05 Setembro 2023
Franco “Bifo” Berardi (1949) pode muito bem ser caracterizado, ainda que até certo ponto, como filósofo, escritor e crítico cultural de esquerda. Durante os anos 1970, mais precisamente até 1977, foi membro ativo da autonomia operária italiana, movimento marxista libertário do qual também participou Antonio Negri, entre outros. Nesses anos de militância, Berardi fundou revistas, criou rádios alternativas e canais de TV comunitários, até ser preso.
Após a repressão ao movimento autonomista, que levou vários militantes à prisão (entre eles Negri, acusado de participar do assassinato do deputado democrata-cristão Aldo Moro), radicou-se em Paris, onde teve contato com Félix Guattari e Michel Foucault. Durante os anos 1980, morou em Nova York e San Francisco. Nos anos 1990 retornou à Itália e, em 2002, criou a TV Orfeo, a primeira televisão comunitária italiana.
Formado em estética, atualmente professor de História Social dos Meios de Comunicação na Academia de Belas Artes de Brera (Milão), Berardi tem unido à sua extensa produção teórica uma colaboração permanente a meios de comunicação alternativos, pelo menos desde que fundou a revista do autonomismo A/Traverso.
Desde então, desenvolve um intenso pensamento crítico e estuda as transformações sociais e subjetivas causadas pelo capitalismo, particularmente sobre os efeitos dos meios de comunicação em massa no imaginário social. À sua maneira, na verdade, Berardi não deixou de ser um militante-filósofo (ou um filósofo-militante) desde a revolta dos anos 1970.
A entrevista é de Ruben H. Ríos, publicada por Perfil, 03-09-2023. A tradução é do Cepat.
"Medio siglo contra el trabajo", seu último livro publicado por Tinta Limón, é uma coletânea de textos que abrangem de 1970 a 2022. O mínimo que se pode dizer é que refletem, de certo modo, nesse pouco mais de meio século transcorrido, as mutações e reviravoltas da modernidade tardia e de seu próprio pensamento. Como você definiria, em perspectiva, esse “certo modo” em termos filosófico-políticos?
Não é uma pergunta fácil de responder, porque me coloca na condição de procurar uma fórmula, uma palavra, uma locução qualquer, que possa definir uma constante (ou algumas constantes) no meu próprio percurso. Posso tentar buscar algumas chaves conceituais que serviram como guia, por exemplo, a palavra “transversalidade”, ou seja, um método para a criação de mapas da subjetividade, que desliza continuamente da política para o inconsciente, para a estética.
Em segundo lugar, a palavra “ironia”, que sempre me pareceu um antídoto contra o dogmatismo e também uma linha de fuga existencial e política. Ao contrário do que afirma Shakespeare, a certa altura de minha vida, ocorreu-me pensar que a maturidade é uma manifestação de infantilismo conformista. Passar da adolescência à velhice extrema me pareceu, até certo ponto, um método mais interessante do que o amadurecimento, ou seja, conformar-se à regra dominante, ao realismo que nos impede de imaginar.
As ideias de Félix Guattari influenciaram sua concepção de sujeito, melhor dito, no que diz respeito à produção de subjetividade, o que não é a mesma coisa. No entanto, Guattari não conheceu o formidável desenvolvimento atual das tecnologias digitais.
Não conheceu, mas o imaginou, segundo o método: “cartographier des contrades à venir” [mapeando os contrastes por vir]. O conceito de rizoma, que é central no pensamento de Guattari, não menos que em Deleuze, é uma descrição antecipada da rede telemática. Acredito que deveríamos ler Guattari como um criador de conceitos que servem para antecipar o mundo futuro. Os conceitos que elaborou eram mais cartografias do processo do que projetos de libertação.
Byung-Chul Han se refere ao neoliberalismo como uma psicopolítica. Só o neoliberalismo é uma psicopolítica?
Tenho muito respeito pelo trabalho de Byung-Chul Han, embora eu considere que a tese de seu livro sobre psicopolítica é discutível. É claro que o neoliberalismo implica uma psicopolítica, mas todo sistema socioeconômico, toda organização política, implica uma dimensão psicopolítica. A novidade da atuação psicopolítica do neoliberalismo é importante, e Han a analisa muito bem em seu livro sobre psicopolítica: efeitos de aceleração, de sobrecarga, de ansiedade, de competição agressiva.
Recentemente, Élisabeth Roudinesco publicou um artigo sobre a crise da psicanálise na França. Chegou o momento da esquizoanálise?
Sándor Ferenczi disse, em 1919, que a psicanálise possui as ferramentas conceituais e terapêuticas para atuar em condições de neurose individual, e que não possui as ferramentas conceituais e terapêuticas para atuar em condições de psicose de massa. Aqui está o limite fundamental do pensamento freudiano.
A esquizoanálise tem sido uma tentativa de avançar na direção da compreensão da psicose contemporânea e tem tentado abrir as portas para uma terapia que não seja apenas a restituição do indivíduo à norma social, à racionalidade. Hoje, muitos percebem esse limite.
Isso não significa que devemos esquecer a psicanálise. Significa que temos que criar formas de elaboração conceptual e terapêutica da psicose coletiva que se manifesta na guerra, no racismo, na violência identitária.
E o que dizer do marxismo, sobretudo do economicismo marxista?
O que posso dizer é simples: sem Marx não consigo entender quase nada sobre o capitalismo contemporâneo. É claro que o capitalismo sofreu enormes mutações. De qualquer modo, Marx não se ocupa do capitalismo de seu tempo, ocupa-se do capitalismo como processo de abstração sem limites. O processo de abstração, a transformação do útil em valor, a submissão da atividade útil à acumulação do abstrato, tudo isto continua sendo o núcleo da história que estamos vivendo.
Marx não se ocupou de estratégias políticas, nem escreveu receitas para os restaurantes do futuro. Marx descreveu o processo que continua se desenvolvendo, mas não saiu do paradigma do crescimento. Esse foi o seu limite. Podemos repetir Marx na época da possibilidade de extinção da civilização humana? Na época da mudança climática, da catástrofe psíquica que ocorre no horizonte da extinção? Claro que não.
Marx é indispensável para entender como e por que chegamos a este ponto. O marxismo não serve para escapar das consequências do colapso psíquico e ambiental produzido pelo crescimento ilimitado. Cuidado: sem Marx todo o discurso se transforma em uma lamentação moralista. Marx não pode ser esquecido.
Em um dos artigos de “Medio siglo contra el trabajo”, na realidade, em vários, aparece a ideia de um colapso psíquico da economia. Isto significa, entre outras coisas, que o “homo economicus” desfalece sob as determinações liberais, neoliberais ou ordoliberais?
O homo economicus é uma invenção infeliz do pensamento burguês. Claro que os homens calculam, claro que existe um instinto de propriedade, claro que o mercado é um lugar onde circulam coisas úteis, claro que existe uma economia. Só que não existe apenas a economia, existe também o desejo, o corpo desejante.
A economia pensou que o tempo pode ser calculado, identificado matematicamente, acumulado, intercambiado. Concordo. Isso pode acontecer, há uma dimensão econômica do tempo, mas o tempo não é apenas matemática, é também vida. O tempo vivido de que fala Eugène Minkowski não pode ser reduzido ao cálculo. A economia é uma dimensão importante da cultura humana e da ação civilizatória. Muito bem. No entanto, não pode se tornar a esfera dominante, não pode reduzir o mundo da vida ao seu paradigma. Não deveria, mas infelizmente fez isto.
Os economistas, esses técnicos da redução matemática do tempo, pretenderam reduzir todo o tempo humano à matemática. Assim começou a ditadura epistêmica que o neoliberalismo impôs através da força do Estado, da violência militar. O economicismo neoliberal é uma doença mental que impede ver como o planeta está reduzido aos interesses do crescimento ilimitado, aos interesses de uma classe social obcecada pelo dinheiro.
Agora, em relação ao que você chama de “infosfera”, qual é a diferença com o ciberespaço? A primeira contém o segundo ou ao contrário?
Trata-se de uma distinção bastante sutil, se preferir. A infosfera é a esfera por onde circulam os signos que estimulam o cérebro, o ciberespaço é a forma pela qual o cérebro coletivo recebe e elabora os signos-estímulos.
O conceito de ciberespaço, que foi proposto pela primeira vez por William Gibson, em seu romance Neuromancer, refere-se a uma dinâmica de interação contínua entre o ambiente e a mente coletiva, uma dinâmica de mutação da subjetividade, ao passo que a infosfera se refere apenas à dimensão “exterior”, ao ambiente circundante.
Posso também usar uma terceira palavra, “psicosfera”, para dizer como o devir da infosfera pode produzir efeitos de mutação psíquica, de esgotamento, de sofrimento e também de cura.
McLuhan dizia, há muito tempo, que com as tecnologias da eletricidade o cérebro se estendia. Em sua análise das patologias psíquicas do “ser digital”, por assim dizer, parece que você adere a esta teoria, mas de forma negativa.
O pensamento de McLuhan constitui o pano de fundo imprescindível de todas as reflexões contemporâneas sobre o devir dos meios de comunicação e também, em certa medida, sobre o devir da psicosfera. Em sua obra mais importante, Understanding Media, de 1964, McLuhan reconhece que a mudança da técnica de comunicação produz um efeito de mutação nas formas de elaboração mental. A eletricidade e também a eletrônica produziram uma extensão da operacionalidade do cérebro, não apenas uma extensão. Também uma mutação.
McLuhan escreve que quando a comunicação passa do formato alfabético (sequencial) para o formato eletrônico (instantâneo), a modalidade de pensamento muda da forma crítica (própria da modernidade) para uma forma neomítica (própria da pós-modernidade). Isso significa que não se trata apenas de uma extensão, mas de uma mutação. Se é boa ou ruim é outra questão. Não acredito que a mutação contemporânea seja univocamente definível como má. Trata-se de uma mutação ambivalente que pode evoluir de uma forma e também de outra.
Em sua avaliação, e desculpe a sinceridade, a mente social ou coletiva da “aldeia global”, voltando à utopia de McLuhan, é bastante louca?
Antes de tudo, se me permite, o que é, hoje, a aldeia global? Depois, o que significa “louca”? A definição de McLuhan, nos anos 1960, foi uma intuição muito sagaz que se referia essencialmente à dimensão infosférica. A aldeia global era, para McLuhan, o efeito de compartilhar informações, imagens, de participar em um continuum semiótico. Esta intuição se realiza, hoje, através da rede global.
Contudo, quando falamos de mente coletiva estamos falando dos efeitos que a comunicação global instantânea pode produzir (e produz) na atividade cognitiva, no pensamento, na emocionalidade de milhares de milhões de seres humanos. Deste ponto de vista, os efeitos não são lineares. Pelo contrário, a unificação produzida pela desterritorialização da infosfera produziu efeitos de pânico, de desorientação, que ao mesmo tempo desencadearam movimentos de reterritorialização reacionária.
Aqui, o problema da identidade (a obsessão identitária, o desejo de comunidade em toda a sua ambiguidade) se apresenta como um dos fatores da onda regressiva e reacionária que estamos enfrentando em todas as partes do mundo.
Em um texto de 2004, você diz que a história do século XX é a história do conflito e da aliança de três figuras: o sábio, o guerreiro e o mercador. Você não se esqueceu do artista? Ou a arte morreu?
Neste texto, trato metaforicamente das diferentes figuras do capitalismo moderno, entendido do ponto de vista da captura do conhecimento. O produtor de conhecimento (o sábio) se encontra em uma pinça entre a exploração econômica (o mercador) e a submissão militar (o guerreiro). O artista (prefiro dizer o poeta, esclareço) está situado em outra dimensão, não pertence ao ciclo de produção-exploração-submissão. Pertence a outro campo, o campo da cura, da terapia.
Quando a subsunção capitalista da linguagem e do conhecimento sufoca a vida mental, o poeta (o artista, se assim preferir) é a figura que permite uma reativação da respiração. A distinção entre “artista” e “poeta” pode parecer rebuscada, mas posso me explicar. A palavra “arte”, em sua história moderna, muitas vezes, foi identificada com o mercado. A poesia não.
Há quem acredite que você é um pensador pessimista, não sei bem o motivo. Você tem alguma ideia do que pode explicar essa avaliação?
No meu caso, nunca entendi muito bem o que significam as palavras “pessimista” e “otimista”. Posso entender a distinção entre feliz e infeliz, entre alegre e deprimido. Agora, o que significa a palavra “pessimista”? Alguém que profetiza desgraças?
Cassandra profetizava desgraças e tinha razão em profetizá-las, pois suas profecias sempre se cumpriam. Os troianos não a escutavam e diziam: essa senhora é muito pessimista, nós não a escutamos. Como sabemos, o cavalo entrou na cidade de Troia e a profecia tão má se cumpriu. E por que ninguém escutava as profecias de Cassandra? Por que Cassandra era triste, chorava e gritava, e todos pensavam que era deprimida.
Ninguém escuta o deprimido, é considerado um tipo um pouco louco, alguém que tem que ir ao psiquiatra. Interessa-me muito a figura do profeta, alguém que diz o que está inscrito no presente como tendência. No entanto, não gosto da figura do profeta triste. O profeta tem que ser irônico e, possivelmente, tem que ser um tipo alegre.
Pessimista, otimista, não importa. O que importa é que não devemos deprimir os leitores, temos que dizer aos leitores: pode ser que o mundo esteja ruindo, mas eu quero viver feliz, quero que meus amigos vivam felizes, quero que todos vivam felizes, apesar da derrocada.
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“O economicismo neoliberal é uma doença mental”. Entrevista com Franco ‘Bifo’ Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU