Massacragem dos Chiquitanos vai à ONU. Artigo de Aloir Pacini

Missa presidida pelo Monseñor Robert Flock no dia 02/09 (Foto cedida por Inácio Werner).

21 Setembro 2020

"Queríamos prestar solidariedade às famílias e à comunidade bem como dialogar com as famílias e autoridades locais sobre a denúncia de chacina e mostrar que, do lado de cá da fronteira, no Brasil tem gente que não pactua com a forma violenta como age uma parte da polícia brasileira", escreve Aloir Pacini, padre jesuíta, antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.

 

Eis o artigo.

 

O outro texto tinha por fim denunciar o ocorrido. Segundo informações vindas de diferentes fontes, em especial através da visita no dia 2/09 na comunidade San José de la Frontera, San Matías, região fronteiriça Brasil-Bolívia, foi confirmado a “massacragem”[1] pelo Gefron dos indígenas Ezequiel Pedraza Tosube (18 anos), Yona Pedraza (27 anos), Pablo Pedraza Choré Tosube (38 anos) e Arcino Sumbre García (50 anos), no dia 11 de agosto 2020, quando caçavam na fazenda São Luiz, com licença da esposa do gerente[2].

Os quatro indígenas saíram para caçar às 13 horas da tarde numa terça-feira. Como tratava-se de tempo de pandemia e nas fazendas onde trabalhavam não estava tendo trabalho, o alimento escasseava para as famílias, foram buscar a mistura, como dizem. Os indícios é que foram executados depois de serem torturados, provavelmente para falarem algo sobre a localização de drogas, uma vez que o Gefron tinha denúncia de “mulas” passando na região. Portavam apenas um estilingue, um facão, uma foice e uma arma 22 de um só tiro. Na mesma tarde os vizinhos ouviram duas rajadas de metralhadora com intervalo de cerca de meia hora, pelas 15 horas, e mencionaram o ocorrido posteriormente, associando os fatos.

Os cães de caça que acompanharam os indígenas, voltaram por volta das 17 horas para suas casas sem seus donos, o que foi um sinal de alerta entre seus familiares. Foram ainda no escurecer em busca dos caçadores procurar para o lado onde eles tinham ido. Por se tratar de um lugar perigoso, somente andaram por perto, mas todos preocupados, pois estavam sem documentos. Todos estavam procurando no final do dia 11 por perto da aldeia e em Cáceres. Acionaram os familiares em Cáceres e Giza Pedraza Tosube, a irmã de Yona foi ao Hospital e à polícia, mas não teve informações sobre os parentes: “Sim, no dia 11 eu procurei aqui em Cáceres. Fui ao hospital e no cisc (polícia). Aí todo mundo preocupado lá no sítio, querendo saber notícia porque não chegavam.” Passaram uma noite sem dormir e sem saberem ao certo o que acontecera.

Somente no dia seguinte cedo que o caso foi se esclarecendo, pois foram procurar com a luz do sol e os sinais apareceram. Encontraram um tatu morto no caminho e foram na direção do local onde cevavam os animais, onde faziam a espera sobre a árvore ao lado, em cujos galhos estava uma rede armada. Quando chegaram no entroncamento de cercas, novamente em busca dos quatro indígenas desaparecidos, encontraram os sinais de tortura, muitos tiros numa árvore, num poste de cerca e muito sangue no chão. Encontraram o estilingue, mas o facão, a foice e a arma 22 de um só tiro não foi localizada. O lugar no qual tinha acontecido o massacre, pois claramente as forças eram desproporcionais de um lado e outro, vai ser marcada com a cruz de Jesus Cristo, para lembrar que ali morrerem quatro mártires como Jesus.

Após essa busca sem encontrar os corpos, os familiares entraram novamente em contato com os familiares que estão em Cáceres. No dia seguinte, os familiares souberam por uma pessoa do necrotério que tinham chegado “quatro bolivianos” e Lucas Sumbre Pedraza, filho de Arcino (+) que estava na casa da irmã que mora em Cáceres, foi até lá para reconhecer. Ele lembra que o guarda ainda perguntou se ele tinha coragem, pois sabia do estado em que se encontravam os corpos. Lucas afirmou que tinha vindo para isso e foram se abrindo as gavetas de cada um dos seus parentes Chiquitanos, começando pelo seu pai Arcino. Saindo dali telefonou para sua mãe Meyre, comunicando que estavam todos mortos ali em Cáceres. Como eram de cidadania boliviana, foi muito difícil conseguir forma de levar os corpos para a comunidade, e somente conseguiram liberar os trâmites, e chegar na comunidade San José de la Frontera, pela meia noite do dia 12/08[3].

O protagonismo nessa história é dos Chiquitanos, somente fomos no dia 02/09 para atender ao clamor das famílias que exigiam justiça pelos meios de comunicação que possuíam, o Facebook, já que os órgãos oficiais de comunicação como de justiça estavam todos fechados para esse grito de socorro. Encontramos uma rede de parentesco e solidariedade impressionante tanto nas cidades de Cáceres, Porto Esperidião e Vila Bela da Santíssima Trindade, como na Bolívia. Melânia Pedraza Chore, irmã de Pablo, cunhada de Arcino, madrinha do sobrinho Yona e tia do Ezequiel, organizou tudo para que tivéssemos boa acolhida na comunidade, pois não sabíamos o grau de revolta em que estavam, foi conosco de Cáceres até a comunidade.

Missa presidida por D. Robert Flock, no dia 02/09. (Foto cedida por Inácio Werner)

A Missa presidida pelo Monseñor Robert Flock, concelebrada pelos Padres Eulálio, pároco de San Matías, Hjan Fredd Aguilar Tadeo, vigário episcopal e eu, em memória dos quatro indígenas assassinados, foi um acontecimento que ficou como um fato social total de grande repercussão na região. Estavam presentes também a Irmã Claudete Mantovanni, representante da Pastoral Indigenista da Diocese de Cáceres e a Hermana Aline Silva dos Santos, representando a Congregação das Irmãs de Nossa Senhora Aparecida que trabalham em Porto Esperidião e San Ignacio (Bolívia).

As pessoas ouvidas naquele dia 02/09 indicaram execução com atos de crueldade. Relataram que havia sinais de tortura. O exame de autópsia que estava para ser entregue no dia 11, foi buscado pela família algumas vezes e finalmente disseram que precisa mais 60 dias para ficar pronto. Assim o ouvidor das polícias solicitou oficialmente e ainda não chegou. Pela observação dos corpos das vítimas por parte dos familiares. O filho que o viu no necrotério falou que encontrou o corpo do pai com a mandíbula quebrada, o alto da cabeça afundado como se tivessem batido com um pau, clavícula quebrada, tiro de cima para baixo na barriga, rosto deformado e as costas com a pele cheia de escoriações, marcas de que seu corpo foi arrastado pelo chão duro, seco e quente.

Esse texto quer sensibilizar as pessoas e criar vínculos com as pessoas que perderam pais, irmãos, filhos esposos. Dona Meiry Chore, viúva de Arcino Sumbre García, contou mais detalhes sobre o corpo do seu marido e da injustiça cometida contra ele: “No dia seguinte, nós soubemos que os corpos estavam no hospital. Meu marido foi quebrado no queixo, levou tiro, parte do corpo dele estava em carne viva. Nestes tempos de pandemia, estamos com pouco trabalho. Eles aproveitaram um dia de folga para sair, pois dependemos da caça para colocar comida na mesa”. A análise dos corpos pelos indígenas não é técnica, mas dentro da sensibilidade e tradicionalidade de observação de detalhes: Pablo Pedraza Chore teve todo o ombro esquerdo machucado e dois tiros de frente na boca. Ezequiel Pedraza Tosube recebeu tiro em cima do ouvido para baixo, outro no estômago e outro perto do coração, um atingiu o pulso. Yona Pedraza Tosube teve a perna direita quebrada, murros na boca que arrancou os dentes e braço quebrado.

Oração próximo da árvore cravejada de balas. (Foto: Inácio Werner)

Para tirar a dor do local da chacina, a comissão realizou uma oração próximo da árvore cravejada de balas, talvez um indício de que um ou mais foram amarrados na árvore e executados pelos policiais, pois ali também em diferentes lugares o sangue ainda está depois de três semanas sobre a terra, sinais da chacina perpetrada por agentes do Grupo Especial de Fronteira, o Gefron. O local fica próximo de onde se encontra a ceva[4] que costumeiramente as vítimas iriam caçar. Mateus Lopez Pedraza (20 anos) irmão do Ezequiel (+) e Gerson Martins Tosube (23 anos) é filho da irmã da mãe de Ezequiel e da mãe do Yona, ou seja, primo duas vezes das vítimas mais jovens dos quais era amigo pessoal, e sobrinho de Pablo (+) e de Arcino (+). Ambos fizeram questão de ir conosco e mostrar o lugar onde eles foram torturados, e insistentemente mostravam que aspiram por justiça, mas do jeito Chiquitano, resilientes, pois sabem que Deus age e revela o que está escondido. Mostraram o buraco coberto de folhas onde tinha bastante sangue: parece que estavam vendo quando diziam, ali ele caiu, mataram um e começaram a arrastar, foi arrastado uns 20 metros. Voltava sempre a expressão: “torturaram eles”. Novamente voltou o refrão: “esperamos que a justiça seja feita”, pois não querem que aconteça mais com ninguém tal atrocidade. Lembraram que é duro demais, quatro pessoas da sua família serem mortos, torturados dessa forma. E lembram, que as vítimas agora sofrem mais ainda porque não podem mais ir trabalhar no Brasil, passar pra lá, porque a polícia tem medo de represálias, quer tirar toda a roupa da gente, suspeita da gente.

Melânia Pedraza Chore não se cansa de agradecer porque está percebendo que as orações da comunidade estão sendo ouvidas, a dor que sentia dentro do coração por ver tão grave injustiça ficar impune, maltratava seu coração: “Quando vocês celebraram a Missa, eu consegui tirar um peso das nossas costas. A injustiça pesava sobre nós, não sabíamos mais o que fazer para fazer com que as autoridades nos escutassem. Agora vemos luz no fim do túnel.”

Melânia com a criançada, na frente indicado o Ezequiel e atrás indicado o Yona. (Foto: enviada por Aloir Pacini)

João Pedraza (59 anos), pai do falecido Ezequiel, irmão, tio e cunhado das demais vítimas, foi levado pelo gerente da fazenda onde trabalhava até Cáceres e fez o reconhecimento dos corpos. O que mais impressiona é a dor do pai percebendo como o filho fora morto e ainda ser caluniado de traficante.

“Sinto muito triste, uma tragédia difícil para mim. Penso que foi uma massacragem, não podia fazer isso, se eles tivessem errado de estar caçando, prendia. Se estivesse suspeito, mas não fazer isso. Pra mim foi um abuso que fizeram com eles, é um trem sem motivo. Eles não tinham motivo pra isso. Meu guri era trabalhador, estava estudando… Ficou uma mulher com três filhos e é um sofrimento pra gente, pra ajudar não só com comida. Agora não têm o pai. Espero justiça pra não acontecer mais isso! É doído...”

No final, esse pai, com uma sabedoria impressionante, mostra que sente-se responsáveis pelos outros que ficaram órfãos, coisa que os do Gefron não pensaram antes de cometer tamanha atrocidade. Os corpos dos indígenas foram executados e levados para o hospital Regional de Cáceres por agentes do Grupo Especial de Fronteira (Gefron), uma força policial pertencente ao Estado federado do Mato Grosso (MT), do Brasil. O próprio Gefron assume no BO que matou os quatro num confronto e que outros nove fugiram para a Bolívia carregando fardos de droga. Existe uma ética própria do tráfico, as mulas em geral não andam armadas pois são orientadas a não reagir à abordagem policial, deixar a droga e tentar fugir quando é possível, pois perder a droga faz parte do jogo.

A ordem do sepultamento da direita para a esquerda foi por idade: Arcino, Pablo, Yona e Ezequiel (Foto: Inácio Werner).

Vendo a dor de José Pedraza, pai de Yona, fui confortá-lo, estava muito sofrido tudo ali. As palavras sempre são poucas nesses momentos e um abraço, apesar da pandemia se impõe. “Ninguém da minha família se conforma com isto até hoje, padre. Minha mãe está acabada[5]. Padre, meu irmão era jovem ainda, ele era meu melhor amigo padre. Eu até hoje estou destroçada, padre meu coração está em pedaço e muito triste, explicou a irmã de Yona, Giza Pedraza Tosube, ao ver a fotografia. Giza está com sua mãe na sua casa em Cáceres, para não entrar em depressão, e lembra: “Meu irmão Yona, dia 23 agora fazia 28 anos. O meu primo tinha 18, o meu tio Pablo tinha 38, e Arcino, 50.” Próximo dali estava Pedro, irmão do José Pedraza e irmão do Pablo, procurando encontrar explicação para tão grande atrocidade.

Soilo Urupe Chue, da aldeia Vila Nova Barbecho, em Porto Esperidião, representante da FEPOIMT, sintetizou o sentimento dos Chiquitanos no Brasil, pois não foram os Chiquitanos que criaram essas fronteiras, por isso exigem a territorialidade tradicional de ir e vir em paz: “Na Bolívia ou no Brasil, o povo Chiquitano é um só, independente da nacionalidade. Nós não criamos as fronteiras [...]. O que existe é a territorialidade onde a gente vive com nossos costumes, nossas crenças e nossa língua”. A fronteira seca entre os dois países não é marcada por nenhuma delimitação muito clara na região, a não ser em pontos estratégicos. Essa fronteira entre o Brasil e a Bolívia, nesse lugar em particular não pode ser distinguida com facilidade porque vai ziguezagueando nesse lado do Assentamento Corixinho (Cáceres, Brasil) com o território Chiquitano da aldeia San José de la Frontera, municipalidade de San Matías. Não há marcos contínuos ou outro acidente geográfico relevante, somente as cercas que prendem o gado.

A fronteira é uma realidade especialmente complexa, um micro-retrato do caos, da lei do vale-tudo e onde a vida vale quase nada. Ao mostrar aqui as redes de relações dos Chiquitanos, espero mostrar como são criativos para conseguirem sobreviver a tanta violência nessa fronteira que lhes foi imposta. Maria Surubi Paticu que representa as 33 aldeias Chiquitanos na Província Angel Sandobal reivindica respeito dos governos do Brasil e da Bolívia, nesses termos: “As caçadas e pescas fazem parte dos costumes dos povos originários e nós não dividimos esta prática por fronteiras. Pedimos às autoridades que nos resguardem e não nos amedrontem. Sabemos que existem policiais bons e policiais maus. Necessitamos que nos tratem com respeito: somos indígenas, mas somos seres humanos!” (transcrição e tradução nossa do espanhol).

Giza Pedraza Tosube falou da reunião do dia 9 entre as duas prefeituras com o consulado da Bolívia e as polícias. Estava indignada porque as famílias foram impedidas de entrarem para a reunião. Disseram que se precisavam, eles seriam chamados. A reunião terminou e somente informaram que a delegada Cinthia Gomes da Rocha Cupido estava em Brasília pedindo indenização no Itamarati[6]. “Nós não queremos só indenização, nós queremos justiça. Os militares e o civil está tudo combinado, um tampando a safadeza do outro. Eu não confio naquilo que eles estão fazendo lá pra aparecer.”

É imperativo que as autoridades do Brasil, federal e estadual, conduzam uma investigação imparcial sobre esses assassinatos a fim de identificar as circunstâncias pelas quais se desenrolou este massacre, pois o Brasil ratificou o Pacto sobre Direitos Civis e Políticos, além da Convenção contra a Tortura. As falhas na condução de uma investigação eficiente sobre estes atos levaram já a uma violação do direito internacional. Por isso as mulheres resolveram apelar para a ONU.

Mulheres de luto pelos falecidos. (Foto: Inácio Werner)

Na fotografia acima as mulheres enlutadas na chacina com as doações de alimentos, a mãe de Ezequiel e as três viúvas dos indígenas mortos, da direita para a esquerda: Meiry, esposa de Arcino; Cristiane com o filho na frente, esposa de Pablo; Ida, mãe de Ezequiel; Fabiola com o filho no colo, esposa de Yona.

No esforço de que sejam ouvidas, fizeram documento em áudio, manuscrito e também mandaram por whatsapp: “Yo, Ida, mamá de Ezequiel Lopes Chiquitano, indígena pido que se haga justicia por el asasinato de mi hijo que fue muerto por la Gefron. Pido a los derechos humanos de la ONU para que se haga la justicia por mi hijo que eran casadores y murierón inocentemente porque está muy extraño la forma en que actuaron (Gefron).

Foto: enviada por Aloir Pacini.

Foto: enviada por Aloir Pacini.

O que estava estranho nos vídeos que recebemos das manifestações das viúvas parecia que estavam somente interessadas no dinheiro que poderia vir pelas indenizações. Chegando mais perto e conversando com elas, ficou claro que a orientação do Gefron era que não acusassem ninguém pessoalmente, mas que pedissem essa indenização. Então compreendemos que elas mesmas sabem que não tem dinheiro algum que vale a vida dos que foram assassinados, e essas manifestações pedindo justiça mostram claramente que existe muito mais que elas querem quando falam em justiça, pois sabem que a a perda é irreparável: “Yo, Fabiola, madre de três niños, esposa del indígena chiquitano Yona Pedraza, que fue asasinado cobardemente por la Gefron, pido que se haga justicia por la muerte de mi marido. Si és posible pido la ayuda, de la ONU, por amor a Dios. Que se esclaresca la forma como fueron asasinados.”.

Foto: enviada por Aloir Pacini.

Foto: enviada por Aloir Pacini.

Para a representante comunitária de San José de la Frontera, Antonia Arteaga Tosube, a dor e a tristeza dessa história marcará para sempre os Chiquitanos: “Nós deveríamos viver como irmãos nessa fronteira. Mas não foi assim. Eu sinto muito, pois em todo este tempo em que eu vivo aqui, nunca havia acontecido coisa semelhante. Eles saíram de casa para caçar e encontraram a morte. Voltaram para nós dentro de um caixão!” (transcrição e tradução nossa do espanhol).

Foto: enviada por Aloir Pacini.

De acordo com as informações obtidas, os Chiquitanos não foram somente executados pelos agentes de segurança do Brasil, mas foram submetidos a práticas cruéis de tortura. A alegação por parte das autoridades no BO, de que houve uma troca de tiros entre os indígenas e a polícia, não procede. A chacina impôs um clima de terror na região e desestabilizou a comunidade financeiramente. Contudo, o mais grave é a fragilização das famílias, posto que eram arrimos destas, ficando as viúvas, pais, mães e seus filhos desamparados frente a essa ausência. O BO dizendo que eles eram traficantes e o silêncio dos policiais quanto às circunstâncias com que foram torturados mortos é muito duro para as famílias Chiquitanas. A sensibilidade dessas pessoas é enorme e querem saber como aconteceu tudo isso, essa memória vão guardar para o resto de suas vidas.

Foto: enviada por Aloir Pacini.

Foto: enviada por Aloir Pacini.

Queríamos prestar solidariedade às famílias e à comunidade bem como dialogar com as famílias e autoridades locais sobre a denúncia de chacina e mostrar que, do lado de cá da fronteira, no Brasil tem gente que não pactua com a forma violenta como age uma parte da polícia brasileira. No dia 11 de setembro foi feita outra visita ao local com celebração de Missa e batizados, também com doações da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima de Porto Esperidião. O Padre Marcelo Ramos com a Irmã Claudete e mais uma comissão acompanharam.

Comissão de Porto Esperidião na igreja de San Matías, 11/09/2020. (Foto: enviada por Aloir Pacini)

Outra Comissão foi no dia 11/09/2020 em visita aos Chiquitanos de San José de la Frontera onde moram parentes das vítimas. O Padre Eulálio celebrou na capela da comunidade uma Missa de mês pelos falecidos e suas famílias. O Padre Marcelo Ramos com alguns cristãos comprometidos e as Irmãs consagradas da Paróquia de Porto Esperidião perderam-se e chegaram atrasados. Almoçaram fizeram os batizados debaixo da mangueira onde celebramos no dia 2/09 e foram novamente ao cemitério para rezar, antes de retornar. Assim se expressou o Padre Marcelo: “Foi um dia luminoso, emocionante, intenso e repleto de esperança e compromissos. Nessa ocasião celebramos dois batizados, levamos várias doações de gêneros alimentícios, materiais de limpeza e higiene e manifestamos a proximidade e solidariedade de toda a nossa diocese.”

Fabiola, esposa de Yona, com os três filhos na casa da avó Melânia em Cáceres, 19/09/2020. (Foto: enviada por Aloir Pacini)

Como já faz cinco semanas do assassinato dos indígenas, tememos que o material probatório referente ao massacre se deteriore ou que a impunidade na região resulte em mais violência. Uma investigação célere tem o efeito exemplar de manter a ordem pública e a aderência de um Estado de Direito já tão fragilizado no Brasil e na Bolívia. Atrasos injustificados comprometem a qualidade e a quantidade as provas disponíveis, além de aumentar a fragilidade e os sofrimentos das famílias. Tratando-se de um grupo vulnerável, o direito internacional ordena que as autoridades priorizem tais investigações pois as frustrações persistentes geram distúrbios mentais nos sobreviventes e familiares, pois dá a impressão de que o Estado é leniente com graves violações aos Direitos Humanos Fundamentais. As forças de segurança do Brasil, tanto federais como estaduais, têm sido criticadas por atitudes racistas em relação a diversos grupos marginalizados no Brasil como os indígenas, mais ainda quando são “estrangeiros”. O discurso de ódio contra povos indígenas no Brasil, vindo do mais alto escalão do governo, tem legitimado a violência por parte de agentes das polícias militares estaduais e de autoridades mais localizadas. O desmonte da proteção da Funai passa a imagem ao público de que os indígenas têm um menor valor que o resto da população.

A Justiça é pré-condição para todas as pessoas envolvidas nessa chacina encontrarem a Paz. Impressiona que no sofrimento desses inocentes pela chacinagem de pessoas tão próximas, profundamente amadas, ou mesmo do pantanal em chamas, penso que não podemos perder o foco. É urgente uma conversão, estar em comunhão com esse povo que, na maior das dores, só sabe transbordar em bondades. Dom Hélder Câmara já poetizou: “Há criaturas como a cana: mesmo postas na moenda, esmagadas de todo, reduzidas a bagaço, só sabem dar doçura”.

 

Notas:

[1] João Pedraza Tosube estava trabalhando no confinamento, tinha saído às 4 horas da manhã do dia 12 para o trabalho na fazenda de Nadil Franco. Criou um neologismo para mostrar o massacre e a sacanagem que fizeram com seu filho Ezequiel e os demais parentes: “foi uma massacragem!” Perguntado se não tinha medo, ele disse que não, “tenho somente receio.” O Gefron foi criado no Estado de Mato Grosso em 13 de março de 2002, através do Decreto Estadual nº 3994. No decreto, está previsto ainda o trabalho integrado da Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros Militar. O Gefron teria por missão apoiar os órgãos federais responsáveis pela segurança na fronteira do Brasil com a Bolívia dentro do Estado de Mato Grosso, desencadeando, na região, operações sistemáticas de prevenção e repressão ao tráfico de drogas, contrabando e descaminho de bens e valores, roubo e furto de veículos e invasões de propriedades.

[2] Em 02 de setembro, uma comissão composta por representantes do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Fórum Estadual de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso(FDHT-MT), Centro Burnier Fé e Justiça, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de Mato Grosso(CDDPH-MT), Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennès (Cáceres), Ouvidoria Geral da Polícia de Mato Grosso e da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT), fomos à comunidade indígena San José de la Frontera, próximo à cidade de San Matías (Bolívia). Passamos antes para conversar com o bispo de Cáceres, Dom Jaci. Como o caso não estava sendo apurado pelos responsáveis públicos, foram oficiados os órgãos responsáveis para que ocorra a investigação dos fatos pelo Governo Estadual e Governo Federal, igualmente a Comissão Nacional de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, pelo Governo Plurinacional da Bolívia que o Ministério Público Federal e o Conselho Nacional de Direitos Humanos, Relatoria Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e outros façam o acompanhamento do caso e punam, conforme a lei, os culpados.

[3] Após o reconhecimento dos corpos, os familiares só tiveram acesso aos corpos, para os respectivos rituais funerários no dia seguinte, 12 de agosto, tarde da noite, após vários trâmites burocráticos e dificuldades para conseguir caixões e o traslado dos corpos. Mais absurdo ainda é que os meios de comunicação não noticiaram nada no Brasil. No dia 17/08 apareceu essa denúncia: “Justiça para São José da Fronteira” pelo Pantanal de Comunicación com as informações detalhadas e depoimentos das famílias da comunidade de San José de la Frontera que afirmam que os 4 Chiquitanos foram caçar. Conferir aqui.

[4] Gerson Martins Tosube gravou um vídeo no local da ceva no dia 12/08 de manhã mostrando uma garrafa pet amarrada numa árvore, abaixo estava um pacote de sal. A água pingava sobre o sal para ir pingando também no chão onde colocavam milho para atrair os animais. No alto da árvore ao lado estava estendida uma rede e pendurado um pacote de milho. No dia 11 fomos ao mesmo local e estava como mostrado no vídeo. Somente a rede fora tirada, pois Gerson disse que tão cedo não voltariam ali para caçar.

[5] Lucileny Tosube Alvarez que tem parentes em Poxoréo e Rondonópolis, disse que chorou no dia 19, porque o caçula João Pedro estava completando 18 anos e ela estava em Cáceres na casa da filha.

[6] A delegada de polícia do Gefron que conduz as investigações é esposa de um sargento do DEFRON e a juíza Hanae Yamamura de Oliveira é esposa de um tenente coronel que foi comandante do Gefron, o que causa suspeição porque são partes interessadas. No caso deveriam declararem-se impedidas de atuarem no caso. A falta de dados dos 5 mortos, quatro Chiquitanos e um brasileiro, em Porto Esperidião ou Las Petas no dia 8/08/2020 não deixa de ser estranho. Existe também o caso dos três rapazes que foram mortos na comunidade do Limão em 20/03/2017. O pai de um deles está revoltado, pois já fazem 3 anos do fato e até hoje não conseguiu nem o laudo pericial do que aconteceu e nem uma resposta da justiça. Outro caso é da Comunidade Mercedes Soliz denunciou o caso do Gefron que teria matado o cacique e seu sobrinho dentro da Bolívia em 2/7/2020. Um policial do Gefron fora baleado num confronto próximo do Quartel Fortuna e foi levado para atendimento. Ato contínuo, foi destacado outro grupo do Gefron, à paisana, para ir atrás e acabaram encontrando o carro roubado na comunidade Mercedes Soliz, mas não o ladrão. Ver aqui.

 

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