12 Mai 2020
“Hoje, em pleno século XXI, Matteo Ricci não deixa de fascinar pela audácia com a qual tentou compreender uma cultura tão distante da sua”, escreve o historiador Francisco Martínez Hoyos, em artigo publicado por La Vanguardia, 11-05-2020. A tradução é do Cepat.
Logo que surgiram no século XVI, os jesuítas não demoraram a se espalhar por todo o mundo. Um de seus objetivos consistia em penetrar na misteriosa China, um país que não sentia necessidade de contato com estrangeiros, a quem considerava bárbaros por definição.
O primeiro a enviar notícias sobre o gigante oriental a Inácio de Loyola, o fundador da ordem, foi Francisco Xavier. O império mandarim, nas palavras deste jesuíta navarro, era uma terra grande e pacífica, onde havia mais justiça que em qualquer estado da cristandade.
No entanto, Francisco Xavier falava do que ouvia. Conheceu em primeira mão o Japão, mas nunca chegou a entrar na China continental. Ao contrário, outro membro da Companhia de Jesus, o italiano Matteo Ricci (1552-1610), conseguiu permissão para entrar, iniciando uma longa etapa como missionário em um território completamente alheio à cosmovisão europeia.
Para os ocidentais do Renascimento e do Barroco, a China era um gigante desconhecido. A própria denominação “China” nada tinha a ver com aquele país, que seus habitantes chamavam de Zhongguo, “reino do centro”. Seus habitantes possuíam um caráter muito diferente dos europeus, com alguns traços próprios que se expressavam em mil detalhes. Quando algo lhes desagradava, faziam saber por meios indiretos, em vez de protestar abertamente.
Os jesuítas pretendiam evangelizar a China. Como esperavam conseguir isso? Primeiro pensavam em converter o imperador. Uma vez que as elites do Império fossem católicas, os outros não apresentariam grande complicação. A história mostrava que era isso o que tinha acontecido em outras épocas, em Roma, sob Constantino, ou na Espanha visigoda de Recaredo.
Originário de Macerata, uma cidade italiana do Adriático, Ricci expressou muito jovem seu desejo de ser missionário na Ásia. Chegou na China em 1583, junto com o padre Ruggero, também da Companhia. Após se instalar em Zhaoqing, uma cidade sulina, em seguida, buscou se adaptar a seu novo ambiente. Isso significava, para começar, aprender uma língua de especial dificuldade, composta por milhares de sinais diferentes, com uma pronúncia complexa. Chegaria a dominá-la com perfeição, até o ponto de escrever nela livros como Jiaoyou lun (Sobre a amizade). Também inventou um sistema para transcrever seus caracteres ao alfabeto europeu.
Para conquistar o poderoso soberano oriental, os religiosos europeus primeiro tinham que demonstrar a superioridade de suas crenças. Encontraram um caminho para isso: a ciência. Naquele momento, os chineses estavam interessados no conhecimento ocidental, no qual viam um instrumento para resolver problemas práticos. Como calcular, por exemplo, uma área ou um volume?
Ricci, especialista em matemáticas e em cartografia, facilitou a seus anfitriões o que esperavam. Traçou para eles um mapa-múndi que lhe conferiu um grande prestígio, o Mapa completo das montanhas e dos mares da Terra. Alguns, ao comprovar nele que o italiano chegava de geografias tão distantes, suspiraram de alívio. Não era provável que de uma distância tão descomunal fossem enviadas tropas para invadir os domínios dos Ming.
Ricci exibia na residência dos jesuítas objetos como relógios, quadros e livros, que atraíam poderosamente a curiosidade de seus visitantes. Algum tempo depois, traduziu para o chinês os Elementos de geometria de Euclides, o sábio grego da Antiguidade, junto a seu discípulo Qu Rukui.
Por outro lado, tentou difundir o Evangelho a partir de um esboço intercultural incomum para a época. Os jesuítas precisavam ser chineses entre os chineses, ou seja, aceitar toda a bagagem da cultura oriental que não fosse oposta aos princípios cristãos. Daí que Ricci adotasse um nome chinês, Li Madou.
Esta pedagogia significava buscar os pontos de contato entre a doutrina de Jesus Cristo e a de Confúcio, de forma que a primeira resultasse menos estranha ao público autóctone. Ricci chegou a traduzir os Quatro Livros do confucionismo para o latim, com o título Tetrabiblon sinense de moribus. Em 1603, deu à luz sua própria versão do catecismo católico, O verdadeiro significado do Senhor do Céu.
De qualquer forma, transmitir os valores evangélicos exigia um esforço de imaginação para superar sérios obstáculos. Inclusive era difícil encontrar uma palavra que traduzisse o conceito ocidental de Deus, porque, na China, a ideia de uma divindade separada do mundo não fazia sentido.
Por outro lado, os esforços para adaptar o cristianismo à sensibilidade dos orientais despertaram uma profunda hostilidade no seio da Igreja. Os críticos aos jesuítas pensavam que a ortodoxia doutrinal estava em jogo. Gerou-se uma grande polêmica que se dirimiu no século XVIII, quando Roma deu razão aos que se opunham aos ritos locais.
Com seus conhecimentos científicos e seu savouir faire diplomático, Ricci fez amizades com os dirigentes chineses. Para angariar as simpatias das classes altas do país, os jesuítas deixaram barbas e cabelos longos, imitando a moda local seguida pelos letrados, ou seja, as pessoas instruídas. Era necessário obter o seu apoio para materializar o grande objetivo da Companhia: criar uma rede de colégios ao estilo dos que existiam nos países europeus.
Contudo, a desconfiança em relação aos estrangeiros era muito difícil de vencer. Em certas ocasiões, este receio adquiria aspectos violentos. Em determinado momento, durante um ataque xenófobo contra a Companhia de Jesus, Ricci ficou ferido. Ficaria coxo para sempre.
Desde os tempos de Marco Polo, os europeus acreditavam na existência de um reino fabuloso chamado “Catay”. Ricci, graças às diversas informações que pôde reunir, chegou à conclusão de que essa terra era, na realidade, a China. Foi o que comunicou a seus colegas da Companhia, embora não tenham prestado especial atenção.
Nosso homem não obteve permissão para viajar a Pequim até 1598, quando já estava há quinze anos no país. Uma autoridade de Nanquim facilitou sua estadia, ao advertir que a astronomia europeia tinha utilidade para melhorar o calendário, invento que na China era muito mais do que um instrumento para medir o tempo: regia a ordem social. A cereja da ciência não impediu, no entanto, que os burocratas o esvaziassem.
Demorou três anos para voltar à capital, mas fez isso com grandeza, sob a proteção do imperador Wanli. O soberano ficou encantado com os presentes que aqueles estrangeiros traziam, em especial com os relógios mecânicos. Michela Fontana, em Matteo Ricci (Mensajero, 2017), destaca que “a boa acolhida conferida aos relógios permitiu aos jesuítas estabelecer um canal de comunicação privilegiado”. Fascinado diante daqueles visitantes incomuns, o imperador os encheu de perguntas. Queria saber tudo sobre a Europa. Como viviam seus habitantes, como se vestiam, como se casavam...
Ricci coincidiu em Pequim com outro jesuíta, o espanhol Diego de Pantoja. Ainda que poderiam ter colaborado entre eles, permaneceram como cão e gato. Em parte, tratava-se de um choque de personalidades. Enquanto o italiano era humilde e sociável, o espanhol se mostrava impetuoso e teimoso.
Não obstante, sua rivalidade se explica muito mais por suas diferentes ideias em relação à evangelização. Ricci se concentrava no funcionalismo. Pantoja, ao contrário, nas classes humildes. O primeiro ressaltava os pontos de contato entre o Oriente e o Ocidente. O segundo enfatizava as diferenças e não poupava críticas a Confúcio.
No momento de sua morte, o jesuíta italiano havia conquistado o respeito chinês. Por sua contribuição científica, recebeu o direito a um espaço para seu próprio mausoléu, uma honra que nunca antes havia sido conferida a um estrangeiro. O sepulcro foi destruído em 1900, durante a rebelião dos boxers. Restaurado depois, seria vítima da fúria vândala nos tempos da Revolução Cultural, por isso precisou ser novamente reconstruído.
Hoje, em pleno século XXI, Ricci não deixa de fascinar pela audácia com a qual tentou compreender uma cultura tão distante da sua.
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Matteo Ricci, um jesuíta na corte dos Ming - Instituto Humanitas Unisinos - IHU