as camadas populares, e para impedir o encontro das camadas trabalhadoras com as camadas mais ricas. Essa forma de organizar a cidade, de modo a afastar as classes sociais de um território, tem origem na França, no século XIX, e aquela realidade foi importante para a análise que Lefebvre fez em seu livro, publicado em 1967, chamado O direito à cidade.

 

 

O fato de as pessoas terem de morar em locais distantes – e isso faz com que as classes populares morem longe do seu local de trabalho, dos serviços públicos, dos hospitais, das escolas, creches ou serviços – não é um dado natural; a cidade é assim porque é pensada dessa forma. Hoje, quando mobilizamos a ideia de direito à cidade no Brasil, estamos, na maioria dos casos, defendendo uma cidade que seja um pouco menos desigual do ponto de vista do acesso aos serviços.

 

 

Combate às desigualdades

Por trás dessa discussão tem um ponto que é muito caro a todas as pessoas que estudam o espaço social: se queremos enfrentar as desigualdades sociais, a dimensão espacial da realidade é absolutamente essencial. Não adianta apenas colocar dinheiro na mão das pessoas, distribuir renda via política pública, se a pessoa mora em um local em que não tem acesso a transporte coletivo, saneamento básico e não tem acessibilidade a outras partes da cidade. A dimensão espacial é crucial para pensar o combate às desigualdades porque ela tem uma capacidade assustadora de amplificar as desigualdades sociais: para uma família que tem uma renda mais baixa, dependendo de onde mora, as desvantagens do ponto de vista social e econômico se acumulam de tal forma que é quase impossível romper com aquele ciclo de pobreza.

 

 



Governo Bolsonaro

 

Eu sempre deixo isto muito claro: não estou dizendo que antes do governo Bolsonaro as cidades eram boas. As cidades brasileiras sempre foram muito desiguais e a segregação social não tem apenas classe; ela tem cor. Dados acadêmicos e governamentais provam isto: a maioria da população que vive nas áreas mais segregadas e afastadas é a população preta e parda. No Brasil há uma questão diferente dos EUA e da África do Sul: aqui o apartheid não foi uma política oficial de Estado, então, nos EUA e na África esse debate aparece de forma mais tensionada. Aqui, como somos uma sociedade racista, se escamoteou tudo isso pelo mito da democracia racial, mas a nossa segregação tem raça e cor.

As nossas cidades sempre foram desiguais, mas, com a ascensão do projeto bolsonarista, ultraliberal-conservador – que já vem desde 2016, para quebrar o pacto da Constituição de 88, de um Estado que estava compromissado com o combate às desigualdades sociais –, esse quadro vem se agravando. Na pandemia, momento em que teoricamente o Estado brasileiro deveria ter criado políticas para garantir o direito à moradia das pessoas mais pobres, o que vimos foi justamente um processo de aceleração dos despejos e remoções, principalmente nos grandes centros urbanos, decorrente de uma crise social muito profunda. O desemprego aumentou e muitas pessoas saíram de suas casas porque não tinham mais condições de pagar aluguel e foram morar em ocupações. Muitas dessas pessoas também perderam suas casas porque o número de remoções forçadas aumentou. Vários governos municipais e estaduais aproveitaram a ocasião para “passar a boiada”.

De 2016 para cá, o processo de mercantilização das cidades se acelerou e isso implicou em fenômenos paralelos: o aumento do custo de vida urbano e a diminuição da renda da classe trabalhadora. O resultado disso é que as favelas e ocupações estão crescendo dia a dia e ainda assim as pessoas estão sofrendo ameaças de despejo e remoções.

 

 

IHU - Quando se trata de discutir as cidades, você defende duas questões essenciais: fazer cumprir a função social da propriedade e democratizar a gestão pública. Como essas diretrizes podem contribuir para as mudanças nas cidades, tendo em vista os despejos e aumento de ocupações? Pode nos dar alguns exemplos práticos de como isso poderia ser aplicado no Brasil?

Thiago Trindade – Esta é a questão central que temos de enfrentar: a função social da propriedade. Muitos dos despejos e remoções forçadas acontecem em áreas privadas que, em muitos casos, anteriormente, eram terras públicas, das quais as pessoas se apropriaram. Essas propriedades estão ociosas no meio das cidades e não estão cumprindo sua função social. Existe uma frase muito famosa dos movimentos sociais brasileiros: Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito. As pessoas ocupam porque têm o direito e, ainda assim, elas têm seu direito duplamente violado à medida que não conseguem ter acesso à moradia e quando são despejadas, porque o princípio social da propriedade não está sendo cumprido.

Na Constituição, o capítulo sobre política urbana é composto pelos artigos 182 e 183. Além disso, a lei 10.257/2001, aprovada e sancionada no governo Fernando Henrique Cardoso, criou o Estatuto da Cidade, que regulamenta os artigos 182 e 183. O ponto central do Estatuto é, numa leitura crítica, a função social da propriedade.

 

 

 

Democratização da gestão pública

Como fazer com que os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade viabilizem, aos governos municipais, a implementação de políticas para fazer valer a função social da propriedade? Possibilitando a democratização da gestão pública. Se essa discussão ficar restrita apenas aos representantes governamentais eleitos e aos segmentos do mercado imobiliário, que são os principais financiadores das eleições municipais, é claro que essa pauta não vai avançar. Para que ela avance, é preciso ter participação social na gestão pública de movimentos diretamente interessados no cumprimento dela. Quais são os segmentos mais interessados? São os setores populares. Isso permitiria que as pessoas saíssem de áreas periféricas, fossem morar em áreas próximas do centro das cidades ou no próprio centro, economizando tempo de deslocamento no cotidiano, para morar em áreas com uma infraestrutura melhor.

Quando concluí minha tese de doutorado em 2014, estudei o movimento de moradia do centro de São Paulo. Naquela época, segundo dados do censo de 2010, existiam 293 mil imóveis vazios na cidade de São Paulo e, no centro, algo em torno de 40 mil. Desses imóveis vazios, vários deles são públicos, mas muitos são privados e estão descumprindo um preceito constitucional.

 

Função social da propriedade

Hoje, um parlamentar que fosse à tribuna fazer um discurso a favor da função social da propriedade seria atacado nas redes sociais da direita como sendo comunista, porque a propriedade privada é um direito básico da democracia e, ao reivindicar a função social da propriedade e legitimar as ocupações de terras e imóveis, estaria falando contra a democracia. Posição antidemocrática é aquela que nega a função social da propriedade, que é um princípio jurídico implementado em todos os países que nós chamamos de democracia avançada, como França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Portugal, Inglaterra, Canadá. Os países nos quais nos espelhamos já implementaram esse princípio e, não por acaso, as cidades são menos desiguais. Esse princípio não será de fato implementado pelas políticas públicas se não houver uma participação efetiva das camadas diretamente interessadas.

O Estado criou muitos mecanismos de participação, nas diversas esferas, só que na grande maioria desses espaços, a sociedade civil não possui poder decisório efetivo; possui funções meramente consultivas. Nós, como sociedade civil, damos nossa opinião, somos consultados e a decisão é tomada pelo governo em conluio com os empresários e o setor privado.

Uma das razões principais de por que isso acontece é que as empresas de transporte coletivo e as empresas do mercado imobiliário são grandes financiadores de campanhas eleitorais. Em uma cidade como São Paulo, o setor imobiliário tem praticamente todos os vereadores na mão. Como eles vão propor uma lei que vai contra aqueles que os financiaram? O setor de transporte também não tem interesse na implementação dessa política porque a função social da propriedade permitiria a produção de uma cidade mais compacta, onde as pessoas morassem mais próximas umas das outras. Mas o setor de transporte quer uma cidade espraiada, com longas distâncias para percorrer porque isso justifica a concessão de mais linhas de transporte e o aumento do preço das passagens. Vivemos em um ciclo que nunca fecha. Então, o debate mais profundo no qual precisamos entrar é o da reforma política: pensar modelos que consigam escapar dessa lógica.

 

 

 

IHU - Quais são as principais transformações que as cidades brasileiras necessitam hoje, além de garantir o acesso de todos aos serviços e a implementação da função social da propriedade?

Thiago Trindade – Um ponto crucial é a questão da mobilidade urbana. Um dos problemas mais graves das cidades brasileiras – e esse problema não é exclusivo do Brasil – é o número de pessoas que morrem em acidentes de trânsito: ele é comparado ao número de mortos em contextos de guerras civis. Em um estudo de 2016, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea constatou que as políticas de mobilidade urbana no Brasil sempre priorizaram o veículo individual. Nem o transporte público, nem a bicicleta, nem a mobilidade a pé foram priorizados e isso gera efeitos perversos, desde a poluição do ar, aumento de mortes e feridos em acidentes, até o fato de que essa mobilidade caótica faz com que nós percamos muito tempo. O fator crucial para começar um processo radical, de ir à raiz dos problemas, para fazer uma revisão do nosso movimento de crescimento urbano, pressupõe inverter completamente as prioridades da nossa política de mobilidade.

O professor Flávio Villaça, falecido recentemente, que foi um dos mais influentes do urbanismo brasileiro, dizia que a cidade nos rouba tempo. Ela nos rouba tempo de vida: quantas horas passamos nos congestionamentos urbanos? Isso se deve, em grande parte, a esse modelo completamente absurdo, mas que não é caótico, porque é conscientemente produzido pelas forças de mercado em conivência com o Estado. Todas as pessoas ganhariam com a reversão desse modelo, menos as elites que obtêm lucros exorbitantes com ele. Isso explica por que é tão difícil revertê-lo.

 

IHU - Como você pensa a situação das favelas quando se trata de refletir sobre a reestruturação das cidades brasileiras, tendo em vista o que foi evidenciado na pandemia acerca das habitações e da infraestrutura de saneamento básico, por exemplo? Como pensar a reestruturação das favelas, valorizando, de um lado, as pessoas que moram lá, mas, de outro lado, levando em conta a situação das habitações?

Thiago Trindade – Sobretudo a partir da década de 1990 no Brasil houve uma tentativa louvável de intelectuais de tentar produzir um conhecimento que não estigmatizasse as favelas, valorizando a cultura produzida e as tecnologias sociais criadas naquele ambiente. Sabemos que a favela hoje, do ponto de vista do empreendedorismo – tenho muitas ressalvas a essa palavra – e de inserir as pessoas no mercado formal, tem um potencial muito grande. Mas, de outro lado, com a emergência da pandemia, foi dito que as pessoas tinham que fazer isolamento social e se higienizar o tempo inteiro. Nesse cenário, duas das características mais evidentes das favelas brasileiras se destacaram:

1. A coabitação: não é somente o núcleo familiar que habita um pequeno cômodo, mas o tio, a sogra, a sobrinha, o cachorro. Enfim, é uma situação em que muitas pessoas moram em um local muito pequeno. Como se faz distanciamento social nessas condições?

2. A higienização: o relato de moradores de muitas favelas brasileiras converge neste sentido. Eles dizem que depois das 8 horas da noite não tem mais água e não conseguem tomar banho. Como fica aquela pessoa que chega em casa do trabalho às 10 horas da noite?

Existe uma questão importante que é a de valorizar a cultura e o conhecimento das favelas – e muitas viraram objeto de estudo por se tornarem modelos de combate ao coronavírus a partir da construção de redes de assistência e solidariedade social –, mas, por outro lado, precisamos entender que aquelas condições de moradia não são dignas para nenhum ser humano.

Mudar e reverter esse modelo não é extinguir as favelas, mas garantir um processo de reurbanização e urbanização desses locais, criando condições de moradia e infraestrutura adequadas para todos que moram ali. É melhor manter as pessoas no território em que elas estão do que removê-las para um conjunto habitacional. Pode até ser que a condição de moradia melhore nesse caso, mas a pessoa também vai morar mais longe do centro, vai precisar gastar mais dinheiro com transporte coletivo. Então, é melhor fazer a regularização fundiária e urbanizar as favelas nos locais onde as pessoas já têm seus vínculos de vizinhança e o tecido associativo já está construído.

 

 

IHU – Como o mercado imobiliário e o capital especulativo agiram durante e por causa dos efeitos da pandemia nas cidades?

Thiago Trindade – Ressaltaria dois pontos. Primeiro, estamos vendo a verdadeira face do capital imobiliário e especulativo através das remoções forçadas no contexto da pandemia. Mas também não vamos esquecer que vários desses despejos foram levados a cabo pelo governo, em terras públicas, ou seja, isso diz muito sobre o que é o Estado brasileiro e sobre a relação entre Estado e capital, que é característico do capitalismo, mas que no Brasil se dá de forma muito mais violenta do que nos outros países que mencionei anteriormente. Não porque as elites desses países sejam mais benevolentes, mas porque a classe trabalhadora teve, historicamente, mais força para criar barreiras contra a hiperexploração do capital.

Outro ponto é avaliar qual é o comportamento do capital a partir da reconfiguração imposta pela pandemia. No Brasil, desde a década de 1980, temos um modelo de segregação que tem privilegiado a figura do condomínio fechado das elites. Elas não estão mais preocupadas em jogar os pobres para longe. A questão central hoje não é essa; é construir condomínios fechados, que são verdadeiras fortalezas do ponto de vista da segurança, os quais às vezes estão ao lado de favelas, que são anexos desses condomínios. Esse modelo de segregação foi acelerado ao longo dos anos 1990 por conta do medo do crime e da violência nas grandes cidades, e foi se espraiando e se tornando modelo de moradia para outras classes que não apenas as elites. Hoje existem condomínios para a elite, cujo grande modelo é o Alphaville, importado dos EUA, mas tem condomínios para a classe média e até para a classe média baixa. Quem pode pagar por um muro, faz isso. O capital percebeu essa dinâmica e hoje temos condomínios para os mais diversos tipos, verticais e horizontais, e para todas as classes que podem pagar por isso.

 

 

Intensificação da segregação e aversão ao espaço público pós-pandemia

 

Na minha interpretação, endosso a ideia de que a partir de agora esse modelo de segregação do condomínio fechado vai se intensificar no Brasil por duas razões. Primeiro, porque as pessoas, por conta da dinâmica do home office, preferiram, já agora, no contexto da pandemia, mudar para um lugar mais espaçoso. A classe média já fez isto: saiu de seus apartamentos e casas e foi morar em locais mais distantes do centro, mais espaçosos, mais perto do verde, onde tem espaço para as crianças brincarem, para o cachorro passear, porque as pessoas estão mais tempo em casa. Então, alguns setores do mercado imobiliário foram acelerados durante a pandemia por causa disso.

Mas há um segundo fator que é crucial e tenho visto com menos ênfase nas análises. A pandemia reforçou algo do qual as elites sempre tiveram medo: a aglomeração e a proximidade com os setores populares. Como estamos vivendo um processo de aumento da pauperização acelerada no Brasil e estamos vendo um aumento da população de rua e das ocupações urbanas, a minha tese é que a aversão das elites ao espaço público e às cidades vai se intensificar depois da pandemia. Tanto por causa da ideia de evitar a aglomeração e a necessidade de morar em um local mais amplo, arejado e afastado desse povo, quanto porque essa aversão ao espaço público é um sentimento que a elite sempre nutriu. Por que o shopping center se popularizou no Brasil? Uma das razões é a aversão da classe alta ao povo e o fato de não querer mais ir ao centro das cidades, perto daquele conjunto de gente pobre.

 

 

Mas há outra razão, de natureza mais simbólica, que é a aversão ao espaço púbico. O medo e o receio de conviver com o diferente no espaço público vai se intensificar. Esse processo de encastelamento das elites e classes média e média alta deve se intensificar nos próximos anos e isso terá consequências desastrosas do ponto de vista do que imaginamos como sociedades democráticas. Isso porque o condomínio fechado é um ataque à ideia do espaço público, à ideia da cidade, que deveria ser um espaço democrático por natureza, e é onde todos nós nos encontramos. Portanto, o ataque ao espaço público e à cidade configura um ataque à própria democracia.

Vários estudos mostram isso. Um deles é o da Teresa Caldeira e outro é o do Mike Davis. A intensificação desse modelo segregatório tende a aumentar os conflitos sociais, e não diminuí-los. A sociedade não vai ser mais segura com o encastelamento, porque cada vez mais os pobres vão se sentindo abandonados ao estado de natureza, que é o que as elites querem. Tenho dito que considerando o perfil da elite econômica e política, não é surpresa que tenhamos elegido Bolsonaro. Isso nos surpreende porque não estávamos acostumados a ver um discurso político tão violento e autoritário emergir tão rápido e ocupar o cargo da presidência da República. Mas se olharmos para o que é a história da sociedade brasileira, veremos que o comportamento da nossa elite, uma elite de mentalidade escravocrata, sempre foi de aversão e medo do povo. Não deveríamos nos surpreender.

 

 

Luta pelo espaço público

 

Uma coisa importante que o campo progressista precisa fazer daqui para frente é a luta pelo espaço público, que é comum a todos e a todas. É preciso lutar por um espaço não policiado, não vigiado, do qual as pessoas possam usufruir. Essa precisa ser uma luta absolutamente central porque tem tudo a ver com a democracia: a luta pela não privatização de praças e parques, para criar comércios populares em áreas abertas, para rompermos essa ideia de que a cidade é um lugar onde quem pode paga para viver num castelo, e quem não pode fica abandonado ao estado de natureza.

 

IHU - Quais grandes cidades brasileiras melhor expressam a segregação da sociedade?

Thiago Trindade – Temos dados que mostram como a segregação em Brasília é alta. Se você delimitar o território do centro de São Paulo a partir de duas variáveis, renda e cor, verá que a população é mais heterogênea, ou seja, existe uma mistura social maior. Quando você delimita o plano piloto de Brasília a partir dessas variáveis, vai ver rico e branco. Então, a segregação mais violenta que existe no Brasil é em Brasília e ela se deu por conta da forma como a cidade foi construída. Brasília, desde o princípio, foi planejada pelo Estado. O mercado imobiliário trava uma luta contra os pobres até hoje no centro de São Paulo para fazer isso, mas não conseguiu expulsar os pobres dali. Pelo contrário, os movimentos populares têm conquistado moradias. Em Brasília, ao contrário, o Estado se encarregou de expulsar os pobres do plano piloto.

 

 

Ceilândia, que é a maior cidade do Distrito Federal, tem esse nome porque foi um lugar criado para alocar os trabalhadores que vieram trabalhar na construção de Brasília. O nome da cidade tem origem na Campanha de Erradicação de Invasões - CEI, que se referia às “invasões dos trabalhadores que foram trabalhar no plano piloto e se estabeleceram na região porque queriam morar perto da cidade. Mas jogaram essas pessoas num lugar que fica a quase 30 quilômetros de distância.

A segregação, as desigualdades sociais e urbanas, com suas particularidades, estão sintetizadas em todas as grandes metrópoles brasileiras, mas Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro escancaram e evidenciam de formas dramáticas a desigualdade e a segregação urbana no país. A segregação no Rio de Janeiro não se dá no modelo centro-periferia, que se aplicaria a Brasília e, em alguma medida, a São Paulo, mas no modelo morro-asfalto. Então, a segregação lá é mais dramática, pois o que distingue simbolicamente os cidadãos é se moram no morro ou no asfalto.

 

 

IHU - Recentemente, você pontuou que é preciso repensar algumas posturas políticas adotadas nos últimos anos, sobretudo na forma como os movimentos se relacionaram com o Estado, em nível federal, estadual e municipal. Quais, por exemplo? A que se refere especificamente?

Thiago Trindade – Em 2010, participei do V Fórum Mundial realizado pela ONU, no Rio de Janeiro, cujo tema foi “O direito à cidade: unindo o urbano dividido”. Na ocasião, os movimentos sociais realizaram um fórum paralelo porque o da ONU era absolutamente dominado pelos empresários. Nesse evento paralelo estavam Erminia Maricato, a grande referência do urbanismo brasileiro e idealizadora do Coletivo BrCidades, Raquel Rolnik e David Harvey. Em sua palestra, Erminia destacou que em 1988 os movimentos haviam lutado pela democratização da gestão pública, demandando participação social, e lutaram para ganhar as eleições. Ela própria foi secretária de Habitação na gestão de Luiza Erundina, e disse que naquele momento os movimentos sociais deram as mãos para o Estado porque queriam e precisavam caminhar juntos. Hoje, ela diz estar convencida de que é preciso se separar novamente do Estado.

Muitos dos meus colegas da área de ciência política não concordariam com a minha análise, mas eu me considero mais próximo da análise de Erminia Maricato. Não é que nós [o campo democrático e progressista] erramos [ao dar a mão para o Estado], porque naquele momento era a escolha mais lógica e coerente com aquilo pelo qual o campo tinha lutado. Mas o que podemos perceber, olhando retrospectivamente, é que apostamos muitas fichas na luta por dentro do Estado, acreditando que ter prefeitos, governadores e presidentes – não vou nem falar dos vereadores e deputados, porque o que priorizamos sempre foi a eleição de chefes do Executivo – seria importante para a valorização da participação institucional dos movimentos. Hoje, temos elementos para analisar criticamente esse processo e entender que não adianta termos prefeitos, governadores e presidentes, se não tivermos forças sociais do lado de fora para pressionar o Estado a implementar as políticas públicas e direitos que já estão previstos na Constituição de 88.

 

Visão institucional de participação política

 

Ficamos muito focados numa visão institucional de participação política, ou seja, tentamos construir junto [com o Estado] – e era necessário fazer isso de fato, porque o Brasil era um país que precisava ter uma construção democrática do ponto de vista das políticas públicas e dos aparatos institucionais e o próprio Estado precisava se democratizar em vários aspectos. Nesse sentido, a participação da sociedade civil era muito importante, mas a questão é a seguinte: a nossa aposta em cima dessa via foi muito forte. Muitos colegas rebatem minha crítica dizendo que estou olhando retrospectivamente. Eles têm razão, mas é preciso aprender com a história; ela tem que servir para nos ensinar algumas coisas. Por isso, é importante olhar retrospectivamente para entendermos quais são as lições e aprendizados.

 

 

Próximo ciclo democrático: sem pressão social os direitos não avançam

 

No próximo ciclo democrático que vamos conseguir instaurar no Brasil, espero que tenhamos aprendido as lições e tenhamos menos expectativas nessa luta por dentro das instituições. É preciso investir mais na ocupação dos territórios, na formação de base, na formação de lideranças políticas pobres, negras e periféricas.

Uma das lições que está muito clara é a seguinte: precisamos entender que o Estado, por mais que tenhamos pessoas aliadas lá dentro, tem lado. Essa ideia de que as instituições do Estado estão em disputa é verdade até certo ponto, porque no limite, em todo momento de acirramento social, elas vão pender para o lado das elites. O ponto é: precisamos criar menos expectativa em relação às transformações que podem vir a partir do Estado e entender que, sem pressão social, os direitos sociais não avançam.

Nós já temos leis muito boas. O Estatuto da Cidade está lá, mas ainda não foi implementado como deveria. Ao invés de lutarmos por novas leis, que é algo desgastante e demanda muita energia dos envolvidos, deveríamos lutar para implementar as que já existem. Claro que agora estamos tendo de lutar para preservar o que já existe porque o projeto bolsonarista quer simplesmente rasgar alguns artigos da Constituição e não podemos permitir isso. Mas muitas das instâncias de participação que foram criadas ao longo desses anos – não estou dizendo que não deveriam ter sido criadas –, nas quais as lideranças populares se engajaram, não tinham espaço decisório formal sobre as políticas públicas e não tinham nem mesmo capacidade para pensar as políticas públicas; elas já chegavam prontas. Consigo falar com mais propriedade da área urbana, que é a área da qual faço parte, mas em vários conselhos municipais de meio ambiente isso também aconteceu.

 

 

Com exceção dos conselhos de áreas de setores mais consolidados, como saúde, assistência social e educação, os demais setores, em muitos casos, tinham um papel meramente formal. Meu ponto é: no próximo momento histórico, teremos de lutar para implementar o que já está definido na Constituição.

O aprendizado que fica é fortalecer a mobilização social nos territórios, nas periferias, porque as mulheres negras e periféricas e os representantes dos povos indígenas, que estão lutando contra o marco temporal, são os grandes protagonistas desse momento histórico. Temos que fortalecer essa base social porque não tenho a menor dúvida de que ela será a grande protagonista da reconstrução democrática. O diálogo com essa base social é o ponto crucial para derrotarmos o bolsonarismo. Sem avançar no diálogo, não vamos derrotar o bolsonarismo, porque Bolsonaro pode até perder as eleições de 22, mas o bolsonarismo veio para ficar. Se a esquerda não for capaz de entender que precisa se reconectar com as camadas populares, não conseguiremos vencer essa batalha.

 

 

IHU - Quais são os desafios para dar continuidade à luta pela reforma urbana?

Thiago Trindade – Está acontecendo nesta semana o III Fórum Nacional do BrCidades, que é um espaço em que estamos debatendo os temas cruciais para avançarmos nessas questões. Destacaria que o que deve dar o tom por cidades mais justas na próxima quadra histórica é a luta pelo antirracismo. Não tenho a menor dúvida de que não vamos chegar na classe trabalhadora com o discurso dos sindicatos de esquerda da velha guarda, da revolução socialista, da luta contra o capitalismo. Claro que ser antirracista significa também ser anticapitalista, mas precisamos entender os desafios de dialogar com o povo e as pessoas.

Seria impossível não mencionar também a questão das mudanças climáticas, porque o modelo de cidade em que vivemos é um modelo que, ao privilegiar o automóvel individual, asfalta ainda mais a cidade. Qual é a consequência? Temos uma cidade cada vez mais impermeável, que esquenta cada vez mais, que forma ilhas de calor mais densas. Isso está contribuindo para as mudanças climáticas, de forma que a vida humana no planeta vai se tornar insustentável em algum momento.

 

 

A questão do antirracismo, a pauta socioambiental, incluindo a luta dos povos originários pela retomada de seus territórios, e a questão de gênero são fundamentais para reverter esse modelo destruidor apregoado pelo agronegócio. Esse modelo no qual estamos apostando é insustentável. Esses são os temas prioritários pelos quais uma agenda pela reforma urbana deve lutar hoje. Nesse sentido, Marielle Franco representa o que deve ser o tom da nossa luta: uma mulher negra, periférica, LGBT. O legado da Marielle deve ser aquilo que deveria inspirar a esquerda e o campo democrático a dialogar com as camadas populares, coisa que ela sempre fez, e por isso era uma ameaça ao sistema.



IHU - Deseja acrescentar algo?

Thiago Trindade – Gostaria de convidar as pessoas a acompanharem as discussões que estão sendo feitas no III Fórum BrCidades, que está sendo transmitido no canal do YouTube do BrCidades, e que acontece até o dia 19. Nosso esforço está sendo o de traduzir as demandas populares para o debate político.

 

 

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