07 Dezembro 2021
"Coletivizar o mal-estar supõe entender que o fracasso nunca é algo meramente individual, mas coletivo", escreve Joaquín Fortanet, professor de Filosofia da Universidade de Zaragoza (Espanha), em artigo publicado originalmente publicado por El Salto e reproduzido por Outras Palavras, 03-12-2021. A tradução é de Vitor Costa.
Nos debates sobre o mal-estar, prevalecem considerações individuais a respeito, sejam elas éticas ou médicas. Diante das soluções individuais, é importante considerar sua relação com processos coletivos que podem permitir uma politização desse mal-estar.
Sentimos mal-estar de mil maneiras diferentes: não chegamos a lugar algum, não temos tempo, falhamos, achamos que nunca seremos os melhores, afundamos, desabamos, nos sentimos muito vulneráveis, exaustos, doentes, inadequados, como se o contorno de nossas mentes e corpos fosse de plástico, moldável por uma realidade inapelável que sempre marca o ritmo acelerado do que é, do que somos e do que deveríamos ser. Até que essa dureza nos quebre e tudo se torne líquido como se tivessem instalado em nós a necessidade imanente de continuar, de nunca parar, de não chegar. E, diante de tal interpelação, nossa resposta é roubada, oprimida pela tarefa impossível. Somos incapazes de formular outra coisa senão o silêncio e a prisão.
Owen Jones, em seu Chavs: The Demonization of the Working Class, questionou o significado e o alcance do que chamou de “demonização da classe trabalhadora”, ou seja, o processo pelo qual o pertencimento à classe trabalhadora começou a ser desacreditado e esvaziado até os dias de hoje. Em certo sentido, a reflexão de Jones tem a ver com o perigo de abandonar a noção de classe e a urgência de revisitá-la em resposta às diferenças específicas que a compõem. Mas, ao mesmo tempo, seu texto contém outra reflexão paralela relacionada ao processo concreto pelo qual o neoliberalismo se desenvolveu a partir da era Thatcher e estabeleceu as condições para a possibilidade do desaparecimento da noção de classe trabalhadora. E grande parte dessas estratégias derivam, segundo Jones, dos trabalhos realizados sobre a autopercepção do indivíduo e de seus processos de identificação subjetiva. Criou-se a ideia de que a pobreza, o desemprego, enfim, o fracasso do sonho do empreendedor se deviam a defeitos individuais. Se as pessoas eram pobres ou desempregadas, a culpa seria delas, de seu caráter, de sua falta de aspirações, de sua má gestão: elas mereciam.
Para Jones, esse processo quebrou a harmonia entre os processos de autoidentificação e os processos materiais. E, consequentemente, esvaziada a noção de classe operária, os integrantes dessa classe, que passaram a se identificar como classe média, carecem dos meios de proteção e de resposta política que a noção de classe conferia. De forma mais resumida: a classe se esvazia porque é um contrapeso à responsabilidade individual pela pobreza. A noção de classe trabalhadora impedia a compreensão de que a culpa da pobreza era meramente individual, que o desemprego se devia ao caráter ou à falta de gestão dos indivíduos. O que pode ser interessante, além da reflexão sobre o papel da classe no desenvolvimento neoliberal, é que Jones aponta a perda do senso de coletividade como uma das estratégias que leva à responsabilidade individual pelo fracasso e à proliferação do discurso de ódio contra essa classe, inclusive até mesmo entre seus membros. Ninguém quer ser considerado individualmente responsável pelo próprio fracasso. O ódio é a distância cínica dos perdedores.
Mas, apesar de tudo, perdemos nossos empregos, perdemos nossa saúde, perdemos a batalha contra as doenças, perdemos as competições e as oportunidades. Sempre perdemos. Uma vez que nos tornamos seres eletivos e com novas aspirações, a perda torna-se, por um lado, inaceitável sinal do fracasso individual e, por outro, inerente à nossa vida. Vivemos aprisionados na contradição que existe entre o desejo de sermos os melhores indivíduos e as profundas e inexoráveis estruturas materiais que determinam tais posições. Competitividade, meritocracia ou excelência são palavras que orientam o funcionamento desse estranho cassino em que vivemos e que acaba por nos derrotar: por mais fichas que joguemos no tabuleiro, estaremos sozinhos perante a imensidão da banca.
