Na encruzilhada da desigualdade e da pandemia global, as periferias vivem a sobreposição das crises. Entrevista especial com Leonardo Fontes

Saúde, trabalho, educação e direitos humanos estão entre os principais desafios que vieram ainda mais à tona entre janeiro de 2020 e julho de 2021

Foto: Zé Carlos Carretta | Wikimedia Commons

Por: Ricardo Machado | 14 Setembro 2021

 

Como se não bastassem todos os problemas decorrentes da desigualdade brasileira, agravados pela Emenda Constitucional do Teto de Gastos, a pandemia da Covid-19 jogou luzes sobre quatro problemas estruturantes que se tornaram ainda mais visíveis:

1) saúde: a pandemia atingiu de forma mais intensa os moradores periféricos;

2) trabalho: a queda na atividade econômica cria mais impactos nas pessoas da periferia;

3) educação: o acesso às aulas a distância tornou-se um desafio para grande parte das crianças e jovens da periferia;

4) direitos humanos: a necessidade de distanciamento social e o recrudescimento da violência policial aumentaram na pandemia.

 

“O Brasil já tinha um déficit nessas áreas e ficou ainda mais defasado no momento em que a pandemia chegou. Para um país desigual e com tamanha dívida social como o Brasil, uma política como o teto de gastos não faz o menor sentido”, avalia o pesquisador Leonardo Fontes, autor do estudo recentemente publicado Pandemia, periferias e as formas elementares da vida social, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

“O que o Brasil precisa fazer neste momento, pensando nos próximos anos e nas próximas décadas, é uma escolha clara: se queremos ter saúde, educação e serviços públicos universais de qualidade, assegurando uma rede de serviços e proteção social para todos os cidadãos e cidadãs brasileiras, precisamos aumentar os investimentos nessas áreas e, portanto, uma revogação do teto de gastos é urgente e inescapável”, adverte o entrevistado.

 

O sentimento de beco sem saída é, antes, efeito de um projeto que visa desidratar qualquer pensamento ou utopia política, dentre eles o da renda básica universal. “É preciso que a sociedade brasileira aponte para os seus governantes que não aceitamos que nenhum brasileiro viva com menos de uma determinada quantia de dinheiro por mês. A pergunta que sempre surge é: isso é viável? Bem, o Sistema Único de Saúde - SUS é universal, o acesso à educação básica é universal, portanto, não são políticas voltadas para os mais pobres apenas, e sim direcionadas para toda a população. Então, por que não é possível pensarmos uma política de renda mínima que abranja toda a população brasileira? Complementarmente, seria preciso reconstruirmos nossa estrutura tributária para que ela se torne mais progressiva”, propõe.

 

Leonardo de Oliveira Fontes (Foto: Arquivo pessoal)

Leonardo de Oliveira Fontes é graduado em Relações Internacionais, mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP e doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos - Iesp/Uerj. É consultor nas áreas de políticas públicas e pesquisa. Atualmente realiza pós-doutorado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap, onde desenvolve a pesquisa A crise vista da perifeira: luta pela mobilidade social nas fronteiras da (i)legalidade, com financiamento da FAPESP. 

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Por que não podemos falar dos impactos da pandemia de Covid-19 como algo homogêneo, sobretudo no contexto brasileiro?

Leonardo Fontes – No início havia uma expectativa de que a pandemia fosse, em alguma medida, “democrática”, no sentido de que o vírus não escolhe raça, gênero ou condição social. No entanto, quando observamos a realidade, e isso foi muito rapidamente percebido, os mais pobres sofreram muito mais, por vários motivos. O primeiro deles, por toda dificuldade de se praticar o distanciamento social quando se mora em favelas ou periferias urbanas. As condições de moradia muitas vezes são precárias, as casas são mais aglomeradas, seja dentro de casa ou em relação aos vizinhos; há muitas pessoas compartilhando um mesmo cômodo e ficar dentro de casa nem sempre é uma opção quando muitas pessoas dividem poucos metros quadrados. Então, praticar o distanciamento social é muito mais complicado nessas condições.

A própria necessidade econômica dessas pessoas se sustentarem dificulta o distanciamento social. O governo demorou para conceder o Auxílio Emergencial. Depois, no fim de 2020, houve uma interrupção, logo quando a segunda onda estava começando a crescer, devido à variante que estava surgindo no Amazonas. Além disso, pela própria natureza dos trabalhos que são, em geral, exercidos por pessoas que vivem nas favelas e nas periferias, trabalhar de casa não é uma opção. São pedreiros, balconistas, caixas de supermercados, garçons, trabalhadores domésticos etc. Na maior parte dos casos há uma exigência ou uma necessidade de que esses trabalhos sejam realizados de forma presencial. Um dado do IBGE de novembro de 2020 mostrou que 27% das pessoas que tinham ensino superior completo ou pós-graduação estavam trabalhando de casa, naquele momento. Uma taxa que chegou a 38,3% no primeiro trimestre da pandemia. Entretanto, quando olhamos para as pessoas que não concluíram o ensino médio, menos de 1% estava trabalhando a partir das suas casas. Entre os que haviam concluído o ensino médio, a taxa era de 4,4%.

O terceiro ponto que dificulta os cuidados e torna as pessoas das periferias mais vulneráveis à pandemia é a assimetria de informações. Nós vivemos neste último ano um bombardeio de notícias falsas que afetou todo mundo, mas quando estamos falando de uma população que tem menos acesso à educação formal, menos acesso a diversas fontes de informação, ela acaba sendo vítima dessas desinformações e tendo alguma dificuldade de saber como proceder em uma situação tão excepcional como está sendo esta pandemia.

Em quarto lugar, há a questão da falta de acesso a serviços públicos, como saúde, educação e toda uma rede de proteção social, em especial para as pessoas que não contam com trabalhos formais e com carteira assinada.

Por fim, existe, especialmente entre as famílias mais pobres, uma dificuldade prática mesmo de seguir todos os hábitos de higiene básica recomendados pelas autoridades sanitárias por falta de infraestrutura, falta de água ou falta de recursos para comprar alguns itens básicos, como sabão, álcool em gel, máscaras adequadas etc.

 

 

IHU – De que forma poderíamos descrever a pandemia do ponto de vista dos moradores da periferia?

Leonardo Fontes – É possível dizer, tanto a partir dos dados objetivos de pesquisas amostrais, quanto dos dados mais subjetivos que coletei de depoimentos de lideranças comunitárias, que a pandemia afetou as periferias a partir de quatro grandes conjuntos de problemas:

1. O mais evidente está ligado à questão da saúde. Na pandemia mais gente ficou doente e se contaminou com o vírus da Covid-19, entre os moradores da periferia, segundo os inquéritos sorológicos que foram feitos na cidade de São Paulo. Os moradores periféricos se infectaram entre 1,6 e 1,7 vezes mais que os moradores das regiões centrais e mais ricas. Ainda tem o fato de que mais gente morreu em decorrência da Covid-19, não somente porque um número maior de pessoas foi infectado, mas também em função das condições de atendimento à saúde, que nos hospitais públicos é inferior, no geral, aos hospitais privados. Então, nós observamos uma taxa de mortalidade maior entre pessoas que foram internadas em hospitais públicos quando comparada com hospitais privados.

2. O segundo grupo de problemas que afetou as periferias de maneira mais intensa está na economia, o que envolve questões ligadas ao trabalho, à renda e à segurança alimentar. A queda da atividade econômica afetou muito mais intensamente os mais pobres. Uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas - FGV mostrou que, no ano passado, enquanto a renda dos 10% mais ricos caiu cerca de 17,5%, para a metade mais pobre da população essa queda foi de 27,9%. Também na questão da alimentação, um estudo da Rede de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional mostrou que 55,2% dos brasileiros se encontravam, no fim de 2020, em uma situação de insegurança alimentar e 9% estavam convivendo com a fome. Isso significa que 116,8 milhões de pessoas não tinham acesso pleno e permanente a alimentos e 19,1 milhões estavam convivendo com a fome no seu dia a dia.

3. O terceiro ponto, que é importante destacar em termos de problemas que afetaram as periferias urbanas, são os problemas em relação à dificuldade de acesso à educação. Uma estimativa da Rede de Pesquisa Solidária apontou que mais de 8 milhões de crianças, entre 6 e 14 anos, ficaram sem atividade escolar para fazer em casa. Isso de forma muito desigual, pois 30% dos estudantes mais pobres ficaram sem acesso à educação, contra 4% dos estudantes mais ricos.

4. Outro ponto muito importante diz respeito à violação dos direitos humanos, especialmente a violência contra a mulher, a violência policial e a dificuldade de acessar alguns serviços públicos básicos por parte dos moradores das periferias, seja por fechamento de postos de atendimento, seja por dificuldades de acesso à internet.

 

 

IHU – No que toca à vida nas periferias, quais foram os principais desafios enfrentados pelos moradores? Como a sobreposição de crises tornou a coisa toda ainda pior nas periferias?

Leonardo Fontes – Eu tenho mantido contatos virtuais com os meus interlocutores na periferia desde 2015, quando iniciei minha pesquisa de doutorado, e participo também da Rede de Pesquisa Solidária, e o que nós notamos é que, sim, os problemas vão se sobrepondo. Por meio da Rede de Pesquisa Solidária, nós fizemos cinco rodadas de pesquisa com lideranças das periferias de diversas regiões do Brasil. Num primeiro momento, o que apareceu com maior destaque foi a questão do desemprego e da falta de acesso à alimentação. Este é um problema que se mantém até hoje, mas que teve uma pequena queda no momento em que o Auxílio Emergencial esteve em vigor – de meados até o fim do ano passado – mas que voltou a subir de forma bastante intensa neste ano. Outra coisa que apareceu nos levantamentos de 2020 foram os problemas relacionados à saúde e a dificuldade de fazer o distanciamento social, algo que só foi diminuir agora, com o avanço da vacinação.

No auge do período de isolamento social, no ano passado, surgiu a preocupação com a saúde mental juntamente com queixas sobre outras políticas públicas, em especial a dificuldade de acesso à educação. Na última onda de pesquisa, que realizamos no mês de junho, apareceram preocupações relacionadas à infraestrutura, como dificuldades de pagar aluguel, luz, água, internet, provavelmente por conta da alta da inflação que estamos observando nos últimos meses.

Na economia, que é uma preocupação para mais de 60% das lideranças comunitárias que entrevistamos, é importante ressaltar que já vínhamos de um período de crise antes de a Covid-19 chegar no Brasil, quando já tínhamos uma taxa de desemprego de 12,5%, uma taxa de desalento – pessoas que desistiram de procurar trabalho, pois não têm esperança de encontrar – na casa dos 6% e uma taxa de informalidade muito alta, acima de 40%. Então, o emprego formal, que é mais seguro, estável, pois permite que o trabalhador acesse uma rede de proteção social, como o seguro-desemprego ou mesmo o Programa de Manutenção do Emprego, lançado pelo governo federal, não pode ser acessado pelas pessoas que estavam trabalhando com bicos ou em atividades sem carteira assinada.

Para estas pessoas sobrou somente o Auxílio Emergencial, que foi fundamental naquele momento, mas que não durou o tempo necessário, com uma interrupção no início deste ano, e que agora voltou para menos pessoas do que as atendidas no ano passado e com um valor bastante inferior.

 

 

IHU – Para além das dinâmicas socioeconômicas próprias da pandemia, que outros impactos sofridos pelos mais pobres têm origem no projeto de austeridade fiscal inaugurado com a emenda constitucional do chamado “teto de gastos”?

Leonardo Fontes – Simplificando um pouco, é possível dizer que existem três grandes possibilidades para o governo aplicar a parte do orçamento que não está comprometida com o custeio da máquina pública, ou seja, aquela parte que envolve salários, encargos e a manutenção dos prédios públicos. Essas três possibilidades são:

1. O investimento em políticas públicas de caráter distributivo e social: saúde, educação, moradia, transporte, assistência etc;

2. Políticas de estímulo ao desenvolvimento produtivo: políticas de apoio à indústria, ao comércio, agricultura e infraestrutura, com o caráter de estimular o desenvolvimento econômico do país e que têm um efeito multiplicador na atividade econômica;

3. O pagamento de juros e amortização da dívida pública.

O que o teto de gastos fez foi congelar as duas primeiras possibilidades, que seriam apenas corrigidas pela inflação, e destinar todo o excedente do governo federal para o pagamento de juros e amortização da dívida pública. Antes da pandemia, já vínhamos, portanto, em um processo de diminuição ou de congelamento desses gastos para áreas fundamentais, como saúde, educação, ciência e tecnologia, assistência social. O Brasil já tinha um déficit nessas áreas e ficou ainda mais defasado no momento em que a pandemia chegou. Para um país desigual e com tamanha dívida social como o Brasil, uma política como o teto de gastos não faz o menor sentido. A adoção da Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o teto de gastos, significou uma escolha deliberada por parte do Estado brasileiro de não cumprir os compromissos assumidos com a população na Constituição de 1988, para cumprir apenas os compromissos com os detentores de títulos da dívida pública.

 

 

Na situação que vivemos atualmente, para atender às necessidades da pandemia, o governo e o congresso federal criaram uma série de gambiarras, de estratégias jurídicas para poder ampliar os gastos em algumas áreas por meio do chamado “orçamento de guerra”. Isso resolveu apenas a questão emergencial, mas toda a defasagem histórica que tivemos no Brasil ao longo dos últimos anos não tem como ser recuperada em poucos meses.

Além disso, a pandemia mostrou que alguns mitos propagados por economistas liberais, sobre o nível máximo de endividamento público a que um país pode chegar, não fazem sentido e não têm nenhum lastro na realidade. Todos os países do mundo, inclusive o Brasil, aumentaram muito o seu endividamento nesse período da pandemia por conta da necessidade de atender os gastos emergenciais. Os efeitos econômicos supostamente catastróficos que poderiam ser imaginados de acordo com estas teorias econômicas não ocorreram de maneira generalizada, nem mesmo o aumento da desconfiança na capacidade dos governos de honrar os compromissos com suas dívidas.

O que o Brasil precisa fazer neste momento, pensando nos próximos anos e nas próximas décadas, é uma escolha clara: se queremos ter saúde, educação e serviços públicos universais de qualidade, assegurando uma rede de serviços e proteção social para todos os cidadãos e cidadãs brasileiras, precisamos aumentar os investimentos nessas áreas e, portanto, uma revogação do teto de gastos é urgente e inescapável.

 

 

IHU – Nesse sentido, como a ausência de políticas públicas voltadas às populações mais desfavorecidas obrigou essas comunidades a se auto-organizarem para manter a própria sobrevivência?

Leonardo Fontes – O aumento das iniciativas para pedir doações, recolher alimentos, fazer cestas básicas, distribuir kits de higiene para as pessoas que mais estavam precisando neste momento tem me chamado a atenção nas pesquisas mais recentes que tenho realizado. Essa rede de apoio sempre existiu entre moradores de favelas e periferias, mas é algo que parece ter aumentado consideravelmente durante a pandemia. Uma pesquisa do Data Favela mostrou que 90% dos moradores de favelas disseram ter recebido alguma doação ao longo da pandemia. Quando vamos ver a origem destas doações, percebemos que 69% vêm de ONGs e empresas e 52% dos próprios vizinhos ou parentes. Além disso, 49% dos brasileiros afirmaram, nesta pesquisa do Data Favela, que fizeram algum tipo de doação ao longo da pandemia. Entre os moradores da favela, no entanto, esse número sobe para 63%. Isso provavelmente se deve ao fato de que essas pessoas, ao verem o problema mais de perto, um parente, um vizinho ou amigo sofrendo com a escassez de recursos, se sentiram mais compelidas a fazer doações do que aquelas com mais condições econômicas e que observam essa realidade a distância, sem o mesmo laço afetivo e emocional.

 

 

IHU – Qual a importância de não romantizar essas estratégias e vê-las, na verdade, como um projeto ao mesmo tempo de sobrevivência por parte dos moradores e necropolítico por parte do Estado?

