21 Julho 2023
"A arte e a beleza mesmo quando 'seduzem a carne' não produzem só emoções, mas provocam a mente", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 18-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O encontro e o discurso do Papa com os 200 artistas convocados à Capela Sistina em 23 de junho marcam o início de uma nova consciência da relação entre catolicismo e arte. De um arranjo metafísico e neoplatônico a um diálogo sobre práxis, intenções e contradições da arte contemporânea.
Passa-se da beleza da ordem cósmica, reflexo da beleza de Deus, ao gesto, ao acontecimento, ao artefato que, no esteticismo dominante do mercado, mantém uma dimensão crítica de protesto (de profecia), uma abertura inicial ao sentido. Salta-se da harmonia cósmica e da "totalidade" teológica para os soluços e contrastes da fenomenologia concreta.
Na Capela Sistina, a arte “alta” e popular se misturam: do pintor A. Kiefer e do pianista L. Einaudi, ao cantor e compositor L. Ligabue e ao músico A. Rieu.
Longe da sensibilidade estética de Paulo VI, da prática literária de João Paulo II e da competência musical de Bento XVI, Francisco entra em diálogo com uma cultura artística que não precisa de um deus nem sequer da beleza e de seus cânones.
Com base em R. Guardini, o papa identifica o artista como menino e vidente, como criança e profeta. Chamado à criação e à fecundidade, traz à luz o inédito. Partícipe da paixão geradora de Deus sugere ver o que sonhamos. Vocês se assemelham aos profetas, diz Francisco, “chamados a escapar do poder sugestivo daquela suposta beleza artificial e superficial hoje difundida e muitas vezes cúmplice dos mecanismos econômicos que geram desigualdades”.
Capazes de humor e ironia, por vezes feroz, mesmo em relação ao religioso, os artistas são chamados a uma aliança não na base da pertença confessional, mas na defesa do ser humano comum e da sua abertura ao transcendente. “Sinto que vocês são aliados para tantas coisas que me são caras, como a defesa da vida humana, a justiça social, os últimos, o cuidado da casa comum, o sentimento de que somos todos irmãos. Eu me importo com a humanidade da humanidade".
A arte e a beleza mesmo quando "seduzem a carne" não produzem só emoções, mas provocam a mente. Refletem o niilismo da nossa cultura. Em parte denunciam-no, por vezes permanecendo prisioneiras dele. Em parte, abrem-se ao desconhecido, ao outro a quem não dão nome.
Aqui o papa se torna proativo. Pode-se ir além do desconhecido para uma abertura ao transcendente. Viver o desequilíbrio não significa abrir mão da harmonia a ser alcançada, onde as diferenças não são apenas conflitos. “O Espírito é quem cria a harmonia”, a partir das diferenças. Além disso, os artistas devem estar cientes de que “mesmo os pobres precisam de arte e beleza”. “Vocês podem se tornar intérpretes do seu grito silencioso”.
Num contexto em que a mercadoria se tornou sentido e o sentido se tornou mercadoria, em que “você é o que compra e o que olha porque sem o que compra e sem o que olha não seria nada” (J. Braudrillard), o convite do Papa aos artistas é não se contentar em denunciar o vazio, tornando-se funcionais ao naufrágio, não sofrer a dissolução da arte no todo-poderoso domínio da estética, mas aceitar o encontro com o Espírito criador e a aliança com a Igreja para o futuro da humanidade.
É sábio aceitar as provocações. Um crocodilo suspenso verticalmente no centro do batistério de Cremona causa perplexidade, mas também abre a inteligência a “uma meditação eficaz e plástica sobre o tema da voracidade do Ego que, como animal de mandíbulas insaciáveis, necessita de ser apaziguado por uma graça que só pode vir do alto” (G. Zanchi).
Dois casos recentes abrem o diálogo sobre duas possíveis derivas da arte. Seu uso ideológico e distorcido está presente na transferência do ícone da Santíssima Trindade de Rublëv do museu Tretyakov para a catedral de Moscou e depois para a lavra da Santíssima Trindade de São Sérgio. A concessão de Putin, como o entusiasmo de Kirill, respondem à exigência política de consenso em tempos de guerra.
O segundo caso é o debate sobre as obras do artista Marko Rupnik. Afastado da Companhia de Jesus após processos causados pela acusação de abusos, expôs a sua obra, principalmente mosaicos, à polémica sobre a remoção ou não dos seus mosaicos de prestigiosos lugares litúrgicos.
Em 12 de julho, foi assinado em Moscou o acordo para transferir a obra de Andrei Rublëv para a lavra de São Sérgio, local original de sua criação e apresentação. O Patriarca Kirill e o Ministro da Cultura O. B. Lyubimov entraram em acordo sobre a nova localização que durará 49 anos (renovável). A assinatura foi celebrada por Kirill como o encerramento definitivo dos tempos da perseguição comunista e das violências contra pessoas e artefatos então perseguidos.
Mais explícito em 3 de junho passado, um dia antes da colocação do ícone na catedral de Moscou, quando disse: “Um evento tão fatídico, como o retorno da imagem milagrosa da Santíssima Trindade, pintada por Andrei Rublëv, é de particular importância histórica, e não é por acaso que tais eventos ocorrem precisamente neste momento. Tomemo-lo como um sinal da misericórdia de Deus para com o nosso povo, o nosso país, e levantemos fervorosas orações tanto pela nossa pátria como pela nossa Igreja, para que, com a força da divina Providência, o Senhor proteja tanto o povo como o nosso país da invasão estrangeira, das lutas internas e de todo mal”.
É a guerra de invasão da Ucrânia e seu desastroso desfecho que levam Kirill, completamente dobrado ao poder, e Putin a recorrer ao ícone para evitar a desintegração civil. O que resta da inteligência secular no país protestou contra a pouca capacidade de custódia da Igreja de obras de arte extraordinariamente valiosas e extremamente frágeis e, acima de tudo, contra a renúncia do Estado às suas funções (até mesmo o precioso sarcófago de Alexsander Nevky passou para a Igreja).
Uma jornalista muito atenta como Anna Zafesova atribui a transferência à “componente religiosa arcaica” de Putin, que beira a superstição.
Uma testemunha interna da vida eclesial e agora no exílio, S. Chapnin, reforça o parecer de religiosidade primitiva e supersticiosa do presidente. O ícone se torna um ídolo. Afinal, em 2014, no momento da ocupação da Crimeia, Putin queria que ressuscitasse no Kremlin o antigo mosteiro que só a resistência passiva dos arquitetos, convencidos da impossibilidade da operação, deteve.
Os temas históricos (fim das perseguições) e políticos (apoio à guerra) retornam nas palavras de Kirill. Estão ausentes as razões teológicas que, na tradição ortodoxa, reconhecem ao ícone uma realidade quase sacramental. Testemunha de um poder que pode agir sempre e novamente para o devoto que ora. “O ícone é, portanto, um instrumento de participação e de transformação, é o meio pelo qual, como afirma Gregório de Nissa, "tendo se aproximado da luz, a alma se transforma em luz", isso permite ao homem tornar-se um pneumatóforo, um "portador do Espírito", um templo do Espírito, a ponto de participar da natureza de Deus” (S. Tagliagambe).
O governo alocou 60 milhões de rublos para abastecer os territórios ocupados com pequenos ícones. Durante sua visita às tropas, Putin levou e distribuiu ícones dedicados à Ressurreição.
“Os mosaicos de Rupnik recortaram para si um espaço na renovação geral da arte litúrgica e representaram uma das respostas da arte visual capaz de devolver às imagens "devotas" a intencionalidade vital dos ícones. A característica estilística oriental, a renúncia consciente à perspectiva, a convivência entre citações da iconografia oriental e os "sinais" da modernidade, o recurso predominante ao mosaico com a necessidade de pedras originais e a adição de folha de ouro, visam todos exprimir uma teologia consciente do moderno e radicalmente crítica do mesmo”.
As repetidas acusações contra M. Rupnik sobre o tema hoje extremamente sensível dos abusos abriram o debate sobre o que fazer com as obras, sobre como responder às perguntas das vítimas.
Alguns zeraram os programas futuros, outros se limitaram a cancelar os vídeos e as publicações com suas imagens, outros se perguntam sobre o que fazer. Como emblemático, cito um debate promovido pela La Croix entre Arnaud Join-Lambert, professor de teologia de Lovaina e o padre Paul Valadier, professor emérito na faculdade dos jesuítas em Paris (que foram publicados, respectivamente, em 20 e 22 de junho).
“A glória e o dinheiro de Rupnik – escreve Arnaud Join-Lambert – derivam de suas obras. É a Igreja que permitiu o seu sucesso, ainda que merecido de um ponto de vista artístico. Então é ali que se precisa agir. Suas obras devem desaparecer. Assim será respeitada efetivamente a memória das vítimas. Rejeito os argumentos falaciosos daqueles e daquelas que pretendem distinguir o artista da obra. No seu caso os mosaicos são obras coletivos. O ateliê de Rupnik e seus canteiros de obras eram lugares de manipulação, de dominação e de abuso. Essas obras são blasfemas. A blasfêmia é um pecado contra o Espírito. É o que há de pior na vida de um crente ou de um crente que tenham experimentado o amor de Deus. A lavação dos pés na capela Redemtoria Mater é comovente e magnífica, mas é repugnante e perverso intuir o contrário do que é representado”.
“Agora é o momento propício para mostrar ao mundo que a Igreja escolheu os fracos e as vítimas e não os poderosos perversos... Sejamos proféticos. Desmontemos os mosaicos e deixemos o vazio. O vazio será uma homenagem às vidas destruídas pelo predador que manipulou todas as fragilidades estruturais da Igreja. Um vazio que se tornará uma oração a ser preenchida pela misericórdia de Deus na força do Espírito”.
Igualmente direta é a resposta de Paul Valadier: “Não está claro de que forma a destruição de obras de arte, independentemente do juízo sobre o seu valor estético e menos ainda sobre o homem que as fez, pode trazer a mínima satisfação a pessoas feridas para toda a vida e para as quais nenhum remédio poderá livrar de traumas que não podem ser apagados. Só as justas reparações poderão talvez compensar os desastres, mas é pouco provável que apaguem um passado que não passa”.
A destruição das obras torna-se irreparável para a arte. “É bom recordar que os vários totalitarismos fizeram tudo para ‘fazer desaparecer’ as obras que os incomodavam: desde os Budas destruídos pelos talibãs, até às igrejas e as estátuas devastadas pelos revolucionários franceses, pelos bolcheviques na União Soviética, etc.” “Trata-se de um purismo ideológico oculto, de uma concepção do bem e do mal que se manifesta, de uma incipiente visão política maniqueísta (pense-se nos desastres do ‘realismo socialista’). Com base em tal purismo, levado a sério, dever-se-ia eliminar de nossos museus Caravaggio que foi ladrão e assassino, mas também censurar e excluir de nossas bibliotecas Gide que, no Marrocos e em outros lugares, se divertia com jovens rapazes, ou Colette, escandalosa em seu tempo por suas provocações audaciosas, ou Celine, grosseiramente antissemita e apoiador de um regime colaborador do nazismo”.
“Aqui se toca o delicado problema da relação entre arte e moral. Não se deve sacrificar a primeira à segunda. Se um artista comete crimes, é evidente que a responsabilidade é dele e que a justiça deve tratar disso”. As suas obras “podem ser imorais pelo espetáculo que representam ou pelas personagens que colocam em cena, mas queremos condenar o Fedro de Racine sob o pretexto de que suas obras teatrais encenam amores mais do que equívocos, talvez devêssemos remover as esplêndidas pinturas de Caravaggio da igreja de San Luigi dei Francesi de Roma porque ele cometeu um crime?”.
“É bom desconfiar dos puristas que, sob bons pretextos, renovam tradições hostis às artes, hostilidades que infelizmente a Igreja Católica conheceu, embora não tenha deixado de apoiar o homossexual Michelangelo, confiando-lhe os afrescos das paredes da Capela Sistina”.
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Francisco e a arte: profecia involuntária. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU