Educação pós-pandemia: despertar a pessoa no homem

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04 Agosto 2020

"O homem do mundo pós-pandemia, mais do que nunca, precisa ser compreendido e tratado como pessoa, do contrário, sucumbirá aos determinismos e às mazelas acentuadas por essa crise mundial que agravou o caos já instaurado pela sociedade da técnica, do cálculo, do consumismo, da busca do lucro e da acumulação de capital. Para a educação, isso implica, buscar novos caminhos para colocar a pessoa como referência de todas as ações educacionais. Tarefa nada fácil e, na pós-pandemia, o desafio será ainda maior. Porém, é necessário assumi-lo para retomar a preocupação e o cuidado com a pessoa como um projeto prioritário da sociedade", escreve Josi Mara Nolli, mestra em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e formada em Comunicação Social - Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC).

 

Eis o artigo.

 

Frente à profunda época de mudanças que o Brasil e o mundo atravessam por conta da pandemia causada pela Covid-19, faz-se necessário levantar e atualizar questões fundamentais para se pensar a educação pós-pandemia: Que educação? Educar para quê? Educar como? Educar quem? Buscar refletir e responder tais questões sobre a educação pode contribuir com o processo de construção do mundo mais humano, justo, solidário e fraterno que se colocará ainda mais desafiador e urgente para a humanidade depois da pandemia.

O Artigo 205 da Constituição Federal de 1988[1] dispõe que a educação visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Estão pressupostas nessa educação as categorias de pessoa, cidadão e trabalhador.

Ocorre que, na sociedade atual, na prática, nota-se que o “para que” se educa e o “como” se educa tem revelado a “quem” se está educando. Não é difícil perceber que as demandas do “mundo do trabalho” – o mundo das técnicas, da força produtiva, da lucratividade etc., pautadas pelos valores de mercado, parecem ter transformado a educação em uma ferramenta que, prioritariamente, atenda a esses valores, visando, significativamente, à qualificação do trabalhador.

A família que, segundo a Constituição de 1988, no mesmo Artigo 205, também tem o dever de educar, muitas vezes manda o filho para a escola para que a criança tenha uma boa profissão, ou para que “seja alguém na vida”. “Ser alguém na vida”, em um contexto marcado pelos valores de mercado, parece ser sinônimo de ter bom emprego, de ter bom salário ou de ter sucesso profissional. Em suma, aproxima-se do ter (status e coisas) e não do ser (pessoa). A quem se está educando, então? Ou, reformulando a pergunta, quem está no centro dessa educação?

Essa demanda gerada pelo mercado de trabalho, parece ter colocado em segundo plano a categoria principal citada pela Constituição de 1988, no Artigo 205, quando das finalidades da educação - a pessoa, fundamento do cidadão e do trabalhador, ou seja, primeiro existe a pessoa, depois o cidadão e o trabalhador. Por esse raciocínio, o centro da educação deveria ser a pessoa, considerada, sem dúvida, também em suas dimensões profissional, civil etc.

A pessoa a que nos referimos é a que está situada na história, é a pessoa concreta, mas é também a que está por completar-se com valores para além dos valores materiais e econômicos. Para citar o pensamento do filósofo francês Emmanuel Mounier[2], é a pessoa que está por completar-se com valores pautados na dignidade, no compromisso, na comunhão, na conversão íntima. A pessoa para Mounier é uma possibilidade aberta, “não é um objeto. Antes é exatamente aquilo que em cada homem não é passível de ser tratado como objeto”[3].

A crise mundial, instalada e acentuada pela pandemia, segue instaurando medos, incertezas, inseguranças e pessimismos que fomentam o que se pode chamar de crise da pessoa. Nesse contexto, o risco é de um individualismo exacerbado que deixe em último plano a pessoa para valorizar o indivíduo, caracterizado, segundo Mounier, pelo egocentrismo, pela avareza, pelo egoísmo e pela indiferença. Outro risco pós-pandêmico é que a reificação do homem se acentue. E o que é pior, que o homem mesmo não seja capaz de se tomar como pessoa, envolvido que está pelos determinismos que o cercam.

Nesse cenário, a educação tem papel fundamental, sobretudo, se considerado que o ser pessoa passa pela educação; que o movimento que o homem faz para ser pessoa, ou seja, o movimento de personalização, passa pela educação. Assim, para que se construa um mundo de pessoas, compreendidas em sua totalidade, ou seja, em todas as suas dimensões, é necessário que, na prática, a finalidade primeira da educação seja o pleno desenvolvimento da pessoa – a pessoa concreta, situada e, ao mesmo tempo, a pessoa que sonha, que se admira, que se encanta e que está para além do que é material, para além do que é passível de reificação.

Esse modo de compreender o homem como pessoa, demanda uma educação que o desperte para ser pessoa. O cenário pós-pandemia retomará e atualizará o apelo de Mounier: “Homem acorda” (de seus cansaços, guerras, misérias, prazeres fúteis, consumismos desenfreados etc.). Não se trata, portanto, de uma educação do “fazer”, do “fabricar” ou do “moldar”. Se a pessoa não é coisa, como afirma Mounier, o “fazer” não se aplica a ela, tendo em vista que à pessoa não se mede, não se classifica, não se produz em série como se faz com um produto.

A educação como despertar, como propôs Mounier[4], é a que pode contribuir para que o homem amadureça e se complete como pessoa. A educação pode promover condições para que o homem possa se “livrar” do individualismo e dos determinismos que tendem a acentuarem-se no mundo pós-pandêmico, considerando que as crises também se tornaram mais latentes.

Nesse movimento de despertar a pessoa no homem, a comunhão, o diálogo, o ir ao encontro do outro são elementos fundamentais. Paulo Freire[5] afirma que ninguém educa ninguém, que ninguém se educa sozinho, mas que os homens se educam em comunhão. Mounier escreve que ser é amar[6]. Amar e não apenas amar-se, o que implica o outro, a tal ponto que só existimos à medida que existimos para o outro. A comunhão que, em sua ideia mais ampla significa comum união, pode gerar comunidade - comum unidade. Na união e na unidade o outro passa a existir e ser compreendido como pessoa.

A verdadeira comunhão é um gesto que implica amar. Não é exagero, portanto, pensar uma educação que tenha a finalidade de despertar o homem para amar, pois amar é ser comunhão, é gerar comunidade. E é na comunhão que o homem se torna pessoa. A educação, então, ao despertar a pessoa no homem pode colaborar para a criação de comunidades de pessoas.

Não se sabe exatamente o que nos reserva o mundo pós-pandêmico e é difícil calcular de forma precisa todas as perdas acarretadas pela pandemia nos mais variados setores e no que nos é mais caro – a vida e a dignidade da pessoa. Mas as transformações e mudanças nas estruturas sociais, políticas e econômicas são ainda mais urgentes e necessárias. E tais transformações e mudanças, refletindo com o pensamento de Mounier, podem ser possíveis começando pela instauração de pequenas comunidades de pessoas. Comunidades que se formam na família, na escola, nas associações de bairro, entre amigos etc. capazes de promover diálogo. São essas pequenas comunidades de pessoas uma esperança de um mundo pós-pandemia menos individualista e, consequentemente, menos desumano.

Para a formação dessas pequenas comunidades de pessoas, a educação pode despertar o homem para sair de si e ir ao encontro do outro. Se ser é amar, é gerar comunhão, a relação que se deve estabelecer entre os homens é a do encontro. Relação que deve se dar nos âmbitos formal e informal da educação: entre educando e educador, entre pais e filhos, entre membros da sociedade (que, segundo o Artigo 205, também deve promover e incentivar a educação) etc. Encontro como um movimento de aprendizado mútuo, partilhado e compartilhado, em uma atitude geradora de diálogo, de respeito, de gratidão, de criatividade, de compreensão, de dádiva, de considerar o outro em sua singularidade e na comunhão.

Esse despertar do homem para ser pessoa pode ser considerado um movimento de desmassificação. O homem que já não está compreendido diluído ou perdido na massa, antes, compreendido na comunhão com o outro que também é pessoa. É a comunhão “de” e “entre” singularidades, de pessoas que são únicas, que não se repetem.

O desafio da educação no mundo pós-pandemia será compreender o homem em todas as suas dimensões e despertá-lo para que ele também assim se compreenda. Ter no centro do processo educativo a pessoa, considerada em suas dimensões materiais e transcendentes – sua capacidade de amar, de sentir, de refletir, de afirmar-se, de admirar-se, de prestar atenção à beleza da natureza e de amá-la etc. Compreendido apenas em partes de suas dimensões, o homem não será capaz de ser e fazer comunhão, não será capaz de sair de si e ir ao encontro do outro.

O Papa Francisco, na Carta Encíclica Laudato Si’[7], dirigida “a cada pessoa que habita neste planeta”[8], ou seja, a todos, independente de raça, cor, religião etc. trata significativamente dessa realidade – o homem que se compreende e é compreendido apenas como consumidor e, por isso, é incapaz de cuidar da Casa Comum, o planeta Terra. Um dos caminhos que o Pontífice aponta para esse despertar para o cuidado da Casa Comum é a educação. A educação integral, ou como consta na Carta a “formação integral” que pode significar considerar o homem em todas as suas dimensões, como pessoa.

Essa educação integral é possível em todos os âmbitos educativos: na escola, na família, nos meios de comunicação etc., desde que a pessoa esteja no centro do processo educativo. No mundo pós-pandemia educar majoritariamente para ter e não para ser é contribuir com um processo que pode transformar tudo em objeto, inclusive o homem. Ao passo que uma educação que considere o homem em todas as suas dimensões é uma educação transformadora porque aberta ao diálogo, ao respeito, à partilha do conhecimento, das experiências e que leva em conta a dignidade inalienável da pessoa.

O homem do mundo pós-pandemia, mais do que nunca, precisa ser compreendido e tratado como pessoa, do contrário, sucumbirá aos determinismos e às mazelas acentuadas por essa crise mundial que agravou o caos já instaurado pela sociedade da técnica, do cálculo, do consumismo, da busca do lucro e da acumulação de capital. Para a educação, isso implica, buscar novos caminhos para colocar a pessoa como referência de todas as ações educacionais. Tarefa nada fácil e, na pós-pandemia, o desafio será ainda maior. Porém, é necessário assumi-lo para retomar a preocupação e o cuidado com a pessoa como um projeto prioritário da sociedade.

Notas

[1] CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, ARTIGO 205: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

[2] MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Trad. João Bénard da Costa. 3ª ed. Santos, SP: Martins Fontes, 1974. 3 MOUNIER, 1974, p. 18.

[4] MOUNIER, 1974, p. 200: "Porque se educa a criança? Esta pergunta depende doutra: qual é o fim dessa educação? Este não consiste em fazer, mas em despertar pessoas. Por definição uma pessoa suscita-se por apelos, não se fabrica domesticando. A educação não pode ter como fim, moldar a criança ao conformismo dum meio familiar, social ou estadual [estatal], nem se restringirá a adaptá-la à função ou papel que lhe caberá desempenhar quando adulto".

[5] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 6 MOUNIER, 1974, p. 64. 7 PP, Francisco. Laudato Si': sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus, 2015. São Paulo: Edições Loyola, 2015. 8 LAUDATO SI’, 3.

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