Leonardo Fontes – Essa auto-organização e a formação de redes de apoio e solidariedade é uma saída emergencial importantíssima, mas que obviamente não resolve o problema de forma permanente. É como colocar uma bandana para curar uma fratura exposta. É possível que se consiga estancar o sangramento, mas o osso não vai voltar para o lugar e a ferida não vai cicatrizar se não houver uma intervenção mais profunda no problema.

Ao mesmo que em agosto de 2020 quase 40% das lideranças que foram entrevistadas pele Rede de Pesquisa Solidária apontaram um aumento da solidariedade e desse senso comunitário como um aspecto positivo da pandemia, nós precisamos ter em mente que o problema da fome, do desemprego e da falta de acesso às políticas públicas não vai ser resolvido se não houver uma intervenção estatal forte nesse sentido. No Brasil, a vida dos que vivem em favelas e periferias, especialmente negros e mais pobres, sempre esteve colocada em risco pelas políticas de segurança pública e pela falta de qualidade em outros serviços públicos, como saúde e assistência social.

 

 

Para trazer um dado, entre janeiro e junho de 2020 foram mais de 3.180 pessoas mortas pela polícia, segundo um relatório da Anistia Internacional, das quais 79% eram negras. Isso representa uma média de 17 mortes por dia e um aumento de 7,1% em relação aos dados de 2019. Somente no Estado de São Paulo foram 514 civis mortos pela polícia no primeiro semestre de 2020, um aumento de 20% em comparação com o mesmo período de 2019 e o maior número registrado desde que os dados passaram a ser coletados, em 2001.

É importante entendermos que o Estado não está ausente nestas regiões como muitas vezes ouvimos falar. O Estado está lá, regulando a vida de diversas formas, atuando por meio de políticas públicas que muitas vezes não são suficientes para resolver os problemas, mas elas existem. Com isso, o Estado segue sendo um dos referenciais normativos para os moradores dessas regiões.

Respondendo mais diretamente à sua pergunta, eu gosto de pensar o conceito de necropolítica como o oposto complementar da ideia de biopolítica. Ou seja, enquanto a biopolítica está preocupada em regular a vida das pessoas, seus padrões de conduta e suas práticas cotidianas, a necropolítica regula a morte, estabelece quais são os corpos matáveis de forma impune. Em geral, são aqueles que não se enquadram nas normas estabelecidas pela biopolítica e, no Brasil, são corpos marcados pela raça, classe, gênero e território.

 

 

IHU - A propósito, como estas iniciativas de apoio mútuo entre moradores periféricos se contrapõem aos projetos de políticas públicas de viés mais utilitarista e individualista do atual governo?

Leonardo Fontes – Em que pesem todas as contradições internas deste governo, que por vezes parece não ter um projeto de país ou mesmo projetos para áreas fundamentais, como saúde e educação, esse aspecto difuso de um individualismo utilitarista parece caracterizar bem o pano de fundo que compõe as iniciativas do governo Bolsonaro, nas duas principais figuras do governo: o próprio presidente e o ministro da Economia, Paulo Guedes. É daí que vem a principal afinidade eletiva dessas duas figuras que, por vezes, foram colocadas como antagônicas.

Basicamente, esse individualismo utilitarista apregoa que a sociedade seria formada por indivíduos racionais que agem sempre de forma autointeressada, buscando maximizar a utilidade de suas ações. Isto é, poderíamos, em última instância, interpretar qualquer atitude de um ser humano a partir de uma escolha racional de vantagens e desvantagens para si próprio. Esta é a base do pensamento econômico neoliberal e de algumas correntes das ciências sociais. As políticas públicas que têm isso como pressuposto possuem como foco principal assegurar a autonomia dos indivíduos e, em alguns casos, estimular que eles funcionem como uma ilha autônoma dentro da sociedade.

Quando Bolsonaro estimula o armamento da população, dizendo que isso é uma forma de assegurar a liberdade individual e seu direito à propriedade contra a possibilidade de um golpe de Estado ou de um “bandido” que tente roubar seus bens, é nesta ideia de sujeito que ele está se baseando. O mesmo vale quando ele diz que cada um deve decidir se quer ou não se vacinar, se quer ou não usar máscara, se deve ou não fazer um tratamento para Covid-19 que a esta altura já é comprovadamente ineficaz. Na economia, esta visão vai dizer que o Estado não deve regular as relações de trabalho, por exemplo, porque cada patrão ou empregado deve ter autonomia para negociar seus contratos de forma bilateral. O problema dessa leitura é que ela é extremamente cruel com os mais pobres, porque tira deles a possibilidade da proteção do Estado, sobretudo em relações desiguais como é a relação entre patrões e trabalhadores. Ela também retira toda uma série de direitos e de possibilidade de uma rede de proteção para assegurar a sobrevivência e alguns direitos fundamentais às populações mais vulneráveis da sociedade.

Há ainda algo mais fundamental, que é o fato de essa visão de mundo não perceber que ninguém vive isolado como se fosse um náufrago em uma ilha deserta. Estamos rodeados de outras pessoas, e quando uma delas decide não usar máscara ou não tomar vacina ou não adotar as medidas de distanciamento social ou mesmo andar armado pelas ruas, ela não está apenas colocando em risco a própria vida, mas a de todas as pessoas que estão ao redor dela.

Na prática, o que esse crescimento das redes de apoio mútuo aponta é que a sociedade não é apenas um conjunto de indivíduos isolados que atuam de forma egoísta. A racionalidade é, sem dúvidas, um componente importante em nossas vidas e que está por trás de diversas de nossas práticas, mas existe também um conjunto de relações significativas, de valores e de afetos que nos movem, redes de reciprocidade que são construídas e que não estão sujeitas aos cálculos de custos e benefícios.

 

 

IHU – Segundo seu estudo, qual foi o impacto do Auxílio Emergencial nas periferias e o que mudou após o fim do programa?

Leonardo Fontes – É preciso reconhecer que o Auxílio Emergencial foi um dos maiores programas de transferência de renda do mundo que foi colocado em prática durante a pandemia. Em grande parte, isso aconteceu graças à pressão da sociedade civil e a negociações intensas no Congresso Nacional. O valor do auxílio proposto pelo governo federal era de R$ 200 e só chegou a R$ 600 depois que diversas entidades da sociedade civil e parlamentares de diversos partidos políticos demandaram um aumento desse valor e a ampliação do alcance do Auxílio Emergencial. Esse programa foi importantíssimo não somente para os mais pobres, mas para um grupo de trabalhadores informais e microempreendedores individuais que tinham um nível de renda intermediário, quando se observa a estrutura social brasileira, mas que perderam a principal fonte de renda nesse momento. O auxílio permitiu que as pessoas reorganizassem suas vidas e pudessem se adaptar à nova situação.

Em um primeiro momento, o que observamos em nossas pesquisas, é que houve uma dificuldade relatada por muitas lideranças comunitárias de acessar o auxílio, seja por conta da burocracia, das documentações exigidas, seja por não conseguir acessar o aplicativo em função da rede de dados disponível no celular, da falta de aparelhos compatíveis ou mesmo por desconhecimento do funcionamento da tecnologia. Depois que as pessoas conseguiram, de fato, acessar o auxílio, a preocupação das lideranças que foram entrevistadas pela Rede de Pesquisa Solidária caiu cerca de 12 pontos percentuais entre maio e agosto de 2020 e com relação a trabalho e renda caiu cerca de 7%. No entanto, quando retomamos a pesquisa em junho de 2021, a preocupação com a questão da segurança alimentar subiu 10% e, com relação ao tema do emprego, do trabalho e da renda, subiu 15%.

O que deveria acontecer neste momento é uma reformulação dos programas de transferência de renda. Não com esta maquiagem que o governo está promovendo, apenas mudando o nome do Bolsa Família para Auxílio Brasil e criando alguns adicionais que vão complicar ainda mais o acesso e entendimento por parte dos beneficiários, mas no sentido de criar uma política de renda mínima universal. É preciso que a sociedade brasileira aponte para os seus governantes que não aceitamos que nenhum brasileiro viva com menos de uma determinada quantia de dinheiro por mês. A pergunta que sempre surge é: isso é viável? Bem, o Sistema Único de Saúde - SUS é universal, o acesso à educação básica é universal, portanto, não são políticas voltadas para os mais pobres apenas, e sim direcionadas para toda a população. Então, por que não é possível pensarmos uma política de renda mínima que abranja toda a população brasileira? Complementarmente, seria preciso reconstruirmos nossa estrutura tributária para que ela se torne mais progressiva. Com isso, os mais ricos vão acabar compensando o que eles eventualmente possam receber dessas políticas de transferência de renda por meio do pagamento de seus impostos. A questão da justiça social e tributária acaba sendo realizada se conseguirmos garantir, de um lado, a renda mínima universal e, de outro, uma estrutura tributária progressiva.

 

 

IHU – Em termos mais amplos, como as políticas de libertarianismo econômico, inspiradas por Mises, Hayek, Spencer, entre outros, são não somente incompatíveis com um Estado democrático, mas também uma reação aos processos civilizatórios?

Leonardo Fontes – O libertarianismo econômico ou neoliberalismo é uma corrente de pensamento que surge por volta de 1880, com Herbert Spencer e é aprofundada no século 20 por meio de pensadores como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, justamente como uma reação à democratização política a partir da ampliação do direito ao voto e pelas pressões que movimentos de caráter socialista e ligados ao movimento sindical europeu e norte-americano vinham exercendo naquele período.

Essa ideia do libertarianismo consiste, justamente, em um híbrido entre liberalismo econômico e conservadorismo político. A partir dessa nova corrente, o liberalismo político se afasta, em alguma medida, do liberalismo econômico. O neoliberalismo busca preservar uma certa dimensão oligárquica dos regimes políticos que estavam em voga no final do século 19. Grande parte da elite brasileira nunca foi fã da democracia e nunca viu com bons olhos que o povo pudesse opinar de fato sobre os rumos da sociedade, por isso essa corrente de pensamento acaba tendo certa adesão por aqui.

É preciso lembrar que Paulo Guedes trabalhou junto com os chamados “chicago boys” no governo do general Augusto Pinochet, no Chile, em uma das ditaduras mais sanguinárias da América Latina. A questão é que, em 2021, pega muito mal falar que o povo não deve ser ouvido ou que a democracia não é boa. O que os neoliberais fizeram, mais recentemente, foi criar subterfúgios para falar isso com outras palavras. Um exemplo é a oposição entre “técnica” e “política”, como no caso das políticas econômicas, em que os neoliberais sustentam que a “técnica” deve prevalecer em relação às “paixões políticas”. Em outras palavras, o que se pretende dizer com essa retórica é que o povo não sabe o que é melhor para si e que os técnicos “iluminados” devem tomar as decisões difíceis para o país.

O projeto recém-aprovado de independência do Banco Central parte desta premissa. Ou seja, o presidente da República, eleito pelo voto popular, deixa de ter poder para definir qual será a política monetária do seu governo, uma vez que, de acordo com essa visão, existiria uma grande tendência para que o chefe do Executivo queira agradar o povo e não fazer o que os “técnicos” entendem como necessário. O problema é que aquilo que é visto como “certo” para estes técnicos é quase sempre garantir mais rentabilidade para seus investimentos, e não assegurar a universalização dos direitos sociais.

 

 

Nesta mesma linha veio a política do teto de gastos, sobre a qual falamos anteriormente, e os ataques que são feitos à Constituição de 1988. Nenhum candidato a qualquer cargo político tem coragem de chegar e dizer que não devemos ter saúde e educação universal. Mas eles dizem, por exemplo, que a Constituição “não cabe no orçamento” e que, “tecnicamente”, seria necessário garantir mais recursos para o pagamento de juros e amortização da dívida pública em detrimento das políticas sociais.

O que está por trás dessa face mais evidente do neoliberalismo – da austeridade como sua ideia fundamental e das decisões supostamente técnicas e desse processo de retirada ou não efetivação de direitos sociais – é o estímulo ao individualismo utilitarista sobre o qual também falamos anteriormente. Esses teóricos do neoliberalismo foram muito sagazes em perceber que ao criar um mundo de escassez de recursos, sem muito espaço para a solidariedade entre classes e grupos sociais, as pessoas tenderiam a se comportar cada vez mais como indivíduos maximizadores da utilidade individual. Com isso, passaríamos todos a operar como o que eles mesmos denominam de homo economicus, ou seja, todos nós tenderíamos a nos tornar uma espécie de empresários de nós mesmos em busca da otimização dos retornos de nossos “investimentos”.

 

IHU – Qual a contribuição dessas iniciativas dos moradores periféricos para construirmos políticas públicas que sejam capazes, minimamente, de enfrentar a profunda desigualdade brasileira?

Leonardo Fontes – Em primeiro lugar, a contribuição mais evidente está no fato de chamarem atenção para alguns problemas e com isso torná-los públicos. Mostrar que são problemas que afetam coletivamente a sociedade e, portanto, devem ser alvos de intervenção do Estado no sentido de construir políticas públicas para resolver esses problemas. Há, portanto, uma influência direta na agenda pública e naquilo que vai ser alvo da formulação de políticas públicas por parte de agentes estatais.

Em segundo lugar, e a experiência histórica mostra isso muito bem, existe a possibilidade de o Estado atuar em parceria com essas organizações na promoção de políticas públicas. Grande parte da política de assistência social que temos hoje no Brasil é fruto da pressão da sociedade e desse tipo de parceria entre organizações da sociedade civil e o poder público, geralmente no nível municipal. Hoje em dia quem administra centros de criança e adolescente, centros de juventude, núcleos de convivência de idosos, creches conveniadas são justamente essas organizações da sociedade civil, a partir de convênios com prefeituras. O que é mais importante é que o Estado não se exima de suas responsabilidades apenas porque a sociedade civil já está, de alguma forma, atuando, mas, sim, que ele aproveite a proximidade que essas organizações têm com a sociedade e com a população vulnerável e o conhecimento adquirido por essas instituições para, justamente, atuar em parceria com elas.

Por fim, existe uma contribuição indireta e que tem a ver com a produção de um contraponto a essa lógica utilitarista que o projeto do atual governo federal tenta nos impor. Elas demonstram, na prática, que há, sim, espaço para pensar não somente em si, mas também nas pessoas que nos rodeiam e na sociedade como um todo. Essa dinâmica tem de ser a base do conjunto de políticas públicas que vão atacar os principais problemas brasileiros. Se a escassez promovida pelo neoliberalismo e pela crise que vivemos pode gerar egoísmo, o que essas organizações e as formas de atuação por meio de ajuda mútua entre moradores de favelas e periferias têm nos mostrado é que, também, existe muita solidariedade e um importante reforço de laços sociais por meio dessas ações.

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

Leonardo Fontes – É importante frisarmos que os problemas que estamos enfrentando hoje, agravados pela pandemia, não vão, simplesmente, desaparecer quando a pandemia chegar ao fim ou quando a vacinação for concluída no Brasil. Na economia o desemprego deve permanecer em níveis altos por muitos meses e talvez até por anos, assim como a fome e a miséria.

Na educação temos uma defasagem enorme de alunos, especialmente os da rede pública que ficaram sem aulas ou com aulas bastante precárias, com um risco muito grande de abandono e aumento da evasão escolar por parte de alunos que estão desestimulados ou estão tendo que trabalhar para ajudar os pais a pagar as contas da casa.

Na saúde, além das pessoas que seguem morrendo por conta da Covid-19, há toda uma preocupação com as possíveis sequelas físicas e psicológicas das pessoas que ficaram doentes nesse período ou que perderam pessoas próximas ou estão em uma situação de depressão provocada pelo isolamento social, pelo medo ou pela falta de perspectivas econômicas.

Fora isso, há ainda todos os problemas que já afetavam antes favelas e periferias que vão seguir presentes. É importante, então, acompanhar essas questões, cobrar políticas públicas e ações governamentais e, além disso, apoiar as iniciativas sociais da sociedade civil que possam, eventualmente, mitigar esses problemas e no futuro encontrar soluções mais permanentes que possam melhorar a situação dessas pessoas e das regiões periféricas das cidades brasileiras.

 

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