23 Março 2022
"Até um mês atrás não se via uma única mulher no palco papal das audiências. Só agora aparecem - começam a aparecer - entre os que leem em várias línguas. E não havia nenhum impedimento para que houvesse. Mas a inércia clerical comportava que elas não existissem. Agora, um documento de grande visão prevê a possível convocação de leigas e leigos não apenas no palco, mas também à frente da maioria dos órgãos curiais: mas quando isso acontecerá?", escreve Luigi Accattoli, vaticanista, em artigo publicado por Re-Blog, Il Regno, 22-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Revolucionária na intenção missionária e sinodal, boa em uma dezena de decisões inovadoras, irrelevante no imediato: esta é a minha ideia da reforma da cúria romana promulgada por Francisco no sábado, 19 de março, com a constituição apostólica Praedicate Evangelium e apresentada à imprensa na segunda-feira, dia 21.
As intenções revolucionárias são duas: dar o primeiro lugar à pregação do Evangelho (os italianos o chamariam de "primado da evangelização"), abrir os papéis do governo a leigos e leigas. Mas eles já não o são? Abri-los sempre e em todos os lugares, agora diz o documento de reforma, exceto quando for expressamente previsto que tal papel caiba a um clérigo.
A reforma da cúria do papa jesuíta, que quando jovem queria ser missionário, não poderia deixar de ser uma reforma missionária: e esta o é, pelo menos nas intenções declaradas, no título da Constituição que a promulga, na precedência dada aos órgãos responsáveis pela evangelização. Na minha opinião, este é o melhor valor - pelo menos em ideia - da reforma.
O segundo é semelhante ao primeiro, no sentido de que é uma ideia igualmente grande, mas no momento ela também apenas afirma: em nome da "igual dignidade" de todos os membros do povo de Deus, a reforma "prevê o envolvimento de leigos e leigas também em funções de governo e responsabilidade". Aqui se afirma uma novidade em relação à Pastor Bonus de João Paulo II (1988), que reservava "aos agraciados com a ordem sagrada os assuntos que exigem o exercício do poder de governo".
A novidade consiste em atribuir o poder de governo não mais à ordem sagrada, mas à "missão canônica": e, portanto, trata-se de um "poder vicário conferido com a nomeação para tal ofício, que é a mesma se recebida de um bispo, de um presbítero, de um consagrado ou de uma consagrada, ou de um leigo ou uma leiga”. Essa foi a explicação da novidade canônica que o jurista jesuíta - e ex-reitor da Gregoriana - Gianfranco Ghirlanda proporcionou esta manhã a nós jornalistas.
Esta reforma da Cúria Romana pretende colaborar na "conversão missionária da Igreja" que Francisco já havia proposto com sua Evangelii gaudium (2013). Tal intenção já é assinalada pelo organograma curial: o primeiro dicastério depois da Secretaria de Estado não será mais a Congregação para a Doutrina da Fé, mas o novo Dicastério para a Evangelização, que fundirá a Congregação para a Evangelização dos Povos e o Conselho para a Nova Evangelização e será presidido diretamente pelo Papa, acompanhado por dois pró-prefeitos.
Uma condução privilegiada, reservada ao papa, que lembra a análoga condução papal do Santo Ofício, que durou até a reforma montiniana de 1968. O prefeito da "Suprema Sagrada Congregação do Santo Ofício" era o papa, enquanto o responsável operacional era o secretário: e essas nomenclaturas duraram até o cardeal Ottaviani, que foi seu secretário até a reforma, quando o cardeal Seper assumiu com o título de prefeito.
Em suma, com Francisco o papel que antes pertencia à doutrina é assumido pela evangelização. E há muitos significados válidos aqui.
Positivo é também o nascimento de um Dicastério para o serviço da caridade que, "também chamado Esmolaria Apostólica, é uma expressão especial de misericórdia e, partindo da opção pelos vulneráveis e excluídos, exerce em qualquer parte do ao mundo a obra de assistência e ajuda para com eles em nome do Romano Pontífice". O papa "em casos de particular indigência ou outra necessidade, dispõe pessoalmente as ajudas a serem alocadas".
Excelente - para contrastar o carreirismo que sempre existe nos meandros curiais - a previsão de que os cargos sejam quinquenais e que "em regra após cinco anos, os oficiais clericais e membros de institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica que tenham prestado serviço nas instituições e nos ofícios curiais voltem ao cuidado pastoral em sua diocese/eparquia, ou nos institutos ou sociedades a que pertencem”. Mas obviamente pode haver uma prorrogação "por mais cinco anos".
Boas ideias podem ser encontradas no documento também no sentido de uma "saudável descentralização" do governo da Igreja, que deixa à competência dos párocos diocesanos/eparquiais "a faculdade de resolver no exercício da própria tarefa de mestres e pastores as questões que eles conhecem bem e que não afetam a unidade da doutrina, da disciplina e da comunhão da Igreja".
A cúria redesenhada por Francisco é proposta não apenas como um "serviço ao papa", mas também um "serviço à missão dos bispos". Este segundo serviço é de forma promissora detalhado: "consiste, em primeiro lugar, em reconhecer a obra que [os bispos] prestam ao Evangelho e à Igreja, no aconselhamento oportuno, no incentivo à conversão pastoral que eles promovem, no apoio solidário à sua iniciativa evangelizadora e à sua opção pastoral preferencial pelos pobres, pela proteção dos menores e das pessoas vulneráveis e por toda contribuição em favor da família humana, da unidade e da paz; enfim, às suas iniciativas para que os povos tenham vida abundante em Cristo".
A falta de efeitos imediatos da reforma também se deve ao fato de que muitas inovações para as quais a constituição apostólica fornece um enquadramento definitivo já estão em andamento: ao longo dos anos, Francisco foi amalgamando conselhos e dicastérios, criando novos (especialmente no setor econômico), reestruturando outros (da Secretaria de Estado à Doutrina da Fé).
Tudo bem então? Não, não tudo. Os canonistas avaliarão cada uma das inovações. No entanto, para o observador que não dispõe de instrumentos de avaliação específicos cabe manifestar uma reserva, ou uma insatisfação pessoal, sobre o papel dos leigos e das mulheres. Este é o ponto da maior novidade canônica, como eu dizia acima. E é bom que essa novidade tenha se afirmado. Mas o realismo quer que se leve em conta o quanto a máquina curial está atrasada nessa longa caminhada.
Até um mês atrás não se via uma única mulher no palco papal das audiências. Só agora aparecem - começam a aparecer - entre os que leem em várias línguas. E não havia nenhum impedimento para que houvesse. Mas a inércia clerical comportava que elas não existissem. Agora, um documento de grande visão prevê a possível convocação de leigas e leigos não apenas no palco, mas também à frente da maioria dos órgãos curiais: mas quando isso acontecerá?
Talvez o documento pudesse incluir entre seus muitos artigos (são 250) pelo menos algum parágrafo dessa chamada. Sei lá: aqui e ali a provisão de um mínimo de presenças não eclesiásticas, onde isso já fosse possível. Ou de modalidades na previsão de tais presenças. Uma afirmação de princípios tão alta e a total falta de passos necessários para alcançá-la levam a temer tempo longos em um desafio em que a Igreja de Roma já está terrivelmente atrasada.
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Reforma da Cúria: missionária e sinodal. Artigo de Luigi Accattoli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU