O propósito da tecnologia e do humano: Dados, reflexões e possibilidades para a Economia de Francisco

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

Tela de Kassio Massa. Arte feita especialmente para a Coluna.

24 Outubro 2020

"A natureza de nossa nova era tecnológica permite uma generosidade material possibilitada pela inovação. No entanto, uma característica inerente da economia da tecnologia é a concentração de renda e poder de mercado em poucos participantes do mercado (sejam eles trabalhadores ou empresas). Mesmo sabendo que anular completamente os efeitos negativos do desenvolvimento tecnológico na sociedade é uma tarefa utópica, acreditamos que muito pode ser feito para facilitar esse processo e dar mais peso às suas vantagens", escrevem Alessia Argiolas, Jelle Oostveen, Julian Kuhlmann, Leonardo Caputi, Luca Campanella, Michael Lohse e Tatiana Vasconcelos Fleming Machado (organização e tradução), jovens inscritos no encontro Economy of Francesco, da vila Business in Transition, para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.

O artigo é fruto da pesquisa e reflexão do grupo "O propósito da Tecnologia e do Humano", e será apresentado no evento, que iniciará no dia 19 de novembro de 2020. O trabalho do grupo deu-se de forma virtual durante o ano de 2020, com a participação de jovens economistas de sete países. A proposta do texto é fazer um levantamento de dados sobre os benefícios e prejuízos do desenvolvimento tecnológico para as sociedades, refletir sobre as políticas econômicas aplicadas e apontar possibilidades para novas políticas sociais referentes à tecnologia e Inteligência Artificial, assim como diretrizes de trabalho para a Igreja Católica.

 

Sobre os autores

 

Alessia Argiolas, italiana, é doutoranda na Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão. Sua área de concentração é empreendedorismo social e acompanha projetos na África.

Jelle Oostveenb, neerlandês, é mestre em ciências da computação pela Utrecht University. É especialista em aprendizado de máquina automatizado e estuda por ciência de dados.

Julian Kuhlmann, alemão, é mestre em Negócios Internacionais pela Universidade Católica de Lisboa. Atualmente trabalha na Amazon em Paris.

Leonardo Caputi, residente em Hong Kong, é economista e mestre em administração pelo MIT Sloan School of Management. Atualmente, ele trabalha com gestão de investimentos em Hong Kong. 

Luca Campanella, italiano, é cientista da computação italiano, atualmente baseado em Zurique e mestre em ciência da computação pela ETH Zürich. Seu foco atual é na inteligência artificial aplicada ao texto (processamento de linguagem natural). Por outro lado, ele está tentando usar a IA para trazer um discurso saudável para as seções de comentários dos jornais online.

Michael Lohse, meio alemão e meio japonês, estudou Administração de Negócios em Milão. Atualmente está baseado em Tóquio, gerencia um negócio que se concentra na exportação e importação de frutas e outros produtos para o Japão e a Europa.

Tatiana Vasconcelos Fleming Machado, brasileira, é economista pela UFJF, e pós-graduada em Ciência de Dados pela PUC-Rio. Tem experiência com economia industrial e economia da cultura.

 

Eis o artigo.

 

Introdução

Este trabalho é resultado de diversos encontros do tópico Tecnologia para o Bem Comum da vila internacional Negócios em Transição da Economia de Francisco. O enfoque é dado ao propósito do que é tecnológico e do que é humano no geral e, em particular estabelecemos que o progresso tecnológico em andamento tem benefícios como: produto de custo marginal zero benéfico, serviços gratuitos como o mapas, redução da jornada semanal de trabalho, ajuda baseada em inteligência artificial (IA) para a produção e metas de sustentabilidade.

Por outro lado, as desvantagens também estão presentes: a mudança da riqueza do trabalho para o capital, a desigualdade entre os participantes do mercado (empresas e trabalhadores) está crescendo, os empregos com menor escolaridade e salários mais baixos provavelmente serão automatizados e a IA pode ser enviesada ao ser mal utilizada.

Por essas razões, orientados por nossos princípios, propomos que se dê mais ênfase aos programas de educação, tanto para os novos trabalhadores quanto para os que se deslocam, que os impostos passem do trabalho para o capital, que se fortaleça a rede previdenciária, que o acesso às certas tecnologias deva ser considerado como um bem público e que as diretrizes para IA justa e imparcial devam ser colocadas em prática e compartilhadas entre as nações e empresas. Além disso, dirigimos uma proposta concreta especificamente para a Igreja Católica: começar uma universidade online para ajudar a fechar a lacuna educacional.

 

Fatos e dados da tecnologia

 

Benefícios

A tecnologia traz benefícios sem precedentes para a humanidade que devem ser valorizados e protegidos. Para alguns produtos tecnológicos, a criação de uma unidade adicional tem custo marginal zero. Por exemplo, para dar a um usuário adicional acesso a um filme, o custo é zero. Isso é chamado de produto “generoso” de custo marginal zero e está expandindo a quantidade de bens e serviços disponíveis e as pessoas capazes de acessá-los:

As vendas da Amazon de livros que não estão disponíveis em outras lojas é de 578 milhões de dólares [1]. Novos concorrentes adicionam nova utilidade para novos consumidores [4], como mostrado na figura 1.


Figura 1: Fontes de demanda de oligopólio em função do número de empresas. Quando os bens são baseados em informações, novos concorrentes agregam mais utilidade a mais consumidores em comparação com quando os bens industriais são baseados na indústria

Empresas de tecnologia estabeleceram uma infraestrutura padronizada para o mundo trocar informações, bem como bens e serviços gratuitamente, por exemplo: competição mais justa entre restaurantes no Yelp (Brynjolfsson e McAfee, 2014 [6]), uso gratuito do Whatsapp, Google Maps, 43200 horas de vídeos carregado a cada hora no YouTube etc. Além disso, muitos desses benefícios nem são contabilizados nas estatísticas do PIB.

“As empresas com níveis mais altos de investimento em computador e as características organizacionais [para alavancá-los] têm valor de mercado e produtividade desproporcionalmente maiores” (Brynjolfsson, Hitt e Yang, 2007 [2]).

O avanço da tecnologia pode ajudar a reduzir o número de horas de trabalho por semana e facilitar trabalhos desgastantes, como sugerido pela figura 2.

A IA pode ser benéfica para os humanos de várias maneiras, como: visão computacional para imagens médicas e operações de busca e resgate, processamento de linguagem natural (PNL) para tradução, automação de respostas, assistentes pessoais e moderação de discurso. Com essas e outras tecnologias, ele pode desempenhar um papel importante em nos aproximar da maioria dos 17 objetivos de desenvolvimento da ONU. (McKinsey, 2019 [14])

A combinação de IA e humanos executando a mesma tarefa melhora o desempenho e a produção. Por exemplo, a BMW descobriu que quando suas equipes de robôs e humanos trabalharam juntas, eles eram aproximadamente 85% mais produtivos. [11]

As demandas sociais por IA estão se expandindo rapidamente, resultando em mudanças rápidas na pesquisa da tecnologia, que está mudando sua característica de ser impulsionada pela curiosidade acadêmica para ser impulsionada por demandas que estão focadas fora da academia. Os novos objetivos e problemas em cidades inteligentes, medicina, transporte, logística, manufatura e produtos inteligentes, bem como automóveis sem motorista e smartphones, todos exigem o desenvolvimento de IA. [10]


Figura 2: Média anual de horas trabalhadas por trabalhador, países do G-7, 1950-2015. Uma tendência de declínio é observada. Fonte: Executive office of the US president [12]

 

 

Desvantagens

No entanto, existem desvantagens críticas ao avanço tecnológico. A economia da tecnologia inerentemente tende a uma distribuição de riqueza pela curva de poder versus uma distribuição normal. O seguinte pode ser um problema inevitável se não for verificado:

A parcela da renda do trabalho está diminuindo enquanto a produção global está crescendo, o que significa que as pessoas estão ganhando menos enquanto o capital está ganhando mais, conforme indicado pelas figuras 3, 4 e 5. A despeito disso, também é interessante olhar para o passado e notar que os salários na Inglaterra estagnaram ou caíram por cerca de 40 anos após o início da Revolução Industrial, e a miséria dos trabalhadores de fábrica está bem documentada na literatura e política escritos do dia. [8]


Figura 3: Lucros corporativos após impostos como porcentagem do PIB (azul) e parcela do trabalho não agrícola (vermelho), 1947-2013

 


Figura 4: Produtividade (laranja) em comparação com o emprego privado (preto) nos EUA de 1947 até 2012

 


Figura 5: Participação da renda ganha pelo 1% do topo, 1975-2015

A desigualdade entre os participantes do mercado (empresas e trabalhadores) está crescendo, conforme sugerido pelas figuras 6 e 7 para empresas e pela figura 8 para trabalhadores.


Figura 6: Lucro das empresas de oligopólio, em função do número de empresas. Fonte: Vision Critical, 2016 [9]


Figura 7: Lucro das empresas de oligopólio, em função do número de empresas

Indústrias e funções críticas estão sendo monopolizadas por poucas organizações, como pode ser visto nos gráficos anteriores (figuras 6 e 7) sobre a participação no mercado e as margens de lucro que não mudam com o número de participantes do mercado.

Muitos empregos de baixa escolaridade e baixa remuneração são mais propensos a serem automatizados pela IA e pela tecnologia, conforme mostrado nas figuras 9 e 10 para o mercado de trabalho dos Estados Unidos.


Figura 8: Salários reais ajustados pela composição de trabalhadores homens que trabalham em período integral entre 1963 a 2008. HSD são os trabalhadores que abandonaram o ensino médio, HSG são os que completaram o ensino médio, SMC são os que fizeram parte de algum curso universitário, CLG são graduados, GTC são os com pós-graduação. Fonte: Daron Acemoglu and David Autor, 2010


Figura 9: Parcela de empregos com alta probabilidade de automação, pela mediana do salário-hora da ocupação. EUA. Fonte: Executive office of the US president, 2016


Figura 10: Parcela de empregos segundo habilidades altamente automatizáveis, por educação. EUA. Fonte: Executive office of the US president, 2016

Dois dos fatores cruciais (coexistentes) que definem monopólios de tecnologia que perduram são as economias de escala e de rede. A produção de rápido crescimento de produtos de tecnologia ricos em informação é cada vez mais caracterizada exatamente por esses dois fatores (Frank e Cartwright, 2013 [5]).

Uma indústria de tecnologia ofertada predominantemente por um monopolista ao invés de um número equilibrado de empresas competitivas pode causar custos significativos para a sociedade - por exemplo, perda do excedente do consumidor ou perda de eficiência / bem-estar (Frank e Cartwright, 2013). Uma concentração extrema de poder tecnológico (incluindo tecnologia da informação, biotecnologia, nanotecnologia etc.) nas mãos de uma pequena parte da humanidade é perigosamente arriscada, como afirma o Papa Francisco (Laudato Si').

A IA pode sofrer de viés herdado do conjunto de dados e configurações de hiperparâmetros construídas em decisões humanas discriminatórias anteriores.

 

2- Dado isso (pesquisa, pensamentos, experiências, princípios etc.)

 

A natureza de nossa nova era tecnológica permite uma generosidade material possibilitada pela inovação. No entanto, uma característica inerente da economia da tecnologia é a concentração de renda e poder de mercado em poucos participantes do mercado (sejam eles trabalhadores ou empresas). Mesmo sabendo que anular completamente os efeitos negativos do desenvolvimento tecnológico na sociedade é uma tarefa utópica, acreditamos que muito pode ser feito para facilitar esse processo e dar mais peso às suas vantagens. Portanto, nosso objetivo é possibilitar que a tecnologia crie e divulgue mais conhecimento, bens e utilidade pessoal do que nunca, mitigando os efeitos negativos que lhe são inerentes. Nossa proposta, portanto, busca avançar os seguintes objetivos:

A tecnologia está trazendo aumentos de produtividade e complexidade para a sociedade, como resultado, menos pessoas são empregadas e os incultos são deixados para trás. Devemos fazer mais para proteger o direito a uma vida digna de todos os membros da sociedade, sem prejudicar o progresso da tecnologia.

Empresas inovadoras estão criando e dominando novos mercados. Devemos permitir os tremendos benefícios trazidos pelos inovadores, permitir suas recompensas, evitando que o domínio das empresas monopolistas impeça a concorrência justa e o acesso ao mercado para todos.

É difícil implementar a definição básica de monopólio na prática e distinguir claramente entre concorrência equilibrada e situação de monopólio na indústria de tecnologia. Ao lidar com monopólios, parece que complicações acontecem em cada alternativa de política, como propriedade estatal, regulação de preços do governo, contratos exclusivos, leis antitruste ou política de “laissez-faire” (Frank e Cartwright, 2013).

O ensino superior, por sua crescente importância, deve ser acessado por um número cada vez maior de pessoas e o conhecimento sobre tecnologia deve ser mais forte na população em geral.

 

3 - Propomos que (proposta à sociedade em geral)

 

Educar

Dados salariais mostram que um alto nível de educação é cada vez mais o mínimo necessário para participar da sociedade. Aprendendo com as revoluções industriais anteriores, queremos enfatizar a importância do desenvolvimento da educação.

 

Reeducação de trabalhadores mais velhos que precisam aprender novas habilidades para encontrar um novo emprego:

 

Educação de funcionários novos e recursos

 

Políticas tributárias e sociais:

 

Acesso às tecnologias como bem público

Garantir aos indivíduos e empresas o acesso livre e igualitário à economia digital, a começar pelo acesso à Internet. Todos podem desfrutar da natureza transformadora desta nova economia. Isso não significa subsidiar pequenos concorrentes a monopólios naturais, mas sim garantir, por exemplo, que plataformas como iOS ou Android sejam tratadas e regulamentadas como bens públicos (da mesma forma que as rodovias, por exemplo).

 

Promover uma IA justa e imparcial

 

Condições de concorrência equitativas:

As autoridades de concorrência devem continuar a verificar o poder das grandes empresas de tecnologia (digital) ricas em informações de maneira justa e apoiar o surgimento de novos mercados, proporcionando condições de concorrência equitativas para as empresas competirem com as grandes empresas de tecnologia existentes, cujas soluções tecnológicas devem visar prioritariamente “a resolução dos problemas concretos das pessoas, ajudando-as verdadeiramente a viver com mais dignidade e menos sofrimento”, como afirma o Papa Francisco (Laudato Si' [7]).

 

4 - Propomos que (propostas à Igreja Católica)

 

O número crescente de pessoas conectadas à internet abre novas oportunidades de combate à pobreza e à desigualdade. Atualmente, cerca de 59 por cento da população global tem acesso à Internet, o que a torna uma poderosa virada de jogo. Visto que a educação é vista como uma forma de melhorar os padrões de vida, a falta de professores qualificados e de materiais educativos leva a situações em que ir à escola nem sempre leva à aprendizagem. Para repetir as palavras de Sua Santidade “A preocupação com a educação é uma preocupação com as gerações futuras e com o futuro da humanidade”. Combinar a internet com os recursos de ensino que a Igreja Católica já possui pode levar a uma escola online orientada globalmente e acessível gratuitamente para todos. Ao envolver as igrejas católicas e escolas locais, seria possível oferecer educação nas línguas primárias das pessoas. Além disso, isso poderia diminuir a distância entre os cursos gratuitos online atuais, que muitas vezes são em inglês, e ajudar mais pessoas a atingir o nível de ensino básico em seu próprio idioma. Oferecer educação online também permite que as pessoas aprendam no momento que lhes convém, o que pode ajudar a educar as pessoas que não são capazes de ir à escola durante o dia ou durante uma pandemia.

  

Referências

[1] Erik Brynjolfsson, Yu Hu, and Michael D Smith. “Consumer surplus in the digital economy: Estimating the value of increased product variety at online booksellers”. In: Management Science 49.11 (2003), pp. 1580–1596.

[2] Erik Brynjolfsson, Lorin Hitt, and S. Yang. “Intangible assets: Computers and or- ganizational capital. Brookings Papers on Economic Activity”. In: Macroeonomics (Jan. 2007), pp. 137–198.

[3] Daron Acemoglu and David Autor. “Skills, Tasks and Technologies: Implications for Employment and Earnings”. In: National Bureau of Economic Research, Inc, NBER Working Papers 4 (June 2010).

[4] Roy Jones and Haim Mendelson. “Information goods vs. industrial goods: Cost structure and competition”. In: Management Science 57.1 (2011), pp. 164–176.

[5] R.H. Frank and E. Cartwright. Microeconomics and Behaviour. McGraw-Hill Education, 2013, 392-393 and 388–389. Disponível neste link.

[6] Erik Brynjolfsson and Andrew McAfee. The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies. 1st. W. W. Norton and Company, 2014. ISBN: 0393239357.

[7] Papa Francisco. Carta Encíclica Laudato Si': sobre o cuidado da casa comum. 2015.

[8] Richard Freeman. “Who owns the robots rules the world”. In: IZA World of Labor (Jan. 2015).

[9] Vision Critical. The winner-takes-all economy (or why a handful of brands dominate in a world of abundant choices). 2016. Disponível neste link.

[10] Yunhe Pan. “Heading toward Artificial Intelligence 2.0”. In: Engineering 2 (Dec. 2016), pp. 409–413.

[11] Financial Times. Meet the cobots. 2016. Disponível neste link. (visited on 09/13/2020).

[12] Executive office of the US president. Preparing for the feature of artificial intel- ligence: Artificial Intelligence, Automation, and the Economy. 2016. Disponível neste link.

[13] Rebecca Linke. Negative income tax, explained. 2018. Disponível neste link.

[14] McKinsey. Applying AI for social good. 2019. Disponível neste link

 

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