“Sim, nós podemos combater as desigualdades”. Entrevista com Thomas Piketty

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16 Setembro 2019

Em seu último livro, Capital e Ideologia, Thomas Piketty analisa a formação das desigualdades e suas justificativas ideológicas. E dá, em uma ótima entrevista, pistas para um horizonte mais igualitário.

A entrevista é de Christian Chavagneux, publicada por Alternatives Économiques, 12-09-2019. A tradução é de André Langer.

“É a primeira vez que eu me torno presidente de alguma coisa!”, disse rindo Thomas Piketty em julho passado. Seus colegas o elegeram para presidir a Ecineq [Society for the Study of Economic Inequality], uma sociedade destinada a combater as desigualdades. O economista aproveitou o seu discurso “presidencial” para apresentar, com antecedência, algumas das ideias mestras do seu livro mais recente Capital et Idéologie [Capital e Ideologia], publicado no 12 de setembro último, na França, enquanto se aguarda que uma edição em inglês chegue às livrarias dos Estados Unidos na primavera de 2020.

Ele sabe que está sendo esperado na esquina. Após os 2,5 milhões de exemplares vendidos de seu livro anterior, os leitores críticos se perguntam se é capaz de se renovar. E o efeito surpresa do “fenômeno” Piketty terá um peso menor. “Ainda assim, é o meu melhor livro!”, argumenta o pesquisador em seu escritório na Escola de Economia de Paris neste outono. O que podemos encontrar nessa imponente nova obra de mais de 1.200 páginas?

Um balanço histórico

É preciso voltar às razões responsáveis pelo sucesso do livro anterior: a observação empírica da dinâmica das desigualdades em um longo período. O plano é, ao mesmo tempo, mais histórico – remonta ao século XVIII – e mais vasto, cobrindo muitos países europeus, