05 Abril 2022
Em vez de desaparecer na história como muitos de seus contemporâneos provocadores, Marshall McLuhan ganhou força e credibilidade com o passar dos anos. É fascinante perceber que McLuhan se torna mais profeta ainda à medida que o nosso mundo se volta para o digital.
O comentário é de Nick Ripatrazone, autor de artigos para as revistas Rolling Stone, The Atlantic, The Paris Review e Esquire.
O texto abaixo é um trecho do seu novo livro, intitulado “Digital Communion: Marshall McLuhan’s Spiritual Vision for a Virtual Age” [Comunhão digital: a visão espiritual de Marshall McLuhan para uma era virtual] (Fortress Press, 2022).
O artigo foi publicado em Literary Hub, 30-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Muitas das pessoas influenciadas por Marshall McLuhan – incluindo o também canadense David Cronenberg – não compartilhavam as visões religiosas do teórico da mídia. A maioria delas nem sabia que o vidente da mídia tinha uma fé profunda.
No entanto, o senso religioso de McLuhan oferecia estrutura, simbolismo e talvez até música para suas explorações da mídia. As pessoas persuadidas pelas suas teorias da mídia não são automaticamente persuadidas pela visão religiosa que as sustenta – mas podemos considerar que a atração delas por um pensador tão mergulhado em Deus sugere uma espécie de osmose teológica. Deus abriu caminho na teoria da mídia por meio de McLuhan, fosse ela reconhecida ou não.
Em vez de desaparecer na história como muitos de seus contemporâneos provocadores, McLuhan ganhou força e credibilidade com o passar dos anos. É fascinante perceber que McLuhan se torna mais profeta ainda à medida que o nosso mundo se volta para o digital.
Como observa Paul Levinson, as metáforas de McLuhan eram extravagantes e maleáveis porque tinham que ser: “Ao ultrapassar a marca, a metáfora dá à marca – e à nossa compreensão dela – espaço para se mover e crescer. Em contraste, descrições definitivas e totalmente documentadas de uma tecnologia, mesmo que sejam corretas e, portanto, úteis no presente, podem nos dizer pouco sobre o futuro”.
Será que a visão religiosa de McLuhan pode ter capturado algumas verdades inefáveis que transcendem o mundo digital e também nos ajudam a compreendê-lo?
Enquanto McLuhan estava no fim de sua vida, Kevin Kelly era um jovem fotógrafo em missão freelance em Jerusalém. Ele vagava pelas ruas à noite e se encontrou na Igreja do Santo Sepulcro, construída no local onde Jesus foi crucificado. Exausto e sem lugar para ficar, Kelly deitou-se no local da crucificação e adormeceu. Ele acordou quando a multidão de visitantes começou a se reunir “enquanto o sol estava nascendo naquela manhã de Páscoa, e eu estava olhando para os túmulos vazios”.
Criado como católico, Kelly havia se afastado da fé religiosa – até aquela manhã. Quatorze anos depois, Kelly era o editor executivo fundador da revista Wired – e Marshall McLuhan estava no cabeçalho como o santo padroeiro da revista. Kelly disse que a sua conversão na Páscoa resultou, como ele diz, “em uma lógica, um conforto, um fermento que eu tenho por causa daquela visão”. É uma formulação que parece muito com o elemento estruturante da fé para McLuhan.
A aparição de McLuhan no cabeçalho poderia ser um capricho ou uma piscadela da equipe da revista de tecnologia, não fosse pela fé de Kelly – e pelo modo como essa fé influenciou a sua visão da tecnologia. Kelly argumentou que “a tecnologia, na verdade, é um fenômeno divino, que é um reflexo de Deus”. A tecnologia, para Kelly, nos oferece outra forma para tentar entender o impossível: na melhor das hipóteses, podemos apenas apreender Deus como metáfora; mesmo com todos os “intelectos artificiais que construímos”, podemos ter apenas “o mais ínfimo vislumbre de quem Deus é”.
Kelly tinha um claro apoio em Louis Rossetto, criado como católico, cofundador da revista e quem recrutou Kelly para o cargo de editor. Rossetto rejeitava a ideia de que a Wired fosse uma revista sobre tecnologia. Como ele escreveu em um pequeno manifesto na primeira edição, a revista “é sobre as pessoas mais poderosas do planeta hoje – a Geração Digital. Essas são as pessoas que não apenas previram como a fusão de computadores, telecomunicações e mídia está transformando a vida no limiar do novo milênio, mas também estão fazendo isso acontecer”.
Capa da edição número 1 da revista Wired, de março/abril de 1993 (Foto: Divulgação)
A Wired estreou com o volume 1, número 1 em março/abril de 1993. Na capa, um close desfocado de Bruce Sterling está contra um fundo azul-petróleo. O nome de McLuhan aparece na capa, anunciando uma conversa entre Camille Paglia e Stewart Brand. No lado direito da capa, a frase “The Medium...” segue até a borda, paralela a uma aba rosa neon que, se você seguir a página, leva a uma extensão que cita McLuhan no livro “The Medium Is the Message”: “O meio, ou processo, do nosso tempo – a tecnologia elétrica – está remodelando e reestruturando os padrões de interdependência social e todos os aspectos da nossa vida pessoal. Está nos forçando a reconsiderar e a reavaliar praticamente todos os pensamentos, todas as ações e todas as instituições anteriormente tidas como certas. Tudo está mudando você”. As frases se estendem languidamente pelas páginas, como se McLuhan estivesse descansando no sofá do seu escritório no Centro de Cultura e Tecnologia.
A conversa entre Brand e Paglia está ancorada na identidade de McLuhan como um profeta perdido. Paglia fala sobre como foi influenciada por McLuhan. Os livros dele foram entregues a ela na Universidade de Binghamton em meados dos anos 1960. “O que aconteceu com ele?”, pergunta Paglia. “Por que essas pessoas estão lendo Lacan ou Foucault que não têm absolutamente nenhuma consciência dos meios de comunicação de massa? Por que alguém iria falar sobre a escola de Saussure? Em nenhuma dessas porcarias francesas há qualquer referência aos meios. A nossa cultura é uma cultura pop”.
A Wired fez sua parte para manter McLuhan relevante. Ao longo dos anos, artigos como “Honrando o santo padroeiro da Wired”, “McLuhan vive”, “Cinco visões de São Marshall” e “A sabedoria de São Marshall, o louco sagrado” lembravam os leitores do seu guia visionário.
Em um artigo, o editor colaborador Gary Wolf conclui: “É reconfortante pensar que McLuhan está datado, porque isso alivia a nossa vergonha de não atender as suas demandas. A suas súplicas por entendimento e os seus avisos sobre a condenação são como as pitorescas exortações aforísticas e as profecias escatológicas da Igreja primitiva”.
Kevin Kelly tomou as súplicas e advertências de McLuhan como uma forma de desenvolver uma “dimensão espiritual para a tecnologia”. Na extensão de Kelly sobre a visão de McLuhan, ele vê a necessidade de guardiões da tecnologia da mesma forma que podemos nos ver como guardiões do mundo natural. Kelly argumentou que a nossa forma nebulosa e quase mística de falar sobre a informação soa como se as pessoas estivessem “falando sobre o Espírito Santo”. Os tecnólogos, observa Kelly, colocam uma crença quase espiritual na informação, mas hesitam em acreditar em Deus – mais um reflexo do seu conforto com as metáforas associadas à informação do que quaisquer verdades ontológicas.
A tecnologia, acredita Kelly, “pode nos ensinar sobre Deus”. A tecnologia requer tentativa e erro, construção e desconstrução. “O processo científico em andamento no sentido de afastar as nossas vidas do domínio da matéria e na direção de abstrações e intangíveis só pode nos preparar para uma melhor compreensão da abstração última”, escreve Kelly. “Nós tendemos a ver Deus refletido na natureza, mas a minha aposta é de que a tecnologia é o melhor espelho de Deus”.
Kelly parece descrever um casamento potencial entre o espírito e a tecnologia, que McLuhan duvidava que aconteceria, mas seria inteiramente coerente com a sua visão cristã. Kelly ajudou McLuhan a permanecer e a evoluir no nosso mundo digital. Assim como outros, como Joshua Meyrowitz, notaram, “a escrita de McLuhan é tão densa e rica que parece clamar por uma exegese participativa e por um tratamento como um texto sagrado”. McLuhan avançou com fervor no vindouro mundo eletrônico.
Junto com Meyrowitz, podemos considerar como os mosaicos, investigações, pronunciamentos e até mesmo os erros de McLuhan foram “generativos, em vez de substantivos, inspiradores em vez de instrutivos”. McLuhan nos oferece uma forma de reimaginar o mundo digital por meio de uma visão espiritual da comunicação. A visão nem sempre é fácil, e muitas vezes não é entregue de uma forma que possamos gostar, mas é uma visão radical e pessoal. Não esperaríamos nada menos de um santo.
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Como McLuhan se tornou o “santo padroeiro” da geração digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU