Uma nova economia é possível!

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

28 Novembro 2020

“A lógica da partilha já é uma realidade entre os pobres que doam do pouco que tem para suprir as necessidades de outros mais pobres. São pequenas ações que, certamente, não desestabilizarão as grandes economias, devem suscitar políticas públicas consistentes com alcance à população mais vulnerável. Francisco alerta que 'um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no campo da caridade mais ampla, a caridade política'. Trata-se de avançar para uma ordem social e política, cuja alma seja a caridade social'”, escrevem Celia Soares de Sousa e José Luiz Gomes de Almeida, em artigo para a coluna "Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco".

 

Eis o artigo.

 

Atualmente somos 8 bilhões de habitantes no mundo, ou seja, no planeta Terra. São viventes no campo e na cidade, nas aldeias, nas comunidades quilombolas, ribeirinhas, pescadores. São milhares de atividades realizadas a cada momento com a finalidade de sustentar a vida, desde atividades industriais com seus produtos químicos não tratados, detritos não tratados que continuam poluindo ás águas, automóveis circulando poluindo a atmosfera, energias não reaproveitadas, enfim são negociações em diversas moedas para ver ao final de cada dia quem lucrou mais, quem enriqueceu mais, quem é o mais poderoso político e econômico, além das mídias que produzem conteúdos diversos com as mais diversas intenções e objetivos para garantir seguidores e patrocinadores. Vivemos em um mundo de interesses, sejam plásticos ou líquidos.

Todos vivemos em um mundo onde o ar, a água, as plantas, a terra, precisam ser cultivados, cuidados. A relação ser humano x criação há muito tem sido de exploração e busca de riquezas, acúmulo desenfreado seja no consumismo, seja na degradação, tudo em busca de prazer e de enriquecimento ilícito para poucos.

Papa Francisco após ouvir muitos especialistas sobre o Cuidado com o Planeta, a Casa Comum, escreveu em 2015, sua primeira Encíclica Social: a Laudato Si'. Seu Magistério tem sido fortemente marcado pela preocupação com o que temos feito com a criação de Deus, e, mais forte ainda, tem denunciado as mazelas de uns poucos produzindo menos vida, para muitos. O Papa propõe um debate que una a todos, porque o desafio ambiental que vivemos e as suas raízes humanas dizem respeito e tem impacto sobre todos nós, o cuidado com a Casa Comum, com todo o planeta, a criação de Deus (LS, n. 14). Chamou a atenção de chefes de Estados e de grandes empresários para as consequências das suas tomadas de decisões, pois estas, certamente irão afetar muitos países, visto que se organizam no sistema globalizado. Foi nesta lógica que papa Francisco disse que é preciso dizer “Não à Globalização da indiferença”.

A indiferença provoca a morte das populações vulneráveis e impede o desenvolvimento de nações, onde a vida de cada pessoa vale moeda. Falta uma educação de qualidade, falta moradia digna, falta emprego digno, falta convivência fraterna e igualitária o que gera a violência e, a exemplo do que vemos nas grandes metrópoles, o aumento do narcotráfico e de grupos armados submetendo a população pobre aos seus comandos. Falta uma religião mais comprometida com o processo integral de desenvolvimento da pessoa para que cada uma e cada um se perceba com um ser social, capaz de transformar o seu meio, a partir das suas capacidades de organização e de criatividades. Faltam na política, pessoas efetivamente e afetivamente preocupadas e alinhadas com decisões para o bem comum, com coragem de abdicar mordomias e penduricalhos, com a consciência de que o não te pertence falta na mesa dos mais pobres.

É possível perceber, nas últimas décadas, que as democracias têm sido abaladas com a presença de dirigentes políticos com discursos radicais e fundamentalistas. No Brasil, essa postura fortaleceu um movimento de polarização dificultando o diálogo e o fortalecimento da democracia. De acordo com Pew Research Center e Ipsos: “No Brasil, a imensa maioria (83%) se diz insatisfeita com o funcionamento da democracia, e a polarização no País é recorde: 32% dos brasileiros acreditam que não vale a pena tentar conversar com pessoas que tenham visões políticas diferentes das suas”.

Alguns especialistas afirmam que o principal motivo para a insatisfação com a democracia é a economia. Certamente porque a esmagadora maioria da população sente os impactos da economia a partir da aquisição dos itens básicos para o dia a dia, como o arroz, o pão, a feira, etc. Mas a economia é e sempre foi capital? Dinheiro? Meios de aquisição de bens ou serviço? Como fazer com que a economia seja um instrumento de comunhão e não de empobrecimento da população como historicamente ocorre sobretudo na América Latina e em outros países em desenvolvimento?

O termo economia vem do grego Oikos que significa Casa, e nomos que significa lei/ordem. A junção dos dois conceitos fez surgir a palavra Oikonomia ou Economia. Para compreender a evolução histórica da economia é importante conhecer os diversos sistemas econômicos: feudalismo, mercantilismo, fisiocracia e o capitalismo, deles herdamos sérias consequências e conceitos que vigem os sistemas econômicos atuais no mundo. Como não iremos aprofundar os sistemas econômicos, no presente artigo, podemos afirmar que no seu núcleo está a concentração de renda e de poder político.

Concentração de renda e de poder tem sido um mecanismo consciente e organizado de muitas pessoas que chegam ao poder público ou privado na maioria das nações, sobretudo no Brasil. O grande problema deste projeto é que a Casa Comum, o planeta que é de todos e para todos, passa a ser de propriedade, de geração e de concentração de renda para uns poucos que detém o poder. A Laudato Si' nos ensina que o cuidado com a casa comum nos põe em sintonia com uma verdade escandalosa e que nos provoca a tomar uma atitude: a abordagem ecológica nos leva a uma abordagem social. Isto significa afirmar que quando nos deparamos com questões ecológicas escutamos o clamor da terra como clamor dos pobres da terra. Esses são os que mais sofrem (LS, n. 49).

Francisco afirma que “a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico que se desinteressa das outras criaturas” (LS, n. 68). Muito preocupado com essas desigualdades e atento as consequências da destruição da natureza, aumento da pobreza, da morte de inocentes e o aumento predatório dos recursos naturais, convocou toda a Igreja, especialmente “jovens economistas e profissionais de áreas relacionadas, assim como empresários e líderes da sociedade civil para estarem em diálogo com novas perspectivas de pensamento e propostas de transformação” para dialogar sobre os grandes problemas que afetam a humanidade. Para essa inspiração Francisco denominou de “Economia de Francisco”. No Brasil as e os jovens acrescentaram Clara: Economia de Francisco e Clara.

 

O Papa Francisco propõe uma nova economia e uma ecologia integral

É uma provocação sobretudo para mulheres e homens de hoje que buscam outra lógica, estes são chamados a ações tais como “assumir o dever de cuidar da criação com pequenas ações diárias”, diz o Papa que “é maravilhoso que a educação seja capaz de motivá-las até dar forma um estilo de vida” (LS, n. 21).

As inspirações desse “estilo de vida” são ações que podem se espalhar na sociedade como um vento novo de partilha e de fraternidade. Francisco aponta que ações nesta direção provocam uma mudança de comportamento no seio da sociedade, além de nos restituir um sentimento de dignidade e de comprometimento porque dá sentido à nossa existência.

 

Experiências

A Economia de Francisco e Clara, contra a denominada cultura da morte, promove a cultura da vida

 

Neste ano, se a pandemia da covid-19 trouxe consequências negativas para a economia formal, o assolamento maior foi para a economia informal, seja de agricultores, artesãos entre outros. E foram essas provocações do Papa Francisco, com enfoque na Economia de Francisco e Clara que, na Diocese de Guarulhos se formou um Coletivo com a participação do Conselho Diocesano de cristãos leigos e leigas, Escola de Fé e Política, Economia Solidária e Caritas Diocesana. Estes se organizaram no começo da pandemia com o objetivo de pensar o pós-pandemia e organizar ações, frente a perda de receita dessa parte da população. Importante considerar que grupos de agricultores doaram grande parte da sua produção para alimentar desempregados, pessoas em situação de rua, ou seja, primeirearam na caridade com irmãs e irmãos.

A Feira Solidária que promove a venda dos produtos orgânicos e artesanato é um dos projetos que tem sido apoiado por esse coletivo. A lógica é a não concorrência e a promoção do espírito de colaboração e ajuda mútua. A montagem das cestas é feita com alimentos variados, para evitar desperdício, todos vendem e o lucro é dividido entre os produtores. Não há lugar fixo para a realização das Feiras Solidárias, pois o objetivo de circular na cidade é para que se tornem mais conhecida. Essa ação indica a formação de novos consumidores conscientes que compram o necessário e conhecem a realidade (suas dificuldades, alegrias e esperanças) dos pequenos produtores e artesãos. Para o Coletivo, estes são consumidores da nova economia na prática, da Economia de Francisco e Clara.

No bojo desta ação está em andamento o Banco Comunitário, onde a proposta é abrir a conta em Bancos Comunitários até criar a moeda local e fortalecer o comércio daquele bairro ou grupo de produtores, artesãos ou comércio. O Coletivo, citado, desenvolveu uma cartilha com os objetivos e os procedimentos para a criação do Banco Comunitário. São ações que demandam interesse, envolvimento e desejo de realmar a economia, ou seja, dar novo sentido a Economia, valorizar a pessoa, a vida e a criação, estes devem ter prioridade, e não o dinheiro, conforme propôs o Papa Francisco.

 

Construir pontes

 

Pensar a economia como um meio de gerar vida e partilha é um dos objetivos da Economia de Francisco e Clara. A lógica da partilha já é uma realidade entre os pobres que doam do pouco que tem para suprir as necessidades de outros mais pobres. São pequenas ações que, certamente, não desestabilizarão as grandes economias, devem suscitar políticas públicas consistentes com alcance à população mais vulnerável. Francisco alerta que “um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no ‘campo da caridade mais ampla, a caridade política’. Trata-se de avançar para uma ordem social e política, cuja alma seja a caridade social. Convido uma vez mais a revalorizar a política, que ‘é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum’”. (FT, n. 180).

É chegada a hora de construir uma “política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos”. Francisco afirma que “embora se deva rejeitar o mau uso do poder, a corrupção, a falta de respeito das leis e a ineficiência, “não se pode justificar uma economia sem política, porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspectos da crise atual” (FT, n. 177) e que “os políticos são chamados a cuidar da fragilidade, da fragilidade dos povos e das pessoas” (FT, n. 188).

A convocação para todas essas mudanças passa pelo comprometimento de cada mulher e cada homem, independente da sua condição social para que todos possam ter Terra, Teto e Trabalho. Francisco afirma que é preciso assumir essa outra lógica e que é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente, para ele, este é o verdadeiro caminho da paz (cf. FT, n. 127).

É missão do povo de Deus assumir o compromisso sociopolítico transformador, que nasce do amor apaixonado por Cristo para exercer um serviço cristão no mundo. Os cristãos leigos e leigas, são chamados por Deus, a viver segundo o Espírito do Evangelho, como fermento de santificação no seio do mundo (Doc. 105 CNBB, n.5) para iluminar as coisas temporais com seu testemunho. São Paulo VI já afirmava que o “o vasto e complicado mundo da política, da realidade social e da economia, como também da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, do mass media e, ainda, outras realidades abertas à evangelização” (EN, n.70) é o campo por excelência de atuação dos cristãos leigos e leigas.

É uma necessidade que se impõe aos cristãos leigos e leigas o aprofundamento da Palavra de Deus, da Doutrina Social da Igreja, do Magistério do Papa Francisco, mas é fato que há muitas pessoas de boa vontade atuantes na Igreja e na sociedade para o Bem-viver. Essas ações concatenadas em busca da plena realização da Caridade podem “gerar processos de encontro que possam construir um povo capaz de colecionar as diferenças” (FT, n. 217). Ser capaz de ousar e somar neste caminho de educar gerações para a cultura do encontro, com ternura e para a caridade.

Esse caminho exige uma disposição para a conversão, para enxergar com um “olhar cujo horizonte esteja transformado pela caridade, levando à percepção da dignidade do outro” afirma Francisco. O despojamento e a mudança de mentalidade para um consumo consciente devem provocar uma mudança nas relações, pois o outro não é mercadoria. É irmã, é irmão que neste universo busca seu espaço e sua realização, em mundo onde muitos são apenas considerados números.

 

Protagonistas

 

A Economia de Francisco e Clara convoca, ainda, para o protagonismo. Ser protagonista é aparecer primeiro, como um ator principal que (se) expõe o roteiro, a trama. Francisco ao convocar a Igreja e a Sociedade para essa revolucionária proposta espera que o protagonista seja capaz de sair da passividade, do comodismo e se compadecer com os “escândalos da pobreza (...) que transformam os pobres em seres domesticados e inofensivos” (FT, n. 187).

A cidadania das cristãs leigas e cristãos leigos se realiza no mundo, ou seja, assumem sua missão sem limites e fronteiras, através da sua presença nas estruturas que compõem o conjunto da sociedade, para renovar a sociedade, e são nestes ambientes que buscam meios eficazes para servir, pois sabem que, por primeiro, é a pessoa humana que deve ser salva.

O diálogo nesta proposta é desproporcional com os diferentes, por isso, a cultura do encontro. Francisco conta com os jovens economistas e atuantes nas comunidades e organismos da Igreja para que lancem um grito pela Caridade e Fraternidade. Francisco comenta que a falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum. Por isso, ele espera que a adesão a esse novo olhar e novas ações conjuntas para o Bem Viver possa quebrar uma lógica individualista que consome a alegria do encontro e do diálogo, do encantamento com as diferentes culturas e a valorização de cada povo e dos seus conceitos e história.

 

Cada pessoa importa, cada vida importa!

 

Importa despertar e sonhar com um mundo mais justo, igualitário, com ações possíveis e responsáveis para que todos tenham oportunidades de viver com dignidade, no cuidado com o Planeta e seus recursos. Culturalmente há, no consciente coletivo, uma expectativa de encontrar um salvador da pátria. Uma reflexão do Papa Francisco reforça a ideia de que somos e seremos protagonistas de uma nova economia, quando nos comprometermos afetivamente e efetivamente com a causa dos pobres por Terra, Teto e Trabalho: “Os heróis do futuro serão aqueles que saberão romper com essa mentalidade doentia, decidindo sustentar palavras cheias de verdade, para além das conveniências pessoais. Queira Deus que esses heróis estejam surgindo silenciosamente no meio de nossa sociedade” (FT, n. 202). Esse é também o nosso desejo.

 

Autores

Celia Soares de Sousa, mestre em Teologia pela Puc-SP, especialista em Mariologia, coordenadora da Pós Graduação para Catequistas pela Faculdade Dehoniana de Taubaté e do CNLB Guarulhos.

José Luiz Gomes de Almeida, graduado em Sociologia pela Escola de Sociologia e Política - SP, presidente do CNLB Guarulhos e secretário-executivo das Pastorais Sociais de Guarulhos.

 

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