No final dos anos 1970, Stuart Hall traçou com precisão um horizonte teórico que, em certo sentido, ainda é o nosso. Expressando uma profunda preocupação teórica pela derrocada da esquerda inglesa contra o thatcherismo, ele reconheceu a grande capacidade do novo neoliberalismo de determinar o pensamento popular e alcançar uma posição hegemônica. A economia era apenas o método, mas se tratava de mudar mentes, afirmava Thatcher. Duas estratégias principais do neoliberalismo, identificadas por Hall, se relacionam, por um lado, com a proliferação do ódio a um suposto inimigo interno que se traduz na ideologia conservadora – nação, lei, tradição – e, por outro, com a criação de uma nova subjetividade baseada em um individualismo competitivo radical. Se fôssemos definir em duas grandes ideias essa nova subjetividade que vem moldando a hegemonia cultural neoliberal, essas poderiam ser a conversão do sujeito em empresário e a privatização da vida.
A nossa vida é nossa, é privada, nós usamos o tempo, fazemos as coisas funcionarem, trabalhamos a tal ponto que nada na nossa vida se torna alheio ao império do útil. Moldamos, sem estarmos muito conscientes disso, nossas ações, escolhas, nossos rumos, gestos e relações sociais como se fossem os investimentos do empresário que somos. Submersos numa constante campanha de autopromoção, nossa relação com os outros é essencialmente competitiva, como se o reconhecimento impusesse com sucesso a nossa marca, como se agora fôssemos apenas essa marca, que deve esconder a sua fragilidade, que deve evitar as mil formas de insucesso com um cosmético perfeito. Mas o profundo mal-estar que se enraíza em nós e que nos parece uma ameaça é também o elemento mais adequado que se levanta contra essa vida, tentando interrompê-la, forçando-nos a parar. A rebelião da vida contra a nossa vida.
Em “Los fantasmas de mi vida”, Mark Fisher reflete sobre esse mal-estar liminar que parece ter se tornado um dos fantasmas que nos perseguem. Ele destaca o fato de o desconforto ser entendido por nós em termos de interioridade. Uma das estratégias bem-sucedidas da subjetividade neoliberal é, justamente, ter-nos imposto uma compreensão privada do mal-estar. Como se o estresse fosse apenas uma condição psicológica que não tivesse a raiz de sua compreensão do trabalho e nas condições sociais que nos cercam. A privatização do estresse, a privatização da doença, do mal-estar em geral são, para Fisher, o sinal da despolitização de nossos tempos. Os indivíduos se culpam mais do que culpam as estruturas sociais. E foram levados a acreditar que tais estruturas não têm função em uma vida, que tudo tornou-se apenas uma questão de atitude, de luta, de esforço, de competência. Portanto, o desconforto torna-se individual e deve ser tratado apenas de uma perspectiva interna: psicológica, farmacológica, mindfulness. No limite, é considerada responsabilidade do indivíduo, que é apresentado como culpado, ignorando as condições materiais de seu adoecimento.
Mas, como nos lembra Judith Butler em Repensando a vulnerabilidade e a resistência, a vulnerabilidade que acossa, que poderíamos relacionar com este mal-estar difuso, não é constitutiva do ser humano. Não pertence à nossa natureza nem é uma questão antropológica de primeira ordem. A vulnerabilidade só aparece no quadro de uma relação desigual de forças. A vulnerabilidade, assim como o mal-estar, é consequência de relações de poder nas quais estamos em uma posição de subordinação: diante da polícia, do judiciário, da medicina, dos professores. É, de certa forma, a marca que prefigura uma posição de resistência diante desta vida que arrastamos.
O grande problema do mal-estar é que não podemos entendê-lo da perspectiva coletiva da relação de forças porque, precisamente, a ruptura de seu componente coletivo é a causa de ele se apresentar a nós como algo individual. E, portanto, ele torna-se um abismo intransponível para o qual apenas soluções comportamentais são oferecidas. Porém, por meio da análise material do mal-estar, pode ser possível encontrar outras causas, abrir caminho para sua coletivização, dar o passo para poder compartilhá-lo, entendê-lo como uma possível rede contra a conduta habitual.
Coletivizar o mal-estar não significa apenas encontrar as condições materiais de suas raízes. Coletivizar o mal-estar supõe entender que o fracasso nunca é algo meramente individual, mas coletivo. Ter uma coletividade que assuma o peso de um mal-estar específico significa compartilhar inquietações, dores, cuidados, diferenças, soluções, angústias. Coletivizar o mal-estar implicará politizá-lo e, politizando-o, também criticar a autoridade de todas as verdades e relações de força que nos forjaram, pedindo credenciais. É interromper coletivamente alguns mecanismos que promovem esse mal-estar. E também pode desativar algumas dessas inércias do ódio que são apenas o distanciamento cínico que nossa visão de empreendedores tenta impor em relação ao fracasso.
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Convite a politizar o mal-estar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU