UPP: “a criação de uma nova ‘cultura da polícia’”. Entrevista especial com Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira

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20 Mai 2013

“As UPPs, com uma ou duas exceções, estão todas localizadas nas áreas cruciais à mercadificação da cidade – o que, no atual contexto, significa que ou bem sediarão os megaeventos esportivos e abrigarão turistas e atletas, ou bem constituem importantes vias de circulação de e para as sedes dos jogos”, afirmam os pesquisadores.

Confira a entrevista.

Foto: www.jornalcorreiodasemana.com.br

Avaliar os efeitos das Unidades de Polícia Pacificadoras – UPPs, cinco anos após sua implementação nas favelas cariocas, “esbarra em dificuldades intransponíveis”, apontam os pesquisadores Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira, organizadores do livro Até o último homem: visões cariocas sobre a administração armada da vida social (São Paulo: Boitempo Editorial, 2013). A primeira delas, enfatizam, segue da questão: “Qual é realmente o objetivo das UPPs? Quando perguntamos isso, vemos que os objetivos comumente ou oficialmente atribuídos elas são absurdos e irrealizáveis. É impossível, por exemplo, levar a sério o discurso sobre a tentativa de recuperar, para o ‘Estado de Direito’, territórios que estavam sob o controle do ‘crime organizado’”.

Para os pesquisadores, as UPPs instaladas no Rio de Janeiro se inserem num quadro de cidades que vivem uma “crise social constitutiva” e servem como “porta de entrada para os serviços públicos (...). De um lado, está a aliança política sinistra entre a prefeitura, o governo do estado, e o governo federal com o capital especulativo internacional, o capital imobiliário, as construtoras e todos os demais interesses econômicos que orbitam essa transformação do Rio de Janeiro em um grande parque temático tropical de futebol e jogos internacionais disso e daquilo”.

Segundo eles, tais interesses “pautam o investimento estatal na direção da mercadorização da cidade: ou seja, transformar o espaço urbano carioca em fonte de lucro. O tipo de investimento público envolvido aí é a outra face do descaso político habitual pela prestação de serviços públicos básicos. O exemplo paradigmático disso é que já se gastou no estádio do Maracanã, sozinho, R$ 1.2 bilhão, enquanto que o montante destinado a todas as obras em todas as favelas da cidade do Rio, até 2020, é R$8 bilhões, sendo que quase R$800 milhões vão ser gastos num parque ecológico-turístico que vai ser construído na famosa Rocinha”.

Felipe Brito é doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, e professor do Polo Universitário Rio das Ostras da Universidade Federal Fluminense – UFF.

Pedro Rocha de Oliveira é graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, mestre e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - UFRJ, com a tese "Estetização da Realidade: Ideologia e Arte sob o Capitalismo Tardio". Foi professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e atualmente leciona no Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Cinco anos após a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs no Rio de Janeiro, que avaliação é possível fazer? As UPPs trouxeram segurança pública para as favelas do Rio de Janeiro?

Foto: www.molon1313.com.br

Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira – A tentativa de fazer uma avaliação das UPPs, para saber se atingiram ou não seu objetivo, esbarra, logo de início, em dificuldades intransponíveis. Pois qual é realmente o objetivo das UPPs? Quando perguntamos isso, vemos que os objetivos comumente ou oficialmente atribuídos a elas são absurdos e irrealizáveis. É impossível, por exemplo, levar a sério o discurso sobre a tentativa de recuperar, para o “Estado de Direito”, territórios que estavam sob o controle do “crime organizado”. O controle territorial policial-militar que a UPP promove é exatamente o oposto do que se convencionou chamar de Estado de Direito. Checkpoints, toque de recolher, abordagem constante e arbitrária para revista, intervenção policial direta em atividades culturais e manifestações, esses elementos que estão na base do quotidiano no entorno de uma UPP são elementos caracterizadores não do Estado de Direito, mas do que em teoria política se chama Estado de Exceção, a suspensão do direito por motivos emergenciais, crises, calamidades etc.

Estado de Exceção

O que a UPP faz é tornar oficial, comum e quotidiano, para as populações pobres, o Estado de Exceção, a suspensão de uma série de direitos civis básicos, e isso em nome da “preservação” do “Estado de Direito”. Não é à toa que, num telegrama vazado pelo site WikiLeaks, o Consulado dos EUA no Rio de Janeiro descreve as UPPs nos mesmos termos com que descreve as ocupações militares no Iraque e no Afeganistão. E, quando entrevistados, moradores de determinadas comunidades fazem explicitamente a comparação entre a arbitrariedade do poder público e a arbitrariedade do tráfico de drogas. Assim, esse aspecto de “retomada do Estado de Direito”, da polícia hasteando bandeira do Brasil quando “entra” na comunidade, é absurdo e não resiste nem à análise mais imediata. Entretanto, é importante observar que essa suspensão do “Estado de Direito” pela polícia é algo que, embora se exacerbe com a UPP, não se restringe a ela: por exemplo, a operação normal do Batalhão da PM da Cidade de Deus, mesmo antes de ter UPP, empregava toques de recolher, proibição de circulação de motos, e outras violações de direitos básicos. Levando isso em conta, temos que qualificar como absurdo outro dos supostos objetivos da UPP: a criação de uma nova “cultura da polícia”. E aí o problema não é só que “a polícia é a mesma” – mal paga, ou mal formada etc. Não se trata de um problema de execução ou de administração.

Mercadorização da cidade

O Rio de Janeiro, como toda grande cidade da sociedade capitalista contemporânea, vive uma crise social constitutiva, e a principal resposta para essa crise, aqui como em toda parte, tem sido a repressão violenta dos pobres. A UPP se insere dentro desse quadro, que já estava dado antes de existir UPP. E com isso chegamos a outro dos supostos objetivos da UPP, que é servir como “porta de entrada para os serviços públicos”. Isso é algo que simplesmente não vai acontecer. De um lado, está a aliança política sinistra entre a prefeitura, o governo do estado, e o governo federal com o capital especulativo internacional, o capital imobiliário, as construtoras, e todos os demais interesses econômicos que orbitam essa transformação do Rio de Janeiro em um grande parque temático tropical de futebol e jogos internacionais disso e daquilo. Esses interesses pautam o investimento estatal na direção da mercadorização da cidade: ou seja, transformar o espaço urbano carioca em fonte de lucro. O tipo de investimento público envolvido aí é a outra face do descaso político habitual pela prestação de serviços públicos básicos. O exemplo paradigmático disso é que já se gastou no estádio do Maracanã, sozinho, R$ 1.2 bilhão, enquanto que o montante destinado a todas as obras em todas as favelas da cidade do Rio, até 2020, é R$8 bilhões, sendo que quase R$800 milhões vão ser gastos num parque ecológico-turístico que vai ser construído na famosa Rocinha.

E é claro que o que está em jogo aí é um problema muito mais amplo do que apenas a preparação para os jogos. Há vários indícios de que o Estado abdicou da tarefa de promover integração social mediado por direitos universais, e um exemplo disso é a organização da prestação dos serviços de saúde: a saúde pública no Brasil está em frangalhos, os gastos privados em saúde excedem os gastos públicos, e não há nenhuma política sistemática para reverter isso. O que há, ao contrário, é um estímulo governamental para os pobres passarem a consumir planos de saúde adequados à sua renda.

UPPs asseguram oportunidades empresariais

Nesse quadro, a UPP não pode ser porta de entrada para serviço público nenhum. Mas isso não quer dizer que ela não realize um objetivo. Ela potencializa uma tendência já em curso de consumismo / empreendedorismo. Por um lado, os moradores são “promovidos”, sob o auspício das armas, à condição de consumidores de serviços que, antes, eram obtidos por vias alternativas. É o caso da energia elétrica e da TV a cabo, tradicionalmente obtidas via “gato”, ou conexões clandestinas, o que deixava o produto ou gratuito ou mais barato.

É nesse sentido que um relatório recente do Banco Mundial ressalta o quanto as UPPs asseguram oportunidades empresariais. Parece que os supostos 12 milhões de pessoas que vivem em favelas no Brasil constituem um mercado consumidor maior que o da Bolívia ou do Paraguai. Mas trata-se de um consumo amparado no endividamento galopante, que é a tônica do capitalismo contemporâneo em crise.

Por outro lado, existe o estímulo ao empresariamento de si mesmo, sob a forma de linhas de crédito voltadas especificamente para o microempreendedor em favelas, inclusive – mas não apenas – explorando as possibilidades turísticas dos “aglomerados subnormais”, conforme discute Maurilio Botelho em seu texto. Mas, obviamente, não se pode conceber uma favela povoada de microempreendedores. Ademais a combinação de consumismo e empreendedorismo provoca um encarecimento da manutenção da vida nas favelas, o que obriga os mais pobres dentre os pobres a mudarem-se para locais cada vez mais distantes.

Por fim, a despeito do consumo endividado e da microempresa, a favela continua sendo favela: há um descompasso entre o consumo privado de serviços e a chegada dos prometidos serviços públicos. De qualquer forma, seria esse o bizarro objetivo prometido e cumprido pelo projeto das UPPs? Numa época de deslumbramento com a nova classe C, pode ser que sejam: pobres quietos, controlados, consumindo.

IHU On-Line – Que papel as UPPs desempenham na produção do espaço urbano carioca?

Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira – A UPP institucionaliza, normaliza e naturaliza uma “gestão” policial da vida social de trabalhadores informalizados, formalizados à base de precarização, desempregados etc., apinhados em territórios cujas condições de moradia são “indignas” – se tomarmos como parâmetro o direito constitucional à “moradia digna”, interditado diariamente. Essa “gestão” condensa um padrão de “política de segurança pública” com um viés político de intervenção urbana, interferindo direta e indiretamente na formatação do espaço urbano carioca. Está implicado um modelo de cidade que não apenas é dirigido à viabilização dos grandes negócios empresariais, mas que é administrado, propriamente, como uma grande empresa. É a mercadificação e financeirização do espaço urbano – algo que aparece bem claramente, por exemplo, nos leilões dos Certificados de Potencial Adicional Construtivo – CEPACS no mercado financeiro.

Megaeventos

Os megaeventos estão nesse pacote de mercadificação, embora não o esgotem, e basta dar uma espiada no mapa das UPPs para ver o entrelaçamento delas com os megaeventos. Em nome dos megaeventos, numa obediência canina aos ditames da FIFA e do Comitê Olímpico Internacional, a legislação urbanística é, muitas vezes, simplesmente ignorada em nome da “viabilização” de políticas urbanas, implementadas por meio de amplo leque de intervenções público-privadas, responsáveis por impactos socioespaciais profundos. Assim, a “cidade de exceção” (Carlos Vainer) reedita o rolo compressor dos despejos e remoções que, servindo como dispositivo de “limpeza urbana”, impulsiona (ou retroalimenta) processos de gentrificação e/ou especulação imobiliária e do solo urbano. O rolo compressor extraeconômico dos despejos e remoções deságua no rodo econômico do inflacionamento dos custos imobiliários e dos serviços em geral, que obriga muitos moradores a sair de onde estão com as suas próprias pernas – o que alguns autores chamam de “remoção branca” (sic!).

Diante desse quadro, fica claro que as promessas de melhoria urbana do “novo” urbanismo realizam-se seletivamente, embora o tradicional mecanismo da “socialização dos custos” ainda se mantenha. Constrói-se uma vitrine de cidade cosmopolita (aproveitando alguns traços das nossas “diferenças culturais”, em atenção às demandas do fragmentado mercado pós-moderno), propícia para recepcionar as empresas e os investimentos. E não podemos esquecer que as atividades imobiliárias de toda a sorte e a expansão da fronteira urbana constituem sorvedouros muito intensos do capital monetário superacumulado, no atual contexto financeirizado do capitalismo em crise. Maurilio Botelho mantém pesquisa muito fecunda sobre esse fenômeno. No empresariamento, na mercadificação e na financeirização carioca, a UPP é peça-chave, contribuindo centralmente para as reconfigurações urbanas.

IHU On-Line – O que as UPPs revelam sobre o modelo de gestão pública?

Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira – O que a UPP faz é submeter à regulação policial (leia-se: regulação social sob os auspícios das armas) determinados territórios considerados estratégicos ao novo modelo de intervenção urbana. Ao fazer isso, a gestão pública atualiza e exercita, direta ou indiretamente, a secular propensão do Estado brasileiro de tratar questão social como “caso de polícia”. O capitalismo periférico brasileiro sempre contou com largas doses de violência para se expandir e, ao mesmo tempo, conter / administrar a imensa massa de sobrantes, que é uma característica histórico-social indelével do nosso padrão de modernização capitalista, de origem colonial e escravocrata. Vale dizer que a máquina mortífera e de encarceramento continua funcionando a todo vapor no Brasil, perpetuando sua característica nodal: a seletividade econômica, étnico-racial e territorial. E, para refletir sobre isso, é preciso levar em conta um contexto mais amplo.

Situação econômica precária

É fato que, durante a vigência do petismo no governo federal, foi gerada quantidade expressiva de postos formalizados de trabalho – pelo menos, se comparada com a aridez neoliberal da década de 1990. Entretanto, a maioria desses empregos formais apareceu no setor de serviço / comércio, com rendimento de até 1,5 salários mínimos, e suscetíveis a uma das maiores rotatividades do mundo. Também é fato que houve um aumento continuado do salário mínimo, chamado de “política de valorização do salário mínimo”, cujos efeitos também incidem sobre a massa de beneficiários da Previdência Social. Porém, se o ritmo de aumento real do salário mínimo de 2013 em relação a 2012, de 2,7%, for mantido, serão necessários mais 50 anos para o salário mínimo, fixado em R$ 670,95, atingir os R$ 2.383,28, calculados pelo Dieese, como o salário capaz de atender às “necessidades vitais básicas do trabalhador” e de sua família, em conformidade com o artigo 7º da Constituição da República, de 1988. Esse dado é da Auditoria Cidadã da Dívida.

Ou seja, o funcionamento normal do capitalismo brasileiro, mesmo quando ele assume feições comparativamente mais inclusivas, se dá na base da manutenção de um enorme contingente de mulheres e homens numa situação econômica precária.

A “gestão pública” é, portanto, gestão da crise normalizada e continuada. A política afunila-se em “política de segurança”, o aparato vigilante-coercitivo-repressivo público-privado hipertrofia-se. Cada vez mais áreas do poder público são perpassadas, em alguma medida, pelo vetor da “segurança”. Aqui no Rio, por exemplo, um ex-secretário de Assistência Social, hoje na Secretaria Municipal de governo, foi o responsável pela implementação da famigerada “Operação Choque de Ordem”.

IHU On-Line – É possível fazer uma comparação entre a atuação das UPPs em diferentes favelas? Como a sociedade carioca, dentro e fora das favelas, reage às UPPs?

Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira – No que diz respeito às favelas, isso varia muito. “A favela carioca” não é uma realidade homogênea. Por exemplo, seria necessária uma discussão ampla para comparar a Rocinha, favela da zona-sul do Rio, que já virou ponto turístico, com o Jacarezinho, favela da zona-norte que tem um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano – IDHs do Rio, e onde há pouco tempo aconteceu um verdadeiro levante popular contra a UPP, durante o qual a PM atirou com armas automáticas na população enfurecida. Em várias comunidades, os moradores relutam em colaborar com as UPPs, na medida em que percebem que o tráfico de drogas não foi expulso da comunidade, mas encontra-se operando de maneira mais discreta. Como Marcos Barreira chama atenção no texto dele, “pacificar” a cidade é, no fim das contas, apenas acabar com a visibilidade da violência do tráfico de drogas.

Então, antes, você via os garotos andando com fuzil no ombro, e hoje você não vê mais. Pode-se dizer que isso aumenta o que se têm chamado de “sensação de segurança”, levando então alguns moradores a manifestarem seu apoio à UPP. Por outro lado, visto que todo o mundo sabe que o tráfico ainda está presente – há até relatos de enormes quantidades de armas entrando no Complexo do Alemão –, os moradores não aderem à política de denúncia espontânea que a polícia implementa nas comunidades, porque têm medo de que, depois dos megaeventos, a coisa volte a ser como antes, e eles se vejam novamente nas mãos das organizações que ajudaram a denunciar.

Ademais, há indícios de UPPs cuja implantação dependeu de uma espécie de acordo entre o poder público e o tráfico de drogas. É sabido que, em várias favelas da Zona Sul carioca, um dos efeitos concretos da UPP foi aumentar a venda de drogas: sem precisar temer conflitos armados, e sem se deparar com jovens portando armamento pesado, os consumidores podem subir o morro com maior tranquilidade. E isso causa até um aumento da “atividade econômica” nessas comunidades: moto-táxi, bares, festas estilizadas etc.

Moradores envolvidos nessas atividades teriam justificativas bem concretas para responder que apoiam a UPP, mas o significado dessa resposta seria, obviamente, cifrado e problemático. Essa presença continuada do tráfico a despeito das UPPs significa também que, embora as incursões violentas da polícia tenham diminuído em certas comunidades, a política de enfrentamento não foi superada e nem vai ser, até porque o controle territorial via UPP é caro e não pode ser generalizado.

E, o que é pior, em meio a conflitos com traficantes que, portanto, continuam sendo reportados nessas comunidades, às vezes são incluídas claras manifestações populares contra as UPPs. Paralelamente, a insistência em legislações proibicionistas e no controle penal de certas substâncias tornadas ilícitas, além da manutenção, a todo vapor, da produção armamentista, perpetuam bases importantes da “war on drugs” [guerra contra as drogas], e o produtivismo da indústria armamentista (no Brasil e no mundo) é objeto de atenta pesquisa do Javier Blank e do André Villar.

Administração social armada

A questão central dessa relação entre a população da cidade e as UPPs é que, quando políticas desse tipo estão em jogo, o problema mesmo da opinião pública é desmontado. Que sentido tem perguntar o que a população acha de uma política repressiva de Estado de controle territorial e violação de direitos? Há uma contradição já na própria pergunta, porque a política que normaliza a ocupação armada de territórios de socialização também suspende aqueles supostos princípios da tal “sociedade democrática ocidental” que exigiam a atenção à opinião das pessoas a respeito do andar das coisas.

Diante da administração social armada, a opinião pessoal é tornada obsoleta. Daí que insistimos que a UPP tem que ser entendida como um fenômeno constitutivo da sociedade capitalista global em crise, uma sociedade na qual o colapso financeiro, a segregação econômica, a “guerra preventiva”, a repressão política, o autoritarismo econômico-administrativo, andam todos juntos, e trabalham na direção de uma superação destrutiva da democracia burguesa clássica – a qual, a bem da verdade, nunca chegou a se instalar no capitalismo periférico.

De um lado – o mais próximo de nós – a UPP, os autos de resistência, as tropas de elite, a Guarda Nacional que é mandada para obstruir o direito à greve e obrigar os operários da Belo Monte a se conformarem às condições subumanas em que trabalham; do outro, o Procurador-Geral dos EUA admitindo abertamente, no outro dia, que a “administração Obama” se vê no direito de assassinar cidadãos norte-americanos em território norte-americano em situação de emergência, assim como as leis de exceção que, em nome do combate ao terrorismo, permitem à guarda nacional dos EUA cair em cima dos manifestantes do movimento Occupy e prendê-los por tempo indeterminado sem julgamento.

É claro, quando a polícia mata no Rio – ou em São Paulo, ou em Curitiba, ou em qualquer lugar – sempre tem gente que se dá o trabalho de entrar no site do jornal e manifestar seu apoio: “bandido tem que morrer mesmo etc.” Só que, para um Estado que mata explicitamente, a opinião – seja contra ou a favor – é supérflua. É a esse ponto que chegamos. A Grécia, por exemplo, já “avançou” um pouco mais: lá, em resposta à ditadura financeira da União Europeia, o povo vai regularmente para as ruas se manifestar, e então há relatos de colaboração aberta entre a polícia e grupos fascistas: gente que quer “fazer valer a sua opinião”, como se diz. Entre nós, as caveirinhas do BOPE viram ornamento para musa de escola de samba, o blindado do BOPE vira brinquedo de criança, e uma parte significativa das classes mais altas, para quem liberdade há muito significa apenas poder comprar coisas, aplaude uma oficialização da violência que não recai diretamente sobre ela.

IHU On-Line – Além dos traficantes, as milícias eram um grande problema nas favelas cariocas. A atuação delas tem diminuído por conta das UPPs?

Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira – Na verdade, as milícias não estão presentes só nas favelas cariocas, mas também no chamado “asfalto”, ou seja, em áreas urbanas que, embora “externas” às favelas, se ligam de alguma maneira a elas por conta do processo galopante de favelização do Rio de Janeiro, conforme indicam as pesquisas de Maurilio Botelho.

Há um tempo circulou nas chamadas “redes sociais” uma foto do atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, sentado numa reunião com conhecidos líderes milicianos. Essa foto vem da época em que o poder público falava das milícias ou como um problema menor, ou como um mecanismo de autodefesa comunitária. De lá pra cá, tanto a chamada “política de segurança” quanto a cobertura midiática a respeito dela vêm dando muito pouca atenção à milícia.

E quando olhamos um mapa do Rio, vemos claramente que – com a exceção da comunidade do Batan, na Zona Oeste do Rio – as UPPs e as milícias não se tocam. (A UPP do Batan foi uma excepcionalidade, motivada pelo sequestro e tortura de jornalistas de um jornal “popular”, ou melhor, de elevado consumo de massa, no Rio de Janeiro. Essa atrocidade foi alardeada pela grande mídia e provocou o “desengavetamento” da CPI das milícias na Assembleia Legislativa, proposta pelo deputado do PSOL Marcelo Freixo.)

As milícias – que, aliás, assim como as UPPs, estão organizadas segundo uma lógica de controle territorial – estão presentes nas áreas do Rio onde os índices de homicídio são maiores: em tese, os locais que mereceriam maior atenção de uma política de “pacificação”, não? Ocorre que as UPPs, com uma ou duas exceções, estão todas localizadas nas áreas cruciais à mercadificação da cidade – o que, no atual contexto, significa que ou bem sediarão os megaeventos esportivos e abrigarão turistas e atletas, ou bem constituem importantes vias de circulação de e para as sedes dos jogos.

Desde o ponto de vista do controle territorial armado, o Rio de Janeiro, então, está todo coberto, mas em termos de dois espaços complementares: o espaço do urbanismo de mercado e dos megaeventos, ocupados pelas UPPs, e o “resto” majoritário da cidade e região metropolitana, perpassado pela rede de conflitos e acomodações entre Estado, varejismo de drogas ilícitas e milícias.

IHU On-Line – Em que consistiria um modelo de segurança pública efetivo para o Brasil, especialmente cidades como o Rio de Janeiro, que tem um contexto de tráfico de drogas e violência?

Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira – O que é um modelo de segurança pública efetivo? Um modelo que mantém os pobres na linha? Se é isso, parece que a combinação de UPP, BOPE, Forças Armadas e as formas não oficiais de dominação armada de territórios parece ser razoavelmente “eficaz”.

Sarcasmo à parte, a questão por um “modelo de segurança pública” é uma questão de ordem meramente administrativa. Se fosse expresso com todas as letras, o problema da “segurança pública” soaria mais ou menos assim: “dado que o capitalismo está baseado na exploração e na discriminação econômica; dado que o desemprego estrutural nas últimas décadas vem crescendo vertiginosamente em todo o mundo; dado que o Estado, por um lado, desistiu de dar soluções de caráter universalista para o problema da pobreza, e, por outro, tornou-se incapaz de fazê-lo devido aos constrangimentos da financeirização econômica; e dado que, portanto, a criminalização dos pobres é um fato, pergunta-se: o que fazer com os criminosos?” Ora, isso, que para o ponto de vista meramente administrativo, está simplesmente dado, é exatamente o que precisa ser questionado. O capitalismo há muito deixou de ser uma forma de socialização em sentido estrito – é, antes, uma lógica de desagregação, produtora daquilo que Marildo Menegat chama de “barbárie”.

Já se vulgarizou a consciência do caráter crítico do tempo em que vivemos: fala-se de crise econômica, crise ambiental, crise social, crise política, crise da família, crise dos valores... Dentro desse quadro, o “problema da segurança pública” não é algo que possamos solucionar – assim como não é possível, dentro dos parâmetros do capitalismo, solucionar o “problema do aquecimento global”. No caso desse último, o discurso contemporâneo já está incorporando na perspectiva da catástrofe ambiental: fala-se de estratégias para deter o alagamento das cidades costeiras, de terras do norte canadense que se tornarão propícias à agricultura, de rotas comerciais que serão abertas com o descongelamento do Oceano Ártico. A questão da “segurança pública” obedece a uma lógica semelhante: incorpora a catástrofe social como um dado e propõe que tratemos disso de forma eficiente e racional. Qualquer forma de racionalidade ou de eficiência compatíveis com o horror desencadeado pela bárbara desintegração da sociedade capitalista precisa ser rejeitada.

No que diz respeito à realidade urbana contemporânea, precisamos olhar para além da “segurança pública”, e tentar imaginar formas de atuação social que negassem a perspectiva que trata os pobres como meros objetos da administração. Obviamente, exercícios de imaginação como esse teriam resultados absolutamente incompatíveis com o tipo de discurso produzido pelos especialistas e consultores em segurança pública que, nos jornais da tarde, emitem doutas opiniões a respeito do helicóptero da Polícia Civil que metralhou o telhado dos prédios na Favela da Maré ou da Viúva Negra que já assassinou seis maridos. Trata-se de colocar a velha, porém teimosa, pergunta da esquerda radical: como é que as massas exploradas, violentadas, controladas, sistematicamente exterminadas, podem se tornar sujeito de seu destino, desconstruindo as múltiplas formas de espoliação – econômica, espacial, cultural etc. – e abolindo a necessidade do controle repressivo estatal?

No quadro de crise em que nos encontramos, ou nos esforçamos por responder a essas perguntas – algo que, obviamente, não é tarefa nem da “gestão” nem da teoria – ou compactuamos com a normalização da administração armada da vida social.

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