Direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Entrevista especial com Telia Negrão

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

29 Fevereiro 2012

Para a cientista política Telia Negrão, não há efetiva separação entre Estado e Igreja, “pois vivemos numa sociedade muito conservadora, patriarcal, e quase todas as religiões são patriarcais”

Confira a entrevista.

Ao analisar o papel que o Estado exerce sobre o corpo da mulher, Telia Negrão afirma que “o Estado mantém forte controle sobre o corpo das mulheres na medida em que, através das leis e das políticas públicas, se determina o grau de possibilidade das mulheres tomarem as próprias decisões”. Para ela, há uma relação estreita entre democracia e autonomia, sendo essa uma grave contradição no Brasil. “A democracia é bem ampla, mas as mulheres têm vedado o direito de decidir sobre seu corpo. Convivemos com um Código Penal de 1940 que penaliza as decisões reprodutivas, mas neste país se permite a veiculação de músicas que incitam ao estupro, como esta do Teló. Então a falsa moral está disseminada entre nós”, frisa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Já com relação ao papel da religião, a jornalista diz que, embora a Igreja Católica seja forte no Brasil, as evangélicas também são e muito ativas. “Elas monitoram de perto os políticos e cobram deles o apoio que dão nas eleições. Não há efetiva separação entre Estado e Igreja, pois vivemos numa sociedade muito conservadora, patriarcal, e quase todas as religiões são patriarcais”.

Telia Negrão é jornalista, cientista política e coordenadora da ONG Coletivo Feminino Plural. É integrante do Conselho diretor da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Participou da última Sessão do Comitê da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação à Mulher, em Genebra, na Suíça (13 a 17 de fevereiro), aonde levou dados para expor a situação de saúde das mulheres brasileiras.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que mudanças ocorreram na legislação brasileira nos últimos anos, no que se refere às políticas públicas para as mulheres? Qual o papel e a importância dos movimentos sociais e de mulheres nesse sentido?

Telia Negrão – A principal mudança ocorrida no Brasil se deu em 1988, quando a Constituição Federal reconheceu a igualdade de direitos entre homens e mulheres; estabeleceu vários artigos em que as mulheres são sujeitas de uma maior atenção, como no mercado de trabalho e nas relações familiares. Além de um apanhado de leis em todos os campos da vida, destaca-se a Lei Maria da Penha, de 2007, que estabelece a proteção para as mulheres em situação de violência doméstica. Mas é importante ressaltar que, no Brasil, sendo signatário de Convenções Internacionais, estas se transformam em leis nacionais, como a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação à Mulher.

IHU On-Line – Quais eram e/ou são as principais reivindicações das mulheres no que se refere aos seus direitos humanos?

Telia Negrão – O fim de todas as formas de violência e discriminação; a igualdade no mundo do trabalho; o acesso ao poder político; a democratização da vida privada; o direito à saúde e ao livre exercício da sexualidade.

IHU On-Line – Acredita que o Estado tem um controle muito forte sobre o corpo da mulher? Por quê?

Telia Negrão – O Estado mantém forte controle sobre o corpo das mulheres na medida em que, através das leis e das políticas públicas, se determina o grau de possibilidade das mulheres tomarem as próprias decisões. Há uma relação estreita entre democracia e autonomia, sendo essa uma grave contradição no Brasil. A democracia é bem ampla, mas as mulheres têm vedado o direito de decidir sobre seu corpo. Convivemos com um Código Penal de 1940 que penaliza as decisões reprodutivas, mas neste país se permite a veiculação de músicas que incitam ao estupro, como esta do Teló. Então a falsa moral está disseminada entre nós.

IHU On-Line – De que maneira os direitos à sexualidade da mulher estão intimamente ligados ao aborto?

Telia Negrão – Desde o advento da pílula anticoncepcional e sua difusão na década de 1960 criou-se a possibilidade de separação da sexualidade e reprodução. No entanto, além do acesso à contracepção ser algo que somente nas últimas décadas se efetivou, nem toda a gravidez indesejada está ligada à contracepção. Por exemplo, nos casos de violência sexual, não se trata de uma falha reprodutiva. Acaba sendo uma falha quando as mulheres não têm acesso à anticoncepção de emergência. No entanto, vivemos numa sociedade que, apesar de dizer-se avançada, ainda considera que a sexualidade aceita é aquela com fins reprodutivos. Então, é mais aceitável uma mulher que, mesmo não querendo engravidar, tenha filhos indesejados do que uma mulher que decide que não quer ser mãe ou que decide abortar. A sexualidade das mulheres ainda é um campo a ser conquistado e reconhecido.

IHU On-Line – Como avalia a legalização do aborto no Brasil?

Telia Negrão – Esse é um processo de disputa com setores muito conservadores, aliados de outros âmbitos que necessitam de apoio para governar. É um tema que os políticos não gostam de tocar, a não ser quando o que está em jogo é colocar o adversário ou adversária em posição defensiva. Embora o Brasil seja um Estado laico, as religiões exercem profundas pressões, como vimos na última eleição em que a candidata Dilma foi acuada. Ademais, hoje a principal política pública para as mulheres não leva em consideração a autonomia reprodutiva das mulheres e ainda cria um Cadastro Compulsório para a Gravidez. Atualmente não há nenhum projeto em debate para legalizar o aborto no Brasil, nem para descriminalizar, já que são duas coisas bem diferentes. Há uma ação sobre anencefalia no Supremo Tribunal Federal – STF há sete anos esperando por julgamento. Enquanto isso, as 600 mulheres que têm fetos com anencefalia todos os anos no Brasil são obrigadas a pedir autorização judicial ou levar a gestação até o final, mesmo sabendo que o bebê vai morrer. Não existe nenhum caso registrado pela ciência de sobrevivência de anencéfalo.

IHU On-Line – De que maneira a mulher pode ter acesso e assistência à saúde integral e ter assegurado seus direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos?

Telia Negrão – Em primeiro lugar, lutando para que a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Mulheres seja novamente recolocada no centro das políticas públicas. Outras formas são: a participação ativa nos conselhos de saúde e conselhos da mulher; em organizações de base ou do nível que queiram, não importa. A saúde é um direito que se conquista todos os dias. As usuárias do Sistema Único de Saúde – SUS precisam tomar consciência da necessidade de exigir um bom e adequado atendimento às suas demandas, não abrindo mão de serem vistas como cidadãs e mulheres na sua diversidade.

IHU On-Line – Como vê o papel da Igreja na definição das políticas públicas para as mulheres? Acredita que a religião tem um controle muito forte sobre o corpo da mulher?

Telia Negrão – Embora a Igreja Católica seja forte no Brasil, as evangélicas também são e muito ativas. Elas monitoram de perto os políticos e cobram deles o apoio que dão nas eleições. Não há efetiva separação entre Estado e Igreja, pois vivemos numa sociedade muito conservadora, patriarcal, e quase todas as religiões são patriarcais. Creio que as religiões vêm prestando um mau serviço à sociedade quando se colocam como donas da verdade sobre tudo; são donas de tudo que se pensa sobre vida e morte. Há uma enorme mistificação em torno de eventos reprodutivos, que poderiam ser tratados de uma forma mais simples. O aborto inseguro, por exemplo, é um problema de saúde pública, não tem que discutir, tem que acabar com o aborto inseguro, assegurando o acesso à educação sexual, planejamento produtivo, anticoncepção de emergência, informação, acesso ao misoprostol e ao aborto seguro; ampliação do conceito de saúde, de malformação fetal grave... Enfim, a solução pode ser no âmbito da saúde até, por exemplo, 12 semanas, como no Distrito Federal do México. Depois disso descriminalizado, podemos começar a discutir outros temas.

IHU On-Line – O que a Rede Feminista de Saúde pretende fazer para levar a discussão das políticas públicas para as mulheres à sociedade?

Telia Negrão – Continuar a evidenciar que esse é um problema de saúde pública, de direitos humanos e de injustiça social. E também desmascarar a falsa moral dos argumentos trazidos pelas religiões. Religião deve ter poder sobre seus adeptos e não sobre o Estado e as políticas públicas.

IHU On-Line – Em que sentido a senhora diz que houve uma retração na atenção integral à saúde da mulher?

Telia Negrão – Porque há três anos a área técnica de saúde da mulher do Ministério da saúde vem sendo desmontada, assim como a Comissão Nacional de Morte Materna e outras estratégias importantíssimas. Após esse desmonte, fragilização de recursos humanos e materiais, a política prioritária é a Rede Cegonha, uma estratégia evidentemente materno-infantil. Os temas de saúde integral passaram a ser tratados de forma fragmentada, focalizados no câncer de mama e de útero. Isso não é política de atenção integral, é um cesto de medidas que nem de longe têm em consideração a diversidade das próprias mulheres.

IHU On-Line – Qual o papel do Sistema Único de Saúde – SUS no que compete às políticas públicas para as mulheres? Como avalia seu papel na defesa da qualidade de vida das mulheres?

Telia Negrão – O SUS é por onde as políticas são asseguradas, é por onde a atenção deve ser assegurada com qualidade. Temos um grande apreço pelo SUS. Ele é, sem dúvida, o maior sistema de saúde universalizado e público do mundo, mas isso não significa que tenha qualidade. Não tem. Não é só o problema do acesso, mas da qualidade da atenção, o que acaba levando mulheres a adoecer e morrer por razões evitáveis, haja vista a morte materna, que é evitável em 98% dos casos. Infelizmente as decisões do SUS são muito lentas, tudo precisa ser pactuado entre união, Estados e municípios. Enfim, as políticas podem ser excelentes, mas não chegam aonde as mulheres vivem.

(Por Thamiris Magalhães)

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Entrevista especial com Telia Negrão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU