Junho de 2013 e o avanço da Tarifa Zero no Brasil. Artigo de Thiago Trindade

Foto: Gianluca Ramalho Misiti | Flickr

09 Janeiro 2024

"O fato concreto é que abriu-se uma janela de oportunidade histórica para que o debate sobre a tarifa zero se popularize e se difunda cada vez mais. (...) No Brasil, é visível que a discussão sobre a necessidade de mudança no modelo de mobilidade urbana começa a ganhar espaço (ainda que discreto) até mesmo no âmbito da mídia burguesa, justamente em função da pauta ambiental".

O comentário é de Thiago Trindade, professor do Instituto de Ciência Política da UnB, pesquisador do Observatório das Metrópoles e ativista da rede BrCidades, em artigo publicado por Jornal GGN, 05-01-2024. 

Eis o artigo.

Há mais de 10 anos, em junho de 2013, quando jovens militantes do Movimento Passe Livre (MPL) saíram às ruas para reivindicar a redução do preço da tarifa de transporte público em diversas cidades, a sociedade brasileira passou a tomar conhecimento da existência de uma pauta que, naquela altura, parecia apenas uma utopia: a gratuidade universal no transporte público.

Muito embora as manifestações tenham sido iniciadas com a finalidade de reduzir o valor das tarifas, ou seja, uma meta imediata e “pragmática”, a visibilidade conquistada pelo MPL permitiu a vocalização da pauta da tarifa zero nos mais diversos meios de comunicação, viabilizando o avanço de um debate que já tinha precedentes importantes – incluindo experiências concretas de implementação.

Cabe destacar, neste sentido, a tentativa da gestão petista de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo no começo da década de 1990 para implementar a medida na capital paulista, encabeçada pelo Secretário Municipal de Transportes, o engenheiro Lucio Gregori. Embora a iniciativa tenha sido barrada pela oposição, o precedente foi aberto.

Segundo levantamento realizado pelo pesquisador e especialista em mobilidade urbana Daniel Santini, o Brasil começa o ano de 2024 com 100 cidades adotando a tarifa zero universal. Em post em uma de suas mídias digitais no dia 4 de janeiro, Santini escreveu: “Chegamos a 100 cidades com Tarifa Zero universal no Brasil. Juntas, têm população de 4.8 milhões. Monte Mor (SP) adotou em 29 de dezembro e foi identificada agora. Com isso abrimos 2024 com Machado (MG), que iniciou em 1º de janeiro, como a 100ª identificada”.

Um elemento que chama a atenção nesse quadro: conforme texto recente de Daniel Caribé (outro importante especialista no tema), embora a demanda pela tarifa zero tenha se nacionalizado sobretudo graças às mobilizações de movimentos situados à esquerda do espectro político, grande parte das cidades que vem adotando esta política são governadas por partidos mais alinhados à direita.

Ilustrativa deste cenário foi a iniciativa do atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), que ainda em 2022 solicitou à Secretaria Municipal de Transportes um estudo sobre a viabilidade da implementação da tarifa zero na cidade. Em meados de dezembro de 2023, o prefeito anunciou a implementação da política de passe livre aos domingos na capital paulista. E mais: Nunes já afirmou que, caso seja reeleito este ano, pretende implementar a tarifa zero em definitivo na maior cidade do país.

Em suma: uma pauta originária de setores de esquerda parece estar sofrendo um processo de “captura” por grupos mais alinhados à direita. Até mesmo os empresários do setor de transportes urbanos, historicamente avessos à ideia da gratuidade, começam a enxergar a proposta da tarifa zero com outros olhos. Nesse caso, a questão está mais diretamente relacionada ao modelo de financiamento do transporte público ainda hegemônico na ampla maioria das cidades brasileiras, cuja crise foi drasticamente acelerada pela pandemia a partir de 2020 – fato bem explicado pelo já mencionado texto de Daniel Caribé. O empresariado, portanto, tem razões um tanto quanto pragmáticas para “defender” o modelo da tarifa zero – desde que, claro, continue lucrando como sempre lucrou.

Mas a pergunta que fica é: por quais razões vários políticos de direita estariam interessados no avanço dessa pauta? É claro que a resposta passa pela capitalização dos inevitáveis ganhos eleitorais, uma vez que a gratuidade do sistema de transporte é um tema que interessa diretamente a parcelas consideráveis do eleitorado de prefeitas/as e governadoras/es, ou de aspirantes a esses cargos.

Mas não é apenas isso. Ao encampar a bandeira da tarifa zero, políticos e partidos de direita serão provavelmente capazes de esvaziar, ou pelo menos desidratar, a dimensão ideológica do debate relacionado à essa pauta, que passa necessariamente pela discussão sobre o direito à cidade. Pensar e lutar pelo direito à cidade em uma perspectiva efetivamente emancipatória significa (dentre outras questões) ir muito além da tarifa zero; pressupõe lutar por uma mudança drástica na forma como o transporte público é concebido e oferecido como serviço à população trabalhadora.

Ora, é evidente que esta dimensão mais profundamente transformadora embutida na ideia da tarifa zero não é uma agenda para os grupos dominantes – nem para os partidos de direita, nem para o empresariado.

Independente desta constatação, é preciso reconhecer que o avanço desta política pelo território nacional é um ganho em várias dimensões, dentre as quais vale destacar algumas:

i) socioeconômica, pois permite um incremento na renda da população mais pobre, uma vez que esta deixará de arcar com os custos diários do transporte;

ii) ambiental, pois tende a reduzir a emissão de gases poluentes ao diminuir o número de automóveis em circulação, contribuindo também para desafogar o trânsito e diminuir o número de acidentes;

iii) cultural, uma vez que uma parte considerável dos cidadãos e das cidadãs terá mais possibilidades de circular pelo território urbano e usufruir da cidade.

Logo, a implementação da tarifa zero, por quem quer que seja, é algo extremamente benéfico para a sociedade, especialmente para a população mais vulnerável economicamente.

Todavia, para que possamos avançar mais concretamente na dimensão transformadora desse processo, é necessário que os grupos, movimentos e partidos de esquerda disputem a pauta da tarifa zero na opinião pública e busquem impor um caráter mais politizado e mesmo radical a esse debate, demonstrando inclusive como esta política tem suas raízes históricas vinculadas às lutas do campo progressista. Importante destacar que esse processo já está em curso. O maior exemplo talvez seja a recente criação da Coalizão Mobilidade Triplo Zero, uma rede de organizações civis que luta por zero emissão de poluentes, zero mortes no trânsito e tarifa zero.

Porém, é fundamental que os partidos do campo progressista incorporem definitivamente esta pauta em seus programas, inclusive colocando o tema em destaque nos debates das eleições municipais deste ano. A criação da Frente Parlamentar em Defesa da Tarifa Zero, em novembro de 2023, é uma iniciativa fundamental nesse sentido, mas é necessário que o tema se torne de fato uma prioridade para os partidos de esquerda e não fique apenas no campo da retórica.

O fato concreto é que abriu-se uma janela de oportunidade histórica para que o debate sobre a tarifa zero se popularize e se difunda cada vez mais. Isso se deve, em grande parte, à crise climática e ao debate sobre as ações necessárias para a preservação da vida no planeta. No Brasil, é visível que a discussão sobre a necessidade de mudança no modelo de mobilidade urbana começa a ganhar espaço (ainda que discreto) até mesmo no âmbito da mídia burguesa, justamente em função da pauta ambiental.

Não podemos, portanto, perder o bonde da história.

Por fim, é preciso reconhecer a importância da luta do MPL e de vários outros coletivos e movimentos pelo transporte coletivo no Brasil para que essa pauta conquistasse a magnitude que tem hoje. Do mesmo modo, é impossível não associar esse processo às Jornadas de Junho de 2013, que teve um papel decisivo para a ampliação do debate não apenas sobre a tarifa zero, mas também sobre o direito à cidade no Brasil. Ao longo de vários anos, muitos ativistas do MPL foram ridicularizados e taxados como “utópicos” e “ignorantes” por defenderem incisivamente a ideia de um sistema de transporte público gratuito. Graças à luta destes/as ativistas, o transporte público foi reconhecido como direito constitucional (incluído no Art. 6° da Constituição Federal de 1988) em setembro de 2015. E, em 2024, a política de tarifa zero já é uma realidade para quase cinco milhões de pessoas no Brasil, melhorando as condições de vida da população trabalhadora e contribuindo para a luta contra a mudança climática. As eleições municipais de 2024 serão de grande importância para alavancarmos ainda mais o debate e avançarmos na consolidação desta pauta junto à sociedade brasileira.

A história do MPL e de sua luta – e de tantas outras que a precederam – é a prova de que vale a pena sonhar e lutar por um mundo mais justo e igualitário.

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