Sínodo para a Amazônia: um afresco para a “casa comum”. Artigo de Antonio Spadaro

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03 Novembro 2019

“Contemplando os trabalhos sinodais, tem-se a impressão de se estar na frente de um afresco. Um grande afresco onde tudo está interligado”.

O relato é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, em seu caderno 4.065, volume IV, 02-11-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região pan-amazônica acaba de se concluir. Oferecemos aqui algumas reflexões no calor do evento sobre o valor dessa assembleia sinodal – a quarta do pontificado de Francisco, depois dos dois Sínodos sobre a família e o Sínodo sobre os jovens. Já podem ser discernidos alguns traços fundamentais dessa experiência, que incidirão na vida da Igreja.

Um grande afresco onde tudo está interligado

Contemplando os trabalhos sinodais – e quem escreve os viveu de dentro como membro de nomeação pontifícia e parte da comissão para a informação – tem-se a impressão de se estar na frente de um afresco, o do Apocalipse citado no início do documento final: “E aquele que está sentado no trono declarou: ‘Eis que faço novas todas as coisas’. E disse: ‘Escreve, pois estas palavras são fiéis e verdadeiras’’ (Ap 21,5). Tudo está sob os olhos de Cristo Senhor, e tudo pede para ser renovado: a vida da Igreja, a política, a economia, a proteção da casa comum, a liturgia.

Um grande afresco, portanto, onde tudo está interligado, como alguns membros do Sínodo às vezes cantaram – e não só disseram – na Sala. Às vezes, para se expressar, eles também recorreram à poesia do seu povo.

A assembleia foi aberta no dia 6 de outubro, com orações, cantos e danças em uma procissão que acompanhou o Santo Padre desde o túmulo de Pedro até a Sala sinodal.

O afresco começou a ser pintado no dia 19 de janeiro de 2018, durante a viagem apostólica de Francisco ao Peru, quando ocorreu o extraordinário encontro entre o pontífice e 22 povos indígenas em Puerto Maldonado. Lá, Francisco exortou a todos a “moldar uma Igreja com um rosto amazônico e uma Igreja com um rosto indígena”. O “rosto amazônico” da Igreja foi reiterado claramente no documento final (nn. 42, 54, 55, 86, 92, 108, 115, 120).

Muitos expressaram a clara consciência de que tudo o que ocorre na Amazônia tem uma repercussão sobre o mundo. Essa região é uma caixa de ressonância global, tanto biológica quanto político-econômica, quanto ainda sociorreligiosa. A Amazônia é um banco de provas do mundo. E a região está em chamas: o incêndio deve ser apagado. Nunca como hoje os povos indígenas, afrodescendentes, pescadores, migrantes e outras comunidades tradicionais da Amazônia estão ameaçados pelo desmatamento, pela uniformização e pela exploração.

Esse afresco, feito de grandes contrastes, em que há violência e beleza, rapina e sabedoria, deve ser olhado, compreendido e interpretado – disse o papa no seu discurso de abertura – com “olhos de discípulo” e “coração pastoral”. A hermenêutica do Sínodo, portanto, não é neutra, porque “a nossa opção prévia é a dos discípulos”.

Mas certamente esse também foi um Sínodo profundamente pastoral, que expressa uma Igreja que quer “acompanhar” o caminho dos povos como “aliada”. O fato de as temáticas terem sido abordadas por pastores que vêm de uma precisa região do planeta – que compartilham, senão as mesmas respostas, certamente as mesmas perguntas – evitou levantar as questões em termos abstratos.

Por outro lado, a presença de membros de outras áreas geográficas ou da Cúria Romana permitiu ter sempre presentes tanto a dimensão local quanto a universal da Igreja. Ou, melhor, compreendeu-se como o que se diz sobre a parte tem um reflexo imediato e direto sobre todo o corpo eclesial. Portanto, fez-se uma forte experiência de Igreja.

A convocação foi claramente fruto de uma intuição de Francisco. Ela não estava ligada a um objetivo específico, mas sim a uma urgência candente como uma batata quente, que não pode ser manipulada facilmente, nem amassada em uma torta bem redonda. O papa percebeu uma urgência precisa diante de uma terra que está em uma corrida desenfreada rumo à morte e que exige mudanças radicais e uma nova direção que permita salvá-la.

No entanto, o Sínodo não foi organizado para resolver as grandes tensões da região com soluções fáceis, disciplinadas, prontas para usar. Para refletir sobre a Amazônia, seria bom manter sempre consigo “A oposição polar”, de Romano Guardini, livro tão caro ao pontífice. A Amazônia é uma terra viva e, portanto, de fortes “oposições polares”. O Sínodo abriu um processo de aprofundamento que deverá manter quentes os temas que surgiram e confluirá em uma obra pós-sinodal de implementação.

Digamo-lo imediatamente: a palavra-chave do Sínodo – e, portanto, do documento final – foi “conversão”. Em vários níveis: pastoral, cultural, ecológico e sinodal. A única conversão ao Evangelho se desdobrou nessas dimensões interligadas e requer a disponibilidade a “novos caminhos” e a uma mudança de mentalidade.

A periferia fala a partir do centro

A experiência da região pan-amazônica, que se estende pelo território de nove nações (Guiana Francesa, República Cooperativista da Guiana, Suriname, Venezuela, Colômbia, Equador, Brasil, Bolívia e Peru), foi convocada para Roma e falou a partir de Roma. A periferia falou a partir do centro, com uma consciência de que a sua experiência é ouvida como uma voz profética por toda a Igreja. E, portanto, precisamente por isso, foi julgada por alguns como incômoda. Este é o ponto: hoje a Igreja tem uma necessidade extraordinária de profecia diante dos grandes desafios do presente e para discernir que futuro queremos construir.

Roma tornou-se lugar de escuta profunda de experiências do catolicismo consideradas como “periféricas” e de fronteira. A abordagem “missionária” foi decididamente integrada com a abordagem que valoriza a experiência cristã da Amazônia como significativa e profética para a Igreja universal. De fato, depois da ação missionária, é preciso que a Igreja local descubra as características específicas do próprio rosto para o bem de todo o corpo da Igreja universal.

Devemos, portanto, distinguir entre Igreja “indigenista”, que considera os indígenas como objeto de pastoral, e Igreja “indígena”, que considera os indígenas como protagonistas da própria experiência de fé. Decisivamente, é preciso apontar para uma Igreja “indígena”, isto é, sujeito de evangelização.

A Igreja busca a profecia deslocando o centro de gravidade da área euro-atlântica e apontando diretamente para uma terra onde estão se concentrando gigantescas contradições de caráter político, econômico e ecológico. Aqui a Igreja faz experiência de um povo que claramente não coincide com um Estado nacional e que, ao contrário, é um conjunto de povos, perseguidos e ameaçados por tantas formas de violência. São povos portadores de uma enorme riqueza de línguas, culturas, ritos e tradições ancestrais.

A eles foi dada a voz para compilar o texto inicial, o Instrumentum laboris, para cuja redação foram consultadas cerca de 87.000 pessoas na Amazônia. Bispos e leigos provenientes de cidades e culturas diferentes, além de pertencer a numerosos grupos de vários setores eclesiais, junto com acadêmicos e organizações da sociedade civil, encontraram-se durante semanas, escutando e dialogando.

Ecologia integral entre florestas e cidades

Como bem se afirma no documento final, na Amazônia, a vida esta inserida, ligada e integrada ao território que, como espaço físico vital e nutritivo, é possibilidade, sustento e limite da própria vida. A água e a terra dessa região nutrem e sustentam a natureza, a existência e as culturas de centenas de comunidades que residem nas margens dos rios e dos habitantes das cidades.

Mas a Amazônia hoje é uma beleza ferida e deformada, um lugar de dor e violência. Os ataques à natureza têm consequências para a vida dos povos: dos megaprojetos não sustentáveis (projetos hidrelétricos, concessões florestais, desmatamento em massa, monoculturas, infraestruturas viárias, infraestruturas hídricas, ferrovias, projetos de mineração e petrolíferos) à poluição causada pela indústria da mineração e pelos lixões urbanos.

Com isso, nunca se pretendeu dizer na Sala que a Igreja é contra os projetos de modernização positiva e inclusiva. Certamente, porém, a Igreja assumiu a plena consciência de que a sua doutrina social hoje traz no coração a defesa do planeta e que está em rota de colisão com interesses políticos e econômicos, apoiados pela cumplicidade de alguns governantes e de algumas autoridades indígenas. As vítimas são os sujeitos mais vulneráveis: as crianças, os jovens, as mulheres e a “irmã mãe terra”.

O documento final propõe “como maneira de reparar a dívida ecológica” que os países têm com a Amazônia “a criação de um fundo mundial para cobrir parte dos orçamentos das comunidades presentes na Amazônia que promovem seu desenvolvimento integral e autossustentável e, assim, também protegê-las da ânsia predatória de querer extrair seus recursos naturais por parte empresas nacionais e multinacionais” (n. 83).

O Sínodo para a Amazônia é filho da encíclica Laudato si’. E deu às reivindicações daquele texto um corpo visível, referindo-se a uma região e aos povos que a habitam. A relação entre o cristianismo e a vida do mundo pareceu inervada por um saudável realismo, para além de toda ideologia, assumindo finalmente as características de um compromisso decidido pelo valor global, sempre fruto do impulso e evangélico que requer uma “conversão ecológica”. As temáticas teológicos na Sala sinodal sempre estiveram estreitamente entrelaçadas com a vida concreta dos povos, com as tensões geopolíticas, com o cuidado da “casa comum”.

Vice-versa, os temas ecológicos foram vividos em uma perspectiva de fé, como parte da doutrina social da Igreja e nas suas íntimas conexões com o desejo de justiça, a escuta do grito dos pobres e a promoção dos direitos humanos. Por isso, falou-se também do “pecado ecológico”, entendido como “uma ação ou omissão contra Deus, contra o próximo, a comunidade e o ambiente. É um pecado contra as futuras gerações e se manifesta em atos e hábitos de contaminação e destruição da harmonia do ambiente, transgressões contra os princípios de interdependência e a ruptura das redes de solidariedade entre as criaturas (cf. Catecismo da Igreja Católica, 340-344) e contra a virtude da justiça” (n. 82).

A partir daí se compreende que, no documento final (cf. nn. 79 e 82), tenha-se pedido a criação de ministérios especiais para o cuidado da “casa comum” e a promoção da ecologia integral em nível paroquial e em todas as jurisdições eclesiásticas da Amazônia. A sua função deveria ser a de cuidar do território e das águas junto às comunidades indígenas. Assim como se falou de criar um ministério de acolhida para aqueles que se afastaram dos seus territórios, indo rumo às cidades.

A leitura do território não se limitou à floresta, mas também disse respeito às cidades e à vida urbana que caracteriza grande parte da região amazônica. Constatou-se que o desenraizamento dos vínculos territoriais e ancestrais pode provocar a perda de identidade, uma desorientação profunda.

Discutiu-se longamente sobre as migrações. O deslocamento forçado de famílias indígenas, camponesas, afrodescendentes e pertencentes aos povos que vivem ao longo das margens dos rios, expulsas dos seus territórios por causa de pressões ou de exasperações diante da falta de oportunidades, requer uma pastoral de conjunto na periferia dos centros urbanos. Por isso, reiterou-se a importância de uma “ecologia integral”.

O fato de a preocupação com a salvação – a salus animarum – ter estado profundamente ligada à preocupação com o destino da Terra e da humanidade inteira foi uma prova da maturidade teológica e eclesiológica desse Sínodo.

Conversão cultural

Na região amazônica, existe uma realidade multiétnica e multicultural. Dentro de cada cultura, os povos construíram e reconstruíram a sua visão do mundo e do seu futuro. Nas culturas e nos povos indígenas, antigas práticas e interpretações míticas coexistem com as tecnologias e os desafios modernos. A Sala sinodal foi o reflexo de tudo isso, revelando também uma alma profundamente mestiça.

O próprio conceito de inculturação pareceu obsoleto. A Igreja na Amazônia é feita de pastores indígenas e missionários: o espanhol e o português falados na Sala ressoaram com sotaques ora talianos, ora poloneses, ora alemães; e os indígenas não esqueceram o uso das línguas nativas. Até a herança dos conquistadores do passado penetrou na sua vida e na sua devoção. Tudo se misturou e se interligou, dando vida a um organismo vivo, vivas, original. Essa é a Igreja de rosto amazônico, distante daquilo que o próprio papa definiu como “centralismo ‘homogeneizante’ e ‘homogeneizador’”.

O Sínodo também reconheceu que o anúncio de Cristo, muitas vezes, foi realizado com uma abordagem colonialista e em conivência com os poderes que exploravam os recursos e oprimiam as populações. Essa já era uma clara premissa explicitada por Francisco no seu discurso introdutório ao Sínodo, quando afirmou que nós “nos aproximamos dos povos amazônicos na ponta dos pés, respeitando a sua história, as suas culturas, o seu estilo de bem-viver”. E, de fato, a Igreja quer ser uma “aliada” dos povos.

Nesse sentido, outro elemento claro foi o desejo da Igreja de uma “conversão cultural”, capaz de dar uma resposta que seja autenticamente católica à solicitação de imergir plenamente o anúncio do Evangelho e a liturgia em uma cultura específica, valorizando a “cosmovisão”, as tradições, os símbolos e os ritos originários. Mas também de tal modo que o Evangelho purifique e refine as culturas nas quais se enxerta. Somente uma Igreja missionária inserida e inculturada levará ao nascimento de Igrejas particulares autóctones, de rosto e de coração amazônicos, enraizadas nas culturas e tradições próprias dos povos, unidas na mesma fé em Cristo e diferentes no seu modo de vivê-la, expressá-la e celebrá-la.

Em particular, foi apreciado o fato de que o pensamento dos povos indígenas ofereça uma visão integrada da realidade, capaz de compreender as múltiplas conexões existentes entre tudo o que é criado. E isso contrasta com a corrente dominante do pensamento ocidental, que, para compreender a realidade, tende à fragmentação e à decomposição.

A necessidade de inculturação também levou a refletir sobre a importância do diálogo com as religiões indígenas e os cultos afrodescendentes. Assim, chega à sua maturação o debate eclesial sobre os ritos locais e sobre a inculturação das raízes muito antigas. Foram citados pelo próprio pontífice os grandes missionários na Ásia, como De Nobili na Índia e Matteo Ricci na China, que se defrontaram com esses desafios. Chama a atenção o fato de que a primeira intenção da oração dos fiéis na missa de inauguração do Sínodo para a Amazônia tenha sido feita em língua chinesa.

Uma Igreja de discernimento, sinodal, inculturada, sacramental e totalmente ministerial

Se tivéssemos que sintetizar as palavras-chave sobre a Igreja que emergiram na assembleia, elas poderiam ser reconhecidas em “discernimento”, “sinodalidade”, “inculturação”, “sacramentos” e “ministérios”.

Discernimento. Disse-se que a Igreja na Amazônia é chamada a caminhar no exercício do discernimento. Isso significa “determinar e recorrer como Igreja, mediante a interpretação teologal dos sinais dos tempos, sob a orientação do Espírito Santo, o caminho a seguir no serviço do desígnio de Deus. O discernimento comunitário permite descobrir um chamado que Deus faz ouvir em cada situação histórica determinada” (n. 90).

Sinodalidade. O discernimento fundamenta a “conversão” sinodal da Igreja. Ouvimo-nos por muitas horas durante o Sínodo. E se discutiu muito, tanto na Sala quanto nos grupos, e com franqueza, dentro de um discernimento comunitário exigente para o qual se invoca a presença do Espírito. E assim as palavras compartilhadas entre os Padres sinodais foram abertas, francas, livres, fiéis à Igreja, impulsionadas por uma urgência pastoral extraordinária e compartilhada. Cada assunto abordado revelou o desejo de estar na verdade do Evangelho e de construir o mundo de acordo com essa Boa Notícia.

As propostas de modificação do primeiro esboço do documento final foram nada menos do que 831. A participação e o debate, também nos “círculos menores”, nesse sentido, foram muito ricos.

E essa já é uma grande novidade no nosso mundo, no qual as democracias muitas vezes não ouvem os cidadãos e em que a polarização das posições ideológicas é exacerbada em detrimento do diálogo. No Sínodo, confrontaram-se posições até mesmo diametralmente opostas sobre tantos temas, mas sempre no respeito recíproco e pelo bem da Igreja e do povo da Amazônia.

Esse Sínodo ofereceu a oportunidade para refletir sobre como estruturar as Igrejas locais em todas as regiões e países, e para prosseguir rumo a uma conversão sinodal. Falou-se de criar estruturas sinodais regionais, imaginando formas de associação interdiocesana em cada nação ou entre países de uma região e que favoreçam uma maior cooperação entre as Igrejas irmãs. Em particular, foi proposta a criação de um organismo episcopal permanente e representativo, articulado com o Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano), com uma estrutura própria e uma organização simples, e ligado também com a Repam (Rede Eclesial Pan-amazônica). Seria o nexo capaz de articular redes e iniciativas eclesiais e socioambientais em nível continental e internacional.

Inculturação. Já falamos da “conversão cultural” e de como isso tem uma recaída sobre a liturgia, que deve responder à cultura para que seja fonte e ápice da vida cristã e para que se sinta ligada aos sofrimentos e às alegrias do povo. Devemos dar uma resposta autenticamente católica ao pedido das comunidades amazônicas de adaptar a liturgia, valorizando a visão de mundo, as tradições, os símbolos e os ritos originários. Por isso, muitos fizeram a proposta de estudar a “elaboração de um rito amazônico, que expresse o patrimônio litúrgico, teológico, disciplinar e espiritual amazônico, com especial referência àquilo que a Lumen gentium afirma para as Igrejas orientais (cf. LG 23)” (n. 119).

Também se poderia estudar e propor como enriquecer os ritos eclesiais com o modo pelo qual esses povos cuidam do seu território e se relacionam com as suas águas.

Sacramentalidade. Além disso, sentiu-se uma fortíssima urgência pastoral e uma convicta paixão pela sacramentalidade do catolicismo, que tem a Eucaristia no centro. Além das possíveis soluções sobre as quais se discutiu, sempre se expressou a consciência do drama pelo qual as comunidades têm dificuldade de celebrar regularmente a Eucaristia devido à falta de sacerdotes. Falou-se claramente do direito dos fiéis de não permanecer em jejum eucarístico e da obrigação dos pastores de prover o pão, porque não é possível que se forme uma comunidade cristã senão assumindo como raiz e como eixo a celebração da Santa Eucaristia.

Ministerialidade. Bispos e sacerdotes contaram as suas experiências. Eles fazem o que podem, atravessando grandes distâncias. Mas as comunidades muitas vezes vivem graças ao compromisso dos leigos e das leigas. Desdobrou-se diante dos Padres uma Igreja totalmente ministerial, sobre a qual nos interrogamos para aprofundar o que significa que a Igreja está fundada sobre o batismo.

Nesse sentido, disse-se que o bispo pode confiar, com um mandato por tempo determinado, na ausência de sacerdotes, o exercício da pastoral das comunidades a uma pessoa não investida com o caráter sacerdotal, que seja membro da própria comunidade. O bispo também poderá constituir esse ministério também com um mandato oficial por meio de um ato ritual, para que o responsável da comunidade seja reconhecido também em nível civil e local.

O Sínodo reconheceu a ministerialidade que Jesus reservou para as mulheres. Por isso, foi solicitada a revisão do motu proprio Ministeria quaedam, de São Paulo VI, para que também mulheres adequadamente formadas e preparadas possam receber os ministérios do leitorado e do acolitado, entre os outros que possam ser realizados. Em particular, considerando também o papel decisivo das mulheres nas comunidades amazônicas, foi pedido que seja criado para eles o ministério instituído de “dirigente de comunidade”, dando-lhes um pleno reconhecimento (cf. nn. 96 e 102).

Reiterou-se a importância dos diáconos permanentes. A questão dos chamados viri probati não se baseou em nada no questionamento do celibato, mas precisamente ouvindo o drama percebido da ausência dos sacramentos na vida comum de tantos fiéis. E se afirmou a proposta de “estabelecer critérios e disposições por parte da autoridade competente, no marco da Lumen gentium 26, de ordenar sacerdotes a homens idôneos e reconhecidos pela comunidade, que tenham um diaconato permanente fecundo e recebam uma formação adequada para o presbiterado, podendo ter família legitimamente constituída e estável, para sustentar a vida da comunidade cristã mediante a pregação da Palavra e da celebração dos Sacramentos nas zonas mais remotas da região amazônica” (n. 111).

Todas essas propostas devem ser colocadas em uma visão ampla e madura da Igreja, alheia ao clericalismo, ciente do fato de que os leigos já têm, de fato, em muitas situações, a tarefa de ensinar e de reger comunidades eclesiais.

* * *

Os Padres sinodais eram, ao todo, 184. Entre estes, 113 provinham das diversas circunscrições eclesiásticas pan-amazônicas. Participaram do Sínodo seis delegados fraternos, representando outras Igrejas e comunidades eclesiais presentes no território amazônico; assim como 12 convidados especiais e 25 especialistas, escolhidos pela sua elevada competência científica. Os auditores e auditoras eram 55; provinham, em sua maioria, da região pan-amazônica, até mesmo dos lugares mais internos, e trouxeram a voz e o testemunho vivo das tradições, da cultura e da fé dos seus povos.

Queremos encerrar esta apresentação dos trabalhos sinodais com a resposta que justamente um auditor, o professor Delio Siticonatzi Camaiteri, membro do povo Ashaninca – um grupo étnico amazônico do Peru –, deu à pergunta de um jornalista durante um dos briefings cotidianos junto à Sala de Imprensa da Santa Sé:

“Vejo-os um pouco inquietos, como se não entendessem o que a Amazônia precisa. Nós temos a nossa cosmovisão, a nossa forma de ver o mundo que nos rodeia. E a natureza nos aproxima mais de Deus. Nos aproxima do rosto de Deus na nossa cultura, na nossa vivência. Porque nós, como indígenas, vivemos a harmonia com todos os seres que há ali. Eu vejo que não lhes ‘desce’ a ideia de nós como indígenas. Vejo-os preocupados, duvidosos diante dessa realidade que buscamos como indígenas. Não endureçam o seu coração, suavizem o coração. É a isto que Jesus nos convida: que vivamos juntos. Cremos em um só Deus. No fim de tudo isso, vamos estar unidos. É isso que desejamos como indígenas. Temos os nossos ritos, mas esse rito deve se incorporar ao centro que é Jesus Cristo. Não há mais nada a se discutir sobre esse tema. O centro que nos une neste Sínodo é Jesus Cristo”.

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Sínodo para a Amazônia: um afresco para a “casa comum”. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU