06 Junho 2023
Entre a análise da pulsão revolucionária e a razão neoliberal que a dribla e sufoca, está o trabalho do filósofo e professor Pierre Dardot (Paris, 1952). Este especialista em Hegel e Marx, autor de obras como Comum: Ensaio sobre a revolução no século XXI e El Ser Neoliberal, ambas escritas com Christian Laval, seu companheiro de pensamento, esforça-se em oferecer ferramentas para a compreensão de um mundo que avança (e recua) muito rápido.
Nesta oportunidade, conversa sobre seu último livro La memoria del futuro: Chile 2019-2022 (Gedisa, 2023), esmiuçando, com uma mistura de serenidade e entusiasmo, a história recente do país sul-americano, este ciclo vertiginoso em que o mundo observou os movimentos sociais passarem do entusiasmo à decepção, em apenas três anos.
Dardot explica que em sua decisão de escrever sobre o ciclo de disrupção e fechamento que se viveu no Chile confluíram duas dimensões: por um lado, sua própria experiência pessoal de um processo de imaginação política que o cativou e, por outro, um interesse intelectual e político pelo que estava acontecendo.
A entrevista é de Sarah Babiker, publicada por El Salto, 04-06-2023. A tradução é do Cepat.
Justamente durante o “Estallido”, você aterrissou no Chile. Como interpreta o que viveu lá?
Fui ao Chile pela primeira vez, em 2016, para uma conferência na Faculdade de Ciências Sociais, em Santiago. E depois retornei em 2018 e em 2019, ano em que aterrissei no país em inícios de novembro, e o Estallido tinha começado em 18 de outubro. Digamos que cheguei em um momento oportuno e participei dos protestos em massa.
Desde os tempos em que eu era jovem ativista trotskista, quando tinha 17, 20 anos, nunca tinha visto nada igual. Aquilo era uma revolução: centenas de milhares de pessoas em mobilizações em massa e, ao mesmo tempo, muito tensas no enfrentamento com os carabineiros. Isso me impressionou muito: era tudo muito violento. Estive na manifestação em que cegaram Gustavo Gatica, os carabineiros apontavam muito conscientemente para os olhos, da mesma forma que, muitas vezes, apontavam para os órgãos genitais das mulheres.
Eu estava naquela manifestação e outra coisa me chamou a atenção. Ao mesmo tempo em que acontecia toda aquela violência, havia uma alegria extraordinária de estarmos juntos. Escutavam-se orquestras dentro da marcha, algo que eu nunca tinha visto na França. Não eram vans com equipamentos de som repetindo slogans, não, eram orquestras de verdade. Sentia-se um poder coletivo, uma energia coletiva incrível.
Vou me lembrar disso por toda a minha vida: as faixas feministas, as bandeiras mapuches por todas as partes. Por isso, a capa do livro traz uma foto com a bandeira mapuche, que esteve onipresente nos protestos. O que não havia, e isso também chama a atenção, eram bandeiras de partidos políticos.
Essas manifestações me marcaram para o resto da vida. Depois, fui a uma pequena cidade de província chamada Osorno, no sul do Chile, porque tinha amigos universitários lá. Após participar de uma mesa-redonda sobre a nova Constituição, fui à praça da cidade e lá estavam dando aula, o que chamavam de universidade da rua: historiadores do direito falavam com as pessoas sobre a história do direito no Chile.
E não foi coisa de algumas semanas.
Essa perseverança também me impressionou. Em 15 de novembro, chegou-se a um acordo entre os partidos políticos inspirado pelo então presidente Piñera, um acordo ruim, na minha opinião. Gabriel Boric o assinou, mas a título pessoal, não em nome de seu partido naquele momento, o Convergência Social. Apesar da assinatura desse acordo, o movimento continuou. Havia manifestações o tempo todo, as sextas-feiras eram dias de manifestação, mesmo durante a pandemia. Considerei extraordinária a persistência do movimento.
Eu havia voltado para Paris, mas continuava fazendo registros, lendo artigos, conversando com meus amigos chilenos. E continuei atento quando foi aberto o processo constitucional, o referendo de 25 de outubro de 2020. E depois vieram as eleições para a Assembleia Constituinte. Isto foi em maio de 2021. Depois, veio a abertura do processo constituinte com a primeira reunião da Convenção Constituinte. Isto foi em julho de 2021. E também a acompanhei.
Para além da experiência do Estallido, esse interesse tem a ver com a minha história pessoal. Em 1973, eu era um jovem ativista quando Pinochet deu o golpe. E, claro, isso me impactou porque eu acompanhava o movimento da Unidade Popular e havia ficado completamente chocado com o golpe. No entanto, agora, para mim, o interesse político e intelectual está em que é possível tirar algumas lições para toda a esquerda.
Em particular, destaco o vínculo entre os movimentos sociais e o processo constituinte, algo que considero absolutamente formidável. Avaliei que, pela primeira vez, ou pelo menos uma das primeiras vezes na América Latina, havia uma revolução em marcha em nome da democracia, no sentido mais radical do termo, não do populismo autoritário, tampouco do globalismo neoliberal. Era a democracia em sua essência. Há uma espécie de imaginário coletivo no movimento de 18 de outubro que é também o imaginário coletivo nas deliberações internas da Convenção Constitucional.
Em seu livro, analisa os antecedentes do “Estallido”, mas distingue esses antecedentes, que incluem manifestações e protestos, da revolução de 2019. Qual é a razão desta disrupção inédita?
Penso que está ligada à história do Chile contemporâneo, pois em 2019 há uma consciência compartilhada por todos os atores, pelos manifestantes, mas não apenas pelos manifestantes. A consciência de que a situação do país se deve ao bloqueio neoliberal. Isto é muito importante. Tudo isso vinha sendo gestado muito antes do Estallido.
Quando Pinochet perdeu o referendo, em 1989, e se viu forçado a deixar o poder, vieram uma sucessão de presidentes eleitos democraticamente e, então, a sociedade ficou à espera da mudança prometida. Usava-se esta expressão: “a alegria chegará”, era um dos lemas da Democracia Cristã na época. A alegria chegaria e as pessoas a esperavam. Contudo, “onde está a alegria?”, perguntavam-se. O regime continuou, já era democrático do ponto de vista das eleições, mas seguiu com a mesma política neoliberal.
Foi uma democracia pactuada: um pacto com as Forças Armadas e depois com os partidos da concertação: a Democracia Cristã, os partidos socialistas. Esse pacto consistia em não mexer na Constituição de Pinochet, de 1980, e respeitar o conceito de Estado subsidiário. Em troca, podem acontecer eleições, alternância de governos, sem problemas. Mas, ao final, o princípio de subsidiariedade do Estado bloqueia tudo.
Os movimentos vinham se chocando com esse muro da política neoliberal continuada pelos governos da concertação e garantida pela vigência da Constituição. Foi isso que fez tudo explodir: já eram 30 anos batendo no mesmo muro. Por isso, esses movimentos convergiram para produzir o Estallido.
E como esses movimentos se relacionam?
Primeiro, podemos ver algumas diferenças. Há uma pesquisadora chilena, Daniela Schroder, de quem falo no livro, que utiliza essa imagem das três confluências que produzem o Estallido. Contudo, são movimentos – o feminista, o estudantil e o mapuche - que não se situam na mesma escala de tempo, já que os mapuches remontam aos fundamentos coloniais do Estado chileno.
Os que criaram o estado chileno, entre 1860 e 1870, conseguiram fazer o trabalho que os espanhóis não tinham concluído. Em fins do século XVI, os espanhóis param aproximadamente no Rio Biobío e não avançam mais. Contudo, em 1860-1883, vem a guerra de pacificação de La Araucanía, uma terrível ofensiva. Essa guerra vai deixar sua marca. Quando os mapuches falam sobre como era tudo antes de 1883, sonham: aqui, havia abundância, havia liberdade, tínhamos muita terra própria... Depois, as coisas foram diferentes.
Nas últimas décadas, o movimento mapuche estava se reconstituindo, sobretudo na época da implantação da concertação, pois esses governos, e em particular o presidido por Patricio Aylwin, fizeram-lhes muitas promessas. No entanto, sempre focavam em direitos culturais, nunca em direitos políticos coletivos. Diziam-lhes: vocês têm uma cultura e é preciso valorizá-la.
Essa é uma marca dos anos 1990.
Absolutamente, existe essa espécie de multiculturalismo neoliberal, esse é o marco. Sendo assim, a ala mais radical dos mapuches vai bater neste muro ao persistirem na reivindicação do território. Uma luta que persistirá até 2019. No entanto, também é preciso dizer que os mapuches, muitas vezes, estão integrados a outros movimentos durante o Estallido. Não é um movimento homogêneo, em absoluto. Alguns mapuches dizem que aqueles que vivem nas cidades não são realmente mapuches, mas 70% dos mapuches residem nas cidades. Esses mapuches participam de manifestações, são estudantes, são mulheres.
O que marca a diferença é que os movimentos feminista e estudantil têm uma orientação transversal. Tomo emprestado essa ideia de Karina Nohales. Significa que o feminismo atravessa todos os estratos da sociedade e é capaz de se enraizar. As próprias feministas são capazes de se apropriar das demandas e reivindicações dos mapuches. Não o contrário, é mais nessa direção. O mesmo acontece com os estudantes. Em 2011, também houve bandeiras mapuches, era uma orientação transversal do movimento estudantil que reivindicava uma educação pública, gratuita e de qualidade: uma reivindicação transversal a toda a sociedade.
Fiquei impressionado com a extraordinária vivacidade do feminismo chileno, que foi capaz de não reduzir o feminismo a uma questão de mulheres. Sem dúvidas, deve-se à influência das feministas argentinas, porque na Argentina esse ciclo começou em 2015-2016. No Chile, as primeiras manifestações foram em 2017 e a primeira greve geral feminista em 2018. O que me parece interessante, em definitivo, é que só houve convergência porque havia essa orientação transversal.
Diante dessa transversalidade nos movimentos, o que vem acontecendo de cima? Como a democracia de consenso, que você menciona em seu livro, atuou?
A democracia baseada no consenso, no Chile, tem um papel muito importante. Não se trata de acordos entre partidos, esses tipos de pactos existem em toda a América Latina e na Europa. O que é próprio do Chile é justamente essa ideologia da concertação. O democrata-cristão Edgardo Boeninger foi o seu principal ideólogo. Muito cedo, em 1986, e é importante ter presente essa data, pois naqueles anos havia grandes protestos e manifestações muito radicais, escreveu uma carta em que dizia: “precisamos de paz, precisamos de consenso, precisamos de democracia”.
A ordem é importante, porque as pessoas pensam em outra sequencialidade: há manifestações, depois desaparecem e, então, chega Boeninger com a Democracia Cristã para dizer que há uma saída política. No entanto, os protestos em 1986 continuavam sendo multitudinários quando Boeninger chega para dizer: “já é o suficiente, não devemos ser tão radicais, devemos ser capazes de defender a democracia”.
Apela à democracia de consenso: o método é sempre chegar a acordos entre partidos, mas também uma forma de garantir certo número de princípios fundamentais. Por outro lado, a democracia de consenso não faz parte da herança política do Chile, em absoluto. A herança política do Chile é a democracia parlamentar clássica com uma minoria e uma maioria. O interessante, aqui, é que a democracia de consenso é, de fato, uma democracia contra a maioria.
De que modo?
Considera-se que a maioria não leva suficientemente em conta os interesses das minorias. Que minorias? Sobretudo, os empresários. A democracia de consenso deve permitir que sejam construídos mecanismos que permitam que esta minoria seja respeitada. A democracia contra a qual Boeninger e a concertação lutam é a democracia majoritária. São contra a ideia de que a maioria deve prevalecer sobre a minoria. Por isso, deve haver consenso entre a minoria e a maioria.
Boric continua dependendo do marco do consenso. Acredito que foi em novembro de 2022 que inaugurou uma estátua em memória de Aylwin, e disse algo assim: “oh, se daqui a dez ou 20 anos, Giorgio Jackson, Camilla Vallejo e eu pudéssemos ser lembrados como Aylwin, eu ficaria feliz”.
É difícil pensar nesses cenários que partem da ruptura - penso também no caso grego, como exemplo - e acabam se reinserindo em um certo status quo anterior.
Absolutamente, é realmente muito complicado. Em grande parte, tudo também depende da atitude dos partidos políticos que compõem a esquerda parlamentar. O Syriza é um exemplo muito bom. Tinham o vento da mobilização popular a seu favor, então, chega a ameaça da Troika da União Europeia, naquele momento, junto com os partidos de direita, e dizem que eles precisam se submeter. E o que fazem, então? Isso é típico da esquerda, grande parte da esquerda parlamentar diz a mesma coisa: “Vamos apelar ao povo para que nos apoie”.
O problema sempre é que não conseguem se articular, apoiar-se nos movimentos sociais, recorrem ao povo para receber apoio, para conseguir apoio eleitoral. É sempre assim. O que aconteceu na Grécia foi terrível, porque realizaram um referendo, obtiveram 60% de apoio e 15 dias depois decidem se render.
Algo parecido aconteceu no Chile. Não quero personalizar a responsabilidade em Boric como indivíduo, trata-se do sistema de partidos da esquerda parlamentar, todos participam de uma lógica de concertação. Dizem: estamos buscando alcançar acordos menos ruins possíveis e sempre com a ideia de que vamos limitar os danos. E isso é uma terrível ilusão, porque quanto mais concessões fazemos à direita, mais querem.
Infelizmente, esta é uma experiência histórica muito comum. Essa ideia de tentar parar a direita e dizer, certo, se cedermos um pouco, vão parar de nos pressionar e poderemos debater as coisas com calma. Não, não farão isso. O caso do Chile hoje é terrível porque o pêndulo está voltando, como se diz. Há esse movimento que vai muito, muito à esquerda, com os movimentos sociais, a convenção constituinte etc. E então, uma vez que a Rejeição ocorre, em 4 de setembro de 2022, o pêndulo volta e a direita se torna cada vez mais agressiva, cada vez mais arrogante. E, então, o que fazem os partidos da esquerda parlamentar? O que Boric faz? Recuam. Recuam, recuam e recuam.
Com qual finalidade?
Imaginam que poderão conter a direita dentro de certos limites, mas veja o que acaba de acontecer: no dia 12 de dezembro, chegou-se a um acordo, eu falo disso no prefácio da edição em espanhol, porque naquele momento já desconfiava que seria terrível o que viria depois do acordo. E assim aconteceu: o dia 7 de maio foi um desastre eleitoral, a esquerda parlamentar perdeu em todos os aspectos.
Inicialmente, diziam que chegaríamos a um acordo, que seria melhor. Um acordo ruim é melhor do que nenhum acordo. Conseguiram o acordo, exceto que Kast não o assinou. Então, todos os partidos da esquerda parlamentar assinaram o acordo junto com a direita..., não me atrevo sequer a dizer moderada, porque a direita moderada no Chile é uma direita bastante agressiva. Esse é um exemplo muito bom. Perderam tudo. Queriam limitar os danos e perderam as eleições.
Há uma reflexão entre os que se mobilizaram no Chile, que também se reflete em seu livro, que questiona se os movimentos sociais estavam muito à frente, muito na vanguarda, e se esqueceram, antes da convenção constituinte, que não são a sociedade.
Sim, os movimentos sociais no Chile se politizaram muito, muito rapidamente. Era como se os jovens que participavam das manifestações estivessem refazendo o mundo a cada dia. E havia uma pequena parcela da sociedade que os seguia. Porém, a grande maioria não. Por isso, insisto muito: os movimentos sociais e a sociedade não são a mesma coisa, mas na maioria das vezes as pessoas que estão há três anos participando de movimentos sociais têm dificuldade em aceitar. É difícil para elas aceitarem a ideia de que não trabalharam o suficiente com as classes trabalhadoras para que acompanhem, para que façam parte.
Nesse contexto, as mais lúcidas são as feministas chilenas, que realizaram em fevereiro passado o V Encontro Nacional, que foi a Conferência Plurinacional de Mulheres e Dissidentes em Luta. Construíram um documento-síntese: a primeira vez que o li, considerei extraordinário. Elas mesmas diziam: no último capítulo, havia um parágrafo inteiro sobre não ter feito o suficiente para chegar às mulheres dos bairros operários.
Diante dessa subjetividade neoliberal que você menciona no livro e que estaria tão consolidada, como se faz essa pedagogia política?
É difícil porque, por um lado, houve o que poderíamos chamar de uma subjetivação coletiva que permitiu que uma certa minoria se libertasse das garras do neoliberalismo. Mas, ao mesmo tempo, o grosso da sociedade permanece completamente dependente dele. É que a subjetividade neoliberal não é uma subjetivação coletiva, é uma subjetivação individual, que está na relação com a dívida, na relação com o consumo, na relação com a moradia, com os fundos de pensões privados.
O que também chama a atenção é que, muitas vezes, são as pessoas que não têm nada ou quase nada que demonstram um apego mais forte à propriedade, dizendo: “ah, a convenção constitucional vai nos privar das poucas coisas que temos. Não sabemos realmente o que vai acontecer” e também há medo.
A subjetivação neoliberal faz com que exista medo da democracia radical. Isto não deve ser ignorado, não deve haver engano. Se você toma a Constituição de 1980 como ponto de partida, são 40 anos expostos a essa subjetivação. Ou se você considera o grande ponto de inflexão neoliberal das Juntas Militares de Pinochet, isso foi em 1975. São quase 50 anos, isso transforma as pessoas por dentro.
Então, a rejeição à nova constituição legitimava a concertação e a constituição de Pinochet?
É mais complicado, a rejeição aos partidos políticos tradicionais continua sendo muito forte hoje em dia. Há outros fatores. Foi a primeira vez que o voto era obrigatório. Fiquei impressionado, no dia 4 de setembro, com as imagens de pessoas fazendo fila em frente às seções eleitorais, algumas delas vinham de muito longe. Se não tinham o comprovante de que tinham votado, arriscavam-se a uma multa.
As pessoas se veem obrigadas a ir votar, muitas não sabem em quem, abstêm-se ou votam nos partidos que são a favor da rejeição. No entanto, isso não é necessariamente um apoio ao sistema de concertação, não é que queiram voltar a esse sistema. Esse é justamente um dos grandes erros de Boric. Depois da rejeição, ele pensa que é preciso voltar à concertação, assim, dá o exemplo. Contudo, não estamos mais no contexto que deu origem à concertação. Acabou-se. Os anos 1990, os 2000, os 2010 acabaram. As pessoas lutam no presente, mas com a mente obscurecida pelos fantasmas do passado. Essa é a situação.
No livro, você fala de cansaço, movimentos em todo o mundo se articulam em torno dessa ideia de não suportar mais as coisas como são. E, no entanto, acabam se deparando com essa espécie de recuo constante, acompanhado de repressão.
Isso é o que eu dizia do pêndulo que vai e vem, que é o que eu penso que está acontecendo no Chile. Ou seja, quanto mais radical é a revolução, mais violenta é a reação. Está presente essa ideia de que é absolutamente necessário apagar o que aconteceu da memória dos chilenos. E tem muita gente, inclusive que participaram dos movimentos sociais, que não lembram o que aconteceu e o que viveram.
Do que participamos? Já não resta nada. Ninguém mais fala a esse respeito. É como se todos os rastros tivessem sido apagados. Você não pode apagar todos os rastros físicos, mas pode tentar apagar os rastros do Estallido das mentes, e é isso que está acontecendo.
Mesmo as pessoas que participaram do movimento, às vezes, têm vergonha de assumir. Isso é terrível, não? Só os jovens ou muito jovens que querem continuar, que dizem para si mesmos: temos que retomar a luta, temos que reconstruir movimentos mais sólidos do que os que construímos no passado.
O que fica do “Estallido”? O que esses momentos disruptivos deixam para o futuro?
É bom se perguntar sobre o futuro, isso é justamente o que me chamou a atenção. Por isso, adotei a ideia “A memória do futuro”, da forma como é elaborada pelas feministas chilenas. A princípio, perguntava-me: o que quer dizer a memória do futuro, se o objeto da memória é o passado, não o futuro? E, ao final, percebi que é uma grande expressão e pensei, opa, esse é o título do meu livro, não preciso procurar mais.
As feministas diziam em todos os debates: “Não buscamos reproduzir, não buscamos repetir, não buscamos voltar, não é esse o nosso problema”. Daí, a memória do futuro, que significa que temos que manter em mente a direção que queremos, agora, no presente. Lembrar o que queremos focar coletivamente, no presente. Estamos no presente, agimos no presente. Mas, ao mesmo tempo, fazemos isso pensando a partir de um olhar para o futuro.
Não se trata de um futuro distante, aquele que chegará em dez anos. Não, o futuro é a tarefa coletiva. Penso que essa ideia das feministas é extraordinária. O futuro é amanhã. Essa é a perspectiva que devemos abrir, é o que temos que discutir. É importante porque a ideia se abre à deliberação coletiva. O futuro não está escrito, constrói-se no presente, mas sem ser prisioneiro do presente. Essa é a genialidade da ideia “Memória do futuro”.
Você traça uma relação entre deliberação e imaginação política.
Sim. É que quando comecei a olhar para o que estava acontecendo no Chile, descobri que havia muita imaginação política lá. Quase em todos os momentos, em todas as etapas de minha pesquisa, encontrava essa imaginação política: tanto no início, quando o Estallido eclode em todos os sentidos - o que havia nos protestos era um extraordinário exercício de imaginação política -, quanto durante a convenção constituinte.
Quando deliberamos, a imaginação política se refere a buscar imaginar o que será deliberado. O que finalmente será decidido coletivamente é justamente o que não existe, porque é o futuro. Mas, ao mesmo tempo, esses momentos representam a possibilidade de fazer algo para avançar nesse rumo, para trabalhar em sua construção. O movimento do Estallido e o trabalho da convenção constitucional são realmente os dois momentos em que me pareceu que se devolvia a primazia à imaginação.
Você revela uma contradição entre essa perspectiva deliberativa, a da imaginação política, e certa tendência ao presidencialismo que frustra a abertura.
Roberto Gargarella, um constitucionalista argentino, analisa o presidencialismo a partir do processo constituinte no México, em 1917. Sua visão tem peso porque há uma profundidade, há um campo histórico sobre o qual se sustenta. O que quero dizer é que o especificamente latino-americano, como disse Gargarella, é esta espécie de dualidade: momentos em que há uma grande radicalidade do ponto de vista dos direitos sociais, como é o caso da revolução mexicana, mas, por outro lado, a estrutura de poder dentro do Estado não muda, só há pequenas correções.
Quando eu era jovem, tinha grandes esperanças na América Latina. Nossa geração estava muito marcada pelo que acontecia nela. Discutíamos sobre a estratégia de Hugo Blanco, no Peru, queríamos reinventar o mundo nos baseando no que a América Latina tinha a oferecer. Continuamos com isso, como com o Chile. Vemos que o problema é que esse presidencialismo persiste, mesmo quando os direitos sociais vão sendo reconhecidos.
O presidencialismo continua sendo a parte da velha estrutura estatal que permanece inalterada. Mesmo quando há desdobramentos interessantes, como o de Evo Morales na Bolívia, quando são introduzidos mecanismos de participação popular no poder. No entanto, quando Evo quis se apresentar à reeleição pela quarta vez, deixou isso de lado e só pensou em que lhe permitiria ser eleito. Assim, conseguiu que o tribunal eleitoral modificasse a Constituição, excepcionalmente, para ele. E isso, lamentavelmente, aconteceu em outros países.
Como a ideia de constitucionalismo deliberativo atua frente a esse presidencialismo?
Para mim, o constitucionalismo deliberativo é a alternativa que questiona o presidencialismo. Não sou necessariamente contra a função do Presidente da República, mas sou contra que lhe concedam poderes excepcionais e extraordinários. Por exemplo, no Chile, o presidente, mesmo no âmbito do projeto da nova Constituição, tinha uma faculdade excepcional em matéria orçamentária de gasto público. Tinha o direito de realizar propostas por conta própria e até de pressionar o Parlamento a adotá-las. Isso é fatal. O constitucionalismo deliberativo aposta em que a deliberação possa prevalecer em cada plano da vida constitucional.
Sempre temos a ideia de uma constituição como uma espécie de salvaguarda da democracia. Contudo, o lamentável é o fato de que as constituições são concebidas, antes de tudo, como salvaguardas contra a democracia. Por outro lado, o velho mundo, a velha Europa, mostrou que os poderes presidenciais são algo bastante pernicioso.
Macron é o exemplo: faz o que quer porque há uma Constituição - da época de De Gaulle - que o permite. E eu contava aos meus amigos chilenos: Macron tem o direito de validar, por exemplo, a reforma das pensões, mesmo que o Parlamento diga não. Ele não se importa, assim fez, apelando ao artigo 49.3 da constituição. Esse é o velho mundo, e eu esperava, e espero, que a América Latina possa liderar algo diferente.
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“A subjetivação neoliberal leva ao medo da democracia radical”. O Chile visto por Pierre Dardot - Instituto Humanitas Unisinos - IHU