“O coronavírus é um pedagogo cruel”. Entrevista com Boaventura de Sousa Santos

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

06 Julho 2020

É assim que apresenta o coronavírus para nós em seu novo ensaio: “A cruel pedagogia do vírus”, no qual diz que a pandemia de covid-19 é a forma como nosso planeta está nos dizendo basta. Aprenderemos? Essa é a grande questão agora.

Boaventura de Sousa Santos é diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, pesquisador ilustre da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos. Descrito como o “sociólogo da antiglobalização”, é um dos principais impulsionadores do Fórum Social Mundial.

Em seu novo trabalho, o sociólogo reflete sobre todas as lições que este vírus está nos deixando, evidenciando as desigualdades de nossa sociedade, de nosso modelo de desenvolvimento, a respeito do qual Santos é muito crítico.

Um vírus que é capaz de infectar a qualquer um, sim, mas que se cevou com os mais vulneráveis, com os pobres. Afirma que “30% da população mundial tem falta de água”. “Como vão lavar as mãos? A pouca água que tem a necessitam para comer e beber”.

A seguir, uma espécie de síntese da conversa telefônica da BBC Mundo com Boaventura de Sousa Santos.

A entrevista é de Mar Pichel, publicada por BBC Mundo, 02-07-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

 

Em várias esferas, utilizou-se uma retórica belicista e se classificou este vírus como um inimigo. Você se refere a ele como um pedagogo cruel. Qual é a pedagogia deste vírus?

O vírus é um pedagogo no sentido de que está nos dando várias lições. O problema é saber se nós as escutaremos e aprenderemos. É cruel porque a única maneira que o vírus tem de nos ensinar é matando, matando inocentes, e faz isso por milhares e milhares.

O que está buscando nos ensinar?

O vírus é um pedagogo que está nos ensinando que a Mãe Terra não está satisfeita com o modelo de desenvolvimento que temos. Nós somos uma parte muito pequenina, ínfima, da vida do planeta. Só representamos 0,01% da vida no planeta, mas, apesar disso, nos dispomos a tentar destruir o resto da vida. Então, a natureza se defende e está nos dizendo: “assim não, se continuarem assim, haverá mais pandemias”.

Estamos destruindo as matas, poluindo a água, com mineração a céu aberto, expulsando indígenas, camponeses... em uma exploração dos recursos naturais sem limites... com um aquecimento global tremendo... E tudo isso está desestabilizando os habitats dos animais silvestres, e por isso teremos mais pandemias.

Outra coisa que este vírus está fazendo é nos colocando para pensar mais sobre a capacidade do Estado. Há outra lição aí?

Nos últimos 40 anos, disseram para nós que o Estado é ineficiente, é corrupto, e que o bom são os mercados, que o mercado é o melhor regulador da vida social. Mas vem uma pandemia, e ninguém pergunta pelos mercados. Ninguém pede ao mercado que os salve, que os proteja, pedem ao Estado. Essa é uma lição muito importante, e se verdadeiramente a iremos aprender, então, temos que reinvestir em educação, em saúde, transportes e infraestrutura que não temos. Em muitos países se privatizou a saúde, nos Estados Unidos, por exemplo, nem sequer existe um sistema público de saúde. Parece-me que este é um ensinamento muito forte.

Outra lição é que me parece que houve governos, alguns de direita ou de extrema direita, que se revelaram muito incompetentes para proteger a vida das pessoas. Falo da Inglaterra, dos Estados Unidos, do Brasil, da Índia, e de outros países. São países cujos governos criaram uma equação fatal entre a economia e a vida, e disseram que a economia é mais importante que a vida, e por isso resistiram em ordenar confinamentos, menosprezaram a gravidade da pandemia, atrasaram e esse atraso se traduziu em milhões de mortes.

O caso da Inglaterra é paradigmático. O senhor Boris Johnson queria privatizar o Serviço Nacional de Saúde, e depois esse Serviço Nacional de Saúde foi o que o salvou. Esse é outro ensinamento: a vida é mais importante que a economia.

Outra lição muito importante é que o vírus também nos mostrou que, ao contrário do que muitos pensam, não é democrático em nada. É caótico, é claro. Entra e infecta pessoas de todas as classes, é verdade, mas a quem mata? Mata os que já são vulneráveis, os pobres, os que não têm acesso à saúde. Nesse sentido, como diria (Eduardo) Galeano, o vírus mostra “as veias abertas” do mundo.

Você disse que, como modelo social, o capitalismo não tem futuro. Que cenários esta pandemia nos deixa sobre a mesa? Quais são as alternativas?

A alternativa é começar realmente por uma transição que será longa, não se pode mudar a sociedade de um dia para o outro, seria uma ruptura, uma revolução, não estamos em tempos de revoluções muito radicais.

A primeira coisa é a matriz energética, que seria necessário mudar rapidamente, ou seja, ir para energias renováveis. Em segundo lugar, as estratégias de consumo precisam ser alteradas, particularmente a alimentação.

Não faz sentido que os países tenham que importar alimentos, quando podem produzi-los dentro de suas fronteiras. Chamamos isso de soberania alimentar e é fundamental porque se ocorre uma crise, uma pandemia, e um país depende da agricultura de outro país, isso pode significar fome, e isso aconteceu.

Aconteceu agora, por exemplo – um caso que conheço bem –, entre Moçambique e África do Sul. Moçambique depende dos produtos agrícolas procedentes da África do Sul e quando a fronteira foi fechada, criou-se uma crise. E precisamos começar por uma lógica do bem comum. Há produtos que são um bem comum e nunca deveriam ser privatizados. A água, por exemplo, é um bem comum que não deveria ser privatizado.

Vimos isso nesta pandemia com uma brutal crueldade. Por um lado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) disse que as pessoas devem lavar as mãos, por outro, as pessoas ficaram sem emprego, e não podiam pagar as contas, então, as companhias cortam a água. Em alguns países, na América Central, por exemplo, os governos tiveram que suspender os cortes de água por falta de pagamento.

A globalização está em questão? Haverá uma mudança de paradigma?

Pode [ser]. Não acredito que seja uma mudança radical, mas muitos países estão pensando realmente que é preciso repensar a parte industrial, para que bens essenciais estejam disponíveis no país e não sejam dependentes, como se viu, da China.

Não faz sentido que o país mais poderoso do mundo, que é os Estados Unidos, não produza luvas, máscaras, ventiladores... coisas essenciais. Temos que relocalizar alguma indústria de bens essenciais.

A pandemia impôs mudanças drásticas em nossas vidas. Em alguns países, foram decretadas quarentenas severas. As ruas estavam vazias. Acredita que as sociedades estão preparadas para viver de outra maneira, como alternativa a essa vida de consumo constante?

Preparadas não estão, mas o importante é saber que somos capazes. Somos capazes de não ir ao supermercado a qualquer hora, nem passar o fim de semana no centro comercial. Somos capazes, mas porque fomos forçados.

O importante é que existe a possibilidade, que há alternativa para que as pessoas possam cuidar de seus filhos, ficar mais em casa, consumir menos..., mas porque as pessoas foram forçadas de uma maneira cruel. Agora, penso que deveríamos ver uma pedagogia nisso, porque este modelo de desenvolvimento e consumo que temos nos trará outras pandemias.

Entraremos em um período que chamo de pandemia intermitente, ou seja, saímos à rua, vamos aos bares, durante alguns meses, depois vem o inverno, as coisas pioram..., pois não sabemos quando teremos uma vacina e, além disso, porque obviamente podem surgir outros vírus, talvez mais mortíferos.

É realmente por meio de uma ação política e uma ação educativa que as pessoas deveriam se preparar de outra maneira. Nossos produtos são fabricados para que durem pouco tempo. Um relógio poderia durar a vida toda, mas as pessoas trocam de relógio conforme a cor da roupa. Isto, que chamamos de obsolescência dos produtos, é programada para que durem muito pouco e gastar mais recursos naturais.

Antes, mencionou a recomendação da OMS sobre lavar as mãos. Algo que vimos, e que você destaca em seu ensaio, é que instituições globais, como a OMS, fizeram recomendações que, na realidade, uma pequena parte da população podia observar. Acredita que estas instituições da governança global estão distantes das sociedades?

Estão porque são instituições que realmente não refletem a realidade, porque estão especializadas. A OMS não trata sobre a desigualdade, esse é outro departamento da ONU e, por isso, faz as recomendações, mas não se preocupa se as pessoas tem a possibilidade de lavar as mãos.

Sabemos que 30% da população mundial tem falta de água, e de água potável ainda mais. E que até 2050, metade da população não terá água potável. Muitas pessoas, a pouca água que possuem, é para beber e cozinhar, não para lavar as mãos.

Por outro lado, a distância física e sanitária... Como, se você vive em villas miséria, em barriadas, em favelas onde no mesmo espaço convivem de 10 a 15 pessoas? Como podem teletrabalhar os uberizados que entregam a comida para você? Eu posso me proteger teletrabalhando, mas alguém me trará a comida, e essa pessoa não está protegida. Isto não pode seguir por este caminho de vulnerabilidade.

E qual pensa ser o papel dos intelectuais nesse cenário de crise e no da pós-crise?

Os intelectuais têm precisam acompanhar muito as aspirações das pessoas e trabalhar não somente no meio universitário, mas nas comunidades. Eu trabalho muito nas periferias da Colômbia, do México, da Argentina, do Brasil, etc., com as pessoas, para aprender com elas. Não podemos ir com teorias de vanguarda dizendo que iremos mudar tudo de um dia para o outro, porque não me parece que seja possível. Acredito que é preciso ir devagar e teremos que ser pedagogos desta alternativa.

Eu aprendo mais com os indígenas do que com outros. Em termos ecológicos, aqueles que me ensinam o que é são os indígenas e os camponeses. São eles os que sabem cuidar da Mãe Terra e ser porta-voz. Penso que os intelectuais deveriam ser porta-vozes de muitas vozes silenciadas no mundo e que são vozes do futuro, não são vozes do passado.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

“O coronavírus é um pedagogo cruel”. Entrevista com Boaventura de Sousa Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU