Junho de 2013. Dez anos depois a questão urbana ainda não é prioridade de governo. Entrevista especial com Roberto Andrés

Para o arquiteto, falta um entendimento de que negar o direito à cidade é catalisar as desigualdades de um país como o Brasil. É isso também que impede a compreensão plena das manifestações que pararam o país

Foto: Gianluca Ramalhomisiti | Flickr_CC

Por: João Vitor Santos | 21 Junho 2023

Desde que D. João VI chegou ao Brasil, fala-se que as cidades receberam transformações urbanas. É bem verdade que desde os tempos da colônia até o século XX as cidades brasileiras avançaram muito em termos de urbanização. No entanto, o que parece ter avançado bem pouco é o entendimento da relação entre a cidade e a cidadania. Para o arquiteto e urbanista Roberto Andrés, as desigualdades que se manifestam na cidade é como um catalisador de todas as desigualdades que vivemos. “A sociedade vive em cidades, e as cidades refletem essa desigualdade e as reforçam. O esquema construído no Brasil, de bairros precarizados na assistência às periferias que estão em torno de áreas centrais bem providas de infraestrutura e serviços, é um esquema que sempre serviu para manter uma segregação e uma lógica de exclusão presentes na cultura e na sociedade brasileira”, analisa.

Na entrevista a seguir, concedida via WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Andrés aponta este tema como central para compreender as manifestações que pararam o Brasil em junho de 2013. É o que chama de “atravessamento entre mobilidade urbana e revoltas sociais”, algo histórico no Brasil. “Revoltas pelo aumento tarifário, pelas más condições de transporte, são muito antigas no país. A primeira delas aconteceu em 1880, que foi a Revolta do Vintém”, exemplifica. Mas em 2013 a reivindicação de transporte público de qualidade e com preço acessível tomou outras proporções, sendo capaz de agregar uma série de lutas contras outras desigualdades.

Neste 2023, quando se faz memória das marchas, muito tem sido falado, mas, para Andrés, bem pouco ainda é compreendido sobre aquele momento. “A sociedade brasileira, os analistas, a imprensa, a classe política, ao fim de cada um destes levantes, dizia: ‘isso aí é um bando de arruaceiros. São bandidos, inconsequentes que estão depredando o patrimônio público e isto não tem validade política’. E, desta maneira, a sociedade brasileira sempre denegou a questão da desigualdade urbana, da má condição de vida nas periferias das cidades e das péssimas condições de circulação do transporte. Deste modo, o transporte não foi colocado como um problema de primeira ordem para o país”, pontua.

Não foi e continua não sendo. Andrés reconhece os grandes avanços do governo Lula III nestes seis meses de gestão aproximadamente. Porém, lamenta que ele “não incorporou a questão urbana, que é estrutural e que acaba atravessando os demais fatores da desigualdade brasileira (…) A pessoa que passa duas horas no transporte público pode ter uma melhoria de vida com o aumento de salário, mas ela não vai se emancipar se esse esquema cotidiano de deslocamento preconizado não for melhorado. A pessoa que não tem oportunidades nos seus bairros de espaços públicos, de serviços públicos de qualidade, nunca terá as condições de ascensão social necessárias para, de fato, estruturar uma outra escala na sua vida”, explica.

Uma prova de que o atual governo parece ainda não ter compreendido isto, segundo o arquiteto e urbanista, são as opções que tem feito. “A priorização de recursos públicos para a compra de automóvel não é sustentável em nenhum sentido. Não é possível que a população mais pobre pague esses automóveis. Não é sustentável ambientalmente, não é sustentável da perspectiva do trânsito e a proliferação de automóveis prejudica, sobretudo, os mais pobres que são os mais afetados pela poluição do ar, pelos acidentes e pelos congestionamentos que atrasam o transporte público”, observa. E dispara: “o investimento em transporte público, a busca pela tarifa zero, é uma política emancipadora que o governo federal não adotou. Enquanto não adotar, nós seguiremos nessa espiral de degradação das condições de vida nas cidades”.

Roberto Andrés (Foto: Reprodução | Twetter)

Roberto Andrés possui graduação e mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Também é doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP. Atua como professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, pesquisador do grupo Cosmópolis (CNPq) e revisor do periódico Journal of Public Spaces. É coorganizador dos livros Guia morador (2013), Escavar o futuro (2014) e Urbe urge (2018). Recentemente, lançou A razão dos centavos: crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013 (Zahar, 2023). Também foi um dos fundadores da revista Piseagrama e seu coeditor entre 2011 e 2020.

Confira a entrevista.

IHU – Dez anos depois, podemos afirmar que já compreendemos “a razão dos centavos” que deram a largada nas marchas de Junho de 2013?

Roberto Andrés – Quem se dedica à pesquisa séria sobre Junho de 2013, e a questão urbana com seu atravessamento com a política, tem sido capaz de jogar luz sobre a questão daqueles protestos e sobre a questão do transporte. Existe um atravessamento entre a mobilidade urbana e as revoltas sociais que eclodem de tempos em tempos no Brasil. Revoltas pelo aumento tarifário, pelas más condições de transporte, são muito antigas no país. A primeira delas aconteceu em 1880, que foi a Revolta do Vintém.

Depois vieram várias outras, um ciclo de levantes em 1909, 1930, 1946, depois na década de 1950 no Rio de Janeiro, anos de 1970 e 1980 em várias capitais. Todos estes levantes populares de baixa organização ocorram sempre subitamente, de forma avassaladora, produzindo grandes quebra-quebras, surpreendendo o poder político e os analistas, pois ninguém esperava revoltas daquele tipo e, ao final, a sociedade brasileira sempre lidou com eles com mecanismos de denegação.

De certa forma, a sociedade brasileira, os analistas, a imprensa, a classe política, ao fim de cada um destes levantes, dizia: “isso aí é um bando de arruaceiros. São bandidos, inconsequentes que estão depredando o patrimônio público e isto não tem validade política.” E, desta maneira, a sociedade brasileira sempre denegou a questão da desigualdade urbana, da má condição de vida nas periferias das cidades e das péssimas condições de circulação do transporte. Deste modo, o transporte não foi colocado como um problema de primeira ordem para o país.

“Não era por 20 centavos”

Quando veio o ciclo de revoltas que desembocou em 2013, que havia começado lá em 2003 em Salvador, foi mais um ciclo denegado. Em junho de 2013, quando a coisa explodiu, as pessoas disseram: “ah, não era por 20 centavos”. Na verdade, o Brasil sempre disse isso, que “não era por 20 centavos”, sobre os diversos ciclos de levantes anteriores.

Esta forma de denegação é um dos principais elementos que impedem a compreensão daquele problema. Afinal de contas, não era tão difícil assim entender. A pesquisa do Ibope em 20 de junho, o dia de maior volume de manifestantes nas ruas – em que muitos acusaram a entrada da direita em campo, quando as pautas se diluíram –, constatou que 37% dos manifestantes disseram que estavam nas ruas pela questão do transporte. A revolta de 2013 é a revolta dos centavos. A principal razão dela é a questão do transporte público. E isso não é minha opinião, são mensurações feitas pelo instituto de pesquisa.

As outras pautas realmente surgiram. No entanto, como a classe política e os analistas costumam dar mais valor às pautas que estão mais habituados, como a questão da corrupção, etc., muitos dizem hoje que a corrupção se tornou a principal razão. Mas não é o que os números mostram.

IHU – Quais os desafios para compreendermos a complexidade de Junho 2013 a partir da perspectiva da vida urbana? Aliás, afirmar que a pauta dos 20 centavos foi central no contexto das marchas seria um reducionismo?

Roberto Andrés – A conformação territorial urbana é central na vida política e social no Brasil. E isso é pouco compreendido. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, essa sociedade extremamente desigual não está forjada em torno de um espaço plano e geométrico. A sociedade vive em cidades, e as cidades refletem essa desigualdade e as reforçam. O esquema construído no Brasil, de bairros precarizados na assistência às periferias que estão em torno de áreas centrais bem providas de infraestrutura e serviços, é um esquema que sempre serviu para manter uma segregação e uma lógica de exclusão presentes na cultura e na sociedade brasileira.

O déficit histórico de cidadania no Brasil sempre operou junto com uma desigualdade urbana que estrutura, na vida cotidiana, esse déficit. Quando, nos últimos 40 anos, o Brasil caminhou para uma redemocratização, para um maior acesso das classes populares a renda, educação, serviços de saúde, o Brasil foi elevando o patamar das expectativas e aspirações. Começa emergir uma geração para quem esse déficit de cidadania não é mais uma opção. São pessoas que passam a aspirar uma vida coletiva com patamares de igualdade de condições maiores.

No entanto, as cidades brasileiras continuam amarradas ao velho esquema da sociedade sem cidadãos. E esse choque ocorreu em 2013, não só em junho, mas naquele ciclo de lutas e protestos que aconteceram entre 2010 e 2013. É um ciclo de movimentos que passaram a reivindicar o uso de espaços públicos, a melhoria do transporte público, a preservação de parques e áreas verdes, melhoria das cidades, redução de automóveis, tudo isso diz respeito a uma forma de vida democrática que passa a ser aspirada por um conjunto cada vez maior de atores.

Uma parte disso desemboca no mês de junho de 2013, principalmente na luta pelo transporte e em outras reivindicações que foram colocadas ali. O descompasso entre uma cidadania que elevava seu patamar, uma nova geração que passava a aspirar por formas de vida baseadas em direitos e um país que não era capaz de entregar nada neste sentido, foi o que produziu a série de choques e conflitos daquele período. Mas, para que haja compreensão disso, é preciso colocar a vida urbana dentro da equação em que se analisa a política e, infelizmente, isso é muito pouco feito no Brasil de hoje.

IHU – Em que medida a explosão de 2013 ressignificou a pauta progressista? Ou, na verdade, nunca ressignificou?

Roberto Andrés – 2013 trouxe para a rua uma miríade de pautas que são aprofundadas. São debates progressistas presentes no debate constituinte, na Constituição de 1988. A maior parte das aspirações e reivindicações estava em torno do transporte, mas havia também reivindicações em torno de serviços públicos de educação e saúde. E um terceiro grupo de reivindicações, que era o de oposição à Copa do Mundo. Ainda, houve um quarto grupo de reivindicações de demandas anticorrupção. Além disso, vimos outros grupos menores e um deles, que não foi tão pequeno, foi das pautas progressistas, feministas, LGBTQIA+, ambientais, etc.

Todo esse conjunto de demandas trouxe uma atualização das pautas da esquerda, colocando no centro da agenda questões ligadas às formas de vida, não superando, de certa maneira, mas dando um passo adiante em relação às lutas restritas ao campo econômico-financeiro. Assim, vão trazendo à tona lutas por formas de vida que dizem respeito à desigualdade cotidiana. O transporte, elas dizem respeito a uma desigualdade diária, em que a maioria da população mais vulnerável precisa se sujeitar a horas de transporte precário, enquanto a elite pode se deslocar tranquilamente em seus automóveis, em trajetos mais curtos.

A ausência de serviços públicos de educação e saúde de alta qualidade impede que a população mais vulnerável acesse itens elementares para sua vida. Enquanto a elite paga opções privadas. As pautas feministas, LGBTQIA+, antirracistas e ambientais dizem respeito a setores da sociedade que são historicamente vulnerabilizados em benefício de outros que mantêm seus privilégios.

É importante entender que todas essas agendas são agendas contra desigualdades, contra a opressão e contra o privilégio de alguns poucos. Mas elas não tratam necessariamente de finanças. É por isso, talvez, que uma parte da esquerda tenha dificuldade de entendê-la. Agora, não se pode negar que elas são agendas emancipadoras e redutoras que buscam reduzir a desigualdade.

IHU – Junho de 2013 não foi um evento isolado no mundo. Qual a incidência de outras marchas pelo mundo no movimento brasileiro? Como analisa o rescaldo de todos esses movimentos globais?

Roberto Andrés – As revoltas de junho de 2013 fizeram parte de um ciclo global de revoltas iniciado em 2011, que atravessou países da Europa, os Estados Unidos e, por fim, chegou à América Latina. Essa onda de revoltas responde a uma situação de crise econômica e de déficit de democracia, principalmente nos países europeus, nos Estados Unidos e nos países latino-americanos. De certa maneira, uma série de insatisfações da sociedade se mostrou muito forte naquele momento e cada um desses ciclos de protestos buscou responder, dentro do contexto local, a essas insatisfações presentes e espalhadas pela sociedade.

Depois desse ciclo de revolta, poucos desses problemas são encaminhados e a maior parte dos problemas permanece. E as insatisfações difusas também permanecem. Na primeira metade da década passada havia uma movimentação progressista que buscava a resposta a esses problemas. Só que a ausência de encaminhamentos efetivos abriu espaço para que, na segunda metade da década, surgissem soluções autoritárias de extrema-direita que foram capazes de mobilizar as insatisfações. Isso não é uma especificidade do Brasil. A extrema-direita, emergindo a partir de 2015/2016, é um fenômeno global.

No entanto, no Brasil muita gente trata esse ciclo como se a manifestação da primeira metade da década tivesse alguma relação de causa com a ascensão da extrema-direita. Essa é uma abordagem “tipo jabuticaba”, já que ela não existe em outros países. Ninguém nos Estados Unidos diz que o Occupy Wall Street foi o responsável pela emergência de Donald Trump. Ou, ainda, ninguém na Espanha afirmará que o 15M foi o ovo da serpente que chocou a extrema-direita do partido Vox. Ou, tampouco, no Chile, dirão que aquelas acampadas de 2011 foram o germe do fascismo que está presente na extrema-direita do país.

Essa abordagem não faz nenhum sentido, tanto que ela não é adotada em nenhum outro país. Não se culpa o sintoma pelo problema que permanece. É como se você culpasse a febre pela doença que está cometendo o paciente.

IHU – Em Junho 2013, se alguém falasse em extrema-direita, ninguém saberia do que se tratava. Como e quando as marchas de 2013 e a extrema-direita se cruzam?

Roberto Andrés – Para o livro “A razão dos centavos”, eu fiz uma pesquisa extensa, reproduzindo um acervo de mais de 6.000 cartazes que foram expostos nas ruas de 2013. O objetivo do estudo era confirmar e buscar jogar luz sobre o que de fato estava sendo dito nas ruas.

Pesquisa de Roberto Andrés, que culminou em seu livro de 2023. | Foto: divulgação

Como classifiquei esses cartazes? Eles são expressos em quatro principais grupos, a questão do transporte é o maior deles, depois da questão da Copa do Mundo, da corrupção e dos serviços públicos de qualidade. Esses são os quatro grandes grupos de reivindicações, mas, por fim, há uma série de reivindicações menores e que também têm sua especialidade. É o caso da questão feminista, da questão LGBTQIA+ e da questão ambiental, da pauta indígena, da pauta da aversão às mídias, da pauta contra a violência policial e há muitos e muitos cartazes que pedem mais participação, mais democracia.

Agora, não há em 2013 nenhum cartaz pedindo a volta da ditadura. A ditadura é rechaçada ali. Em todo esse acervo, não há nenhum cartaz pedindo intervenção militar. Essa palavra não existia naquele período. Vemos pouquíssimos discursos de ódio. Eu encontrei no acervo todo cerca de 10 cartazes com discurso de ódio, isso em mais de 6 mil.

E aquela também não era uma agenda contra o PT. E isso se vê nos cartazes, se vê nas pesquisas de opinião. Então, a extrema-direita não teve participação naquele ciclo ou, se teve, foi minúscula, concentrada em poucos grupos organizados em São Paulo, mas que não conseguiu prevalecer no imaginário popular, nem se expressar na multidão de manifestantes avulsos que levaram seus cartazes para a rua.

Achatando um período histórico

O que muitos analistas fazem, hoje, é achatar um período histórico, ignorando o que aconteceu nos 18 meses seguintes ao Junho de 2013, elevando a agenda que emergiu a partir de 2015 e sobrepondo-a sobre o que havia em 2013. Esse é um processo parecido com aquela mecânica da dupla exposição de fotografia que ficou conhecida recentemente pela fotografia de Lula, com um vidro estilhaçado sobre seu peito.

Foto que estampou a capa da Folha de S.Paulo em janeiro e suscitou o debate não só por sugerir que Lula havia sido atingido por um tiro, mas por ser fruto de uma manipulação de edição de imagem. | Imagem: reprodução Folha de S.Paulo

Trata-se de colar uma imagem sobre a outra para produzir uma outra interpretação, uma interpretação nova dos fatos. No Brasil, a extrema-direita emerge de um processo posterior. Não diz respeito ao esmagamento das linhas de fuga de 2013.

IHU – Como podemos compreender o Movimento Passe Livre? Que análise faz do movimento hoje?

Roberto Andrés – O Movimento Passe Livre significou um momento novo na luta pelo transporte no Brasil. Até meados da década de 1980, os grupos que lutavam pelo transporte ainda eram principalmente grupos populares, de baixa organização, que rompiam com suas revoltas de tempos em tempos. Naquele momento, começa uma nova geração de movimentos pelo transporte, ligados a uma nova esquerda que emergia no país.

Nos anos 2000, essa esquerda organizada que reivindica a questão da mobilidade urbana tem uma atualização com a entrada em campo dos setores ligados ao autonomismo de grupo, como movimentos estudantis que chegaram no Movimento Passe Livre em 2005, fundado no Fórum Social Mundial em janeiro de 2005. O Movimento Passe Livre também é um avanço de organização de grupos que já estavam se organizando localmente e que foram expressos na Revolta do Buzu, em Salvador, em 2003, que foi um movimento grande; nas Revoltas da Catraca, de Florianópolis, em 2004 e 2005, que também foram movimentos expressivos, em diversos outros grupos que passavam a se organizar nas cidades. Essa organização do Movimento Passe Livre deu uma estrutura nacional às lutas pelo transporte no Brasil.

A questão do transporte entra em grande deterioração no início do governo Dilma, fruto da ausência de políticas para o setor nos governos petistas, e também devido ao grande incentivo de automóveis. Já havia muitos grupos no país organizados em torno da questão do transporte. Uma parte estava federada no Movimento Passe Livre, outra parte tinha atuação local, marcada principalmente pelos Blocos de Luta, que eram coalizões locais compostas por diversos movimentos dedicados a fazer determinada mobilização.

A grande organização do Movimento Passe Livre, de São Paulo, foi o que produziu a força daquelas manifestações também. Estamos falando de um movimento que trabalhava incansavelmente, que se organizava e planejava estrategicamente com muita experiência e que tinha grande capacidade de articulação entre atores da cidade, lideranças sociais e movimentos estudantis. Então, não foi por acaso que eles conseguiram causar todo aquele barulho em São Paulo.

Limites

No entanto, as próprias táticas e os próprios princípios vindos do campo autonomista, que prevaleceram nesse movimento, também apresentaram alguns limites nas diversas iniciativas que lutaram pelo transporte no Brasil no pós-2013. Se essas táticas foram importantes para agregar muita gente e produzir manifestações mais poderosas, mais abertas para o público como um todo, de outro lado essas táticas também apresentaram dificuldades em manter a liderança dos protestos ou manter uma certa condução dos protestos quando a pauta explodiu.

E, também, há a dificuldade de produzir desdobramentos institucionais na pós-movimentação. É algo que diz respeito aos próprios métodos e princípios que estavam ali colocados, e que abriam e traziam essa dificuldade.

Apontar os limites não significa reduzir a importância do Movimento Passe Livre. Foi um movimento central na história do Brasil, na história da luta pelo transporte, que foi capaz de elevar a agenda do transporte da mobilidade urbana para um patamar ao qual ela nunca havia chegado. E isso não é pouco.

IHU – O seu livro “A razão dos centavos” conduz o leitor por três momentos: antes, durante e depois, tendo como marco Junho de 2013. Essa é uma narrativa de quem viveu cada um destes tempos? O que essa experiência lhe deixa de legado?

Roberto Andrés – A organização do livro diz respeito a três aspectos que seguem pouco compreendidos depois de 2013: as razões, as características e os desdobramentos. As razões de junho seguiram muito mal compreendidas, especialmente devido a esse mecanismo de delegação da questão urbana e da questão do transporte na centralidade que tem na vida social e política. A dificuldade de compreender as características de Junho de 2013 dizem respeito a essa diversidade de fato, de manifestantes e de agendas que entrou nas ruas. E como a compreensão hegemônica no Brasil não foi capaz de colocar a pauta do transporte como guarda-chuva disso tudo – embora ela tenha sido a pauta, como vimos, de maior relevância para os manifestantes –, nós não consolidamos no debate coletivo uma agenda principal para as movimentações de junho. Isso faz com que elas sigam sob disputa e sobre análise ainda 10 anos depois.

Os desdobramentos dizem respeito a um processo muito mal debatido no Brasil, que coloca aquele ciclo de imobilizações não como sintoma, não como ponto de inflexão, mas como origem de todos os males do país, como se fosse uma espécie de pecado original. Vivemos no Paraíso da República do Real e esse pecado original nos legou os piores caminhos possíveis, em que todos os atores são responsabilizados por suas ações no período seguinte. Somente um evento é o culpado de todos esses males.

Essa interpretação infantil, que ainda hoje prevalece, precisa ser contraposta por uma análise mais objetiva e sensata dos acontecimentos. Não é possível buscarmos explicações de base factual para os acontecimentos que vivemos no país. Então, a terceira parte do livro examina os últimos 10 anos a partir de um encadeamento causal entre diversas ações de diversos atores, e não pela simplificação de escolha de um bode expiatório para os problemas que vieram.

IHU – Voltando à pauta da mobilidade urbana, o quanto avançamos em termos de políticas públicas pós-2013? Como está hoje a implantação do passe-livre no país?

Roberto Andrés – É muito raro um ciclo de protesto, de mobilização, produzir mudanças institucionais imediatas. Muito mais comum é que esses ciclos, historicamente, produzam mudança de mentalidade. Ou seja, que levem ideias que eram vistas como utópicas para o campo do possível. Esse é um argumento apresentado no livro baseado em autores que tratam desse tema.

Isso pode ser muito bem exemplificado com o que aconteceu na pauta da tarifa zero em 2013. Ela era uma agenda vista como irrealista naquele momento; hoje temos 74 cidades no país com tarifa zero. Antes de junho, eram 10 ou 12. A população atendida era de 300 e poucas mil pessoas. Hoje são 3,5 milhões.

A pauta caiu na boca dos políticos mais conservadores, que perceberam que ela é uma agenda positiva. Só a esquerda não abraçou essa agenda ainda (a esquerda no governo federal). Da mesma maneira, os movimentos e os grupos que se articulam pela mobilidade urbana e pela tarifa zero, apesar de toda a repressão que sofreram nos últimos anos, conseguiram ampliar sua capacidade de organização e fizeram, por exemplo, uma grande mobilização em torno da questão do passe livre nas eleições de 2022. O que contribuiu para produzir uma redução de abstenções naquela eleição. Pela primeira vez na história do país, no segundo turno, houve menos abstenção do que no primeiro turno. E, com essa redução, segundo a pesquisa do Valor Econômico, as cidades que tiveram tarifa zero no segundo turno chegaram a 0,4% menos de abstenções do que as que não tiveram.

Essa contribuição foi crucial para que os eleitores mais pobres pudessem votar. Eleitores mais pobres, que rejeitavam o então presidente da República, foram capazes de serem o fiel da balança de uma eleição muito apertada. Assim, esse é o avanço da pauta da tarifa zero nos últimos anos, sendo muito possivelmente o principal legado daquele ciclo de imobilizações.

IHU – Tendo em perspectiva a atual conjuntura, já encontramos nossas “flores no deserto”? E quais caminhos ainda precisamos percorrer para transformar esses campos desérticos em agriculturáveis?

Roberto Andrés –Flores do deserto” é o título de um dos últimos capítulos do livro, que busca mapear os desdobramentos políticos progressistas no campo, na sociedade e na política institucional do ciclo de levante em 2013.

De certa maneira, nós estamos tratando de um ciclo de levantes que expressava uma insatisfação de fundo com a forma de vida hegemônica no país e com suas relações com a política e o econômico, que acabaram colocando questões no centro da agenda. Hoje, essas questões passaram a habitar, inclusive na política institucional, com força muito maior do que tinham a questão feminista, a questão ambiental, a questão indígena, a questão LGBTQIA+. Todas essas são questões que estavam expressas nas ruas de 2013 e que tiveram um salto muito grande, tanto na sociedade quanto na política institucional, no campo progressista.

Este capítulo olha para os desdobramentos que aconteceram nas revoltas dos secundaristas, nos movimentos feministas de 2015, nos movimentos de ocupação da política e na renovação de atores políticos. Mas o deserto brasileiro é grande, até porque a crise que veio em seguida, resultante da concatenação de movimentos de diversos atores, nos deixa um saldo pavoroso e um cenário de grande destruição, acirrado com o governo de Jair Bolsonaro. A recuperação do país, o florescimento e o fortalecimento de novos grupos no campo da política em diversos aspectos ainda precisam ser muito incentivados, semeados para que se desdobre, com a força necessária, no próximo período.

Não é uma tarefa fácil. E o país segue com o desafio, já apresentado em 2013, de um enfrentamento da forma política em que o Centrão tem as chaves do cofre sob muito pouco escrutínio público. Este desafio segue existindo no deserto da política brasileira.

IHU – Pelos movimentos vistos nestes seis meses, o governo Lula aprendeu algo com 2013? Ou as incompreensões do governo Dilma ainda residem nesta nova administração progressista?

Roberto Andrés – Em relação aos governos anteriores, o governo Lula apresentou avanços importantes em pautas como a questão feminista, a questão antirracista, a questão ambiental e a questão indígena. São pautas que se fortaleceram na esquerda nos últimos anos e que, no novo governo Lula, se soube explorar.

No entanto, ele não incorporou a questão urbana, que é estrutural e que acaba atravessando os demais fatores da desigualdade brasileira. Ela não ocorre somente no aspecto econômico; a desigualdade territorial estrutura as demais desigualdades. A pessoa que passa duas horas no transporte público pode ter uma melhoria de vida com o aumento de salário, mas ela não vai se emancipar se esse esquema cotidiano de deslocamento preconizado não for melhorado. A pessoa que não tem oportunidades nos seus bairros de espaços públicos, de serviços públicos de qualidade, nunca terá as condições de ascensão social necessárias para, de fato, estruturar uma outra escala na sua vida.

A questão urbana continua sendo um tabuleiro que dificulta ou impede a ascensão social de muitos no Brasil. Por isso é que precisa ser encaminhada como prioridade. Essa percepção ainda não chegou ao novo governo Lula. A priorização de recursos públicos para a compra de automóvel não é sustentável em nenhum sentido. Não é possível que a população mais pobre pague esses automóveis. Não é sustentável ambientalmente, não é sustentável da perspectiva do trânsito e a proliferação de automóveis prejudica, sobretudo, os mais pobres que são os mais afetados pela poluição do ar, pelos acidentes e pelos congestionamentos que atrasam o transporte público.

O investimento em transporte público é emancipador

O investimento em transporte público, a busca pela tarifa zero, é uma política emancipadora que o governo federal não adotou. Enquanto não adotar, nós seguiremos nessa espiral de degradação das condições de vida nas cidades. Parece que a principal pauta de 2013, que é o direito à mobilidade livre para a maioria, ainda não foi absorvida.

Caso esse governo dê certo, partindo da perspectiva econômica e política, e consiga retirar mais uma vez milhões de pessoas da pobreza, essas pessoas não terão uma ascensão social sustentável, baseada no modelo da classe média de planos de saúde privada, educação privada e automóvel particular. As pessoas necessitarão de serviços públicos de grande qualidade, de uma melhor infraestrutura nas cidades, que lhes dê condições de uma vida melhor. Isso não está no radar desse governo.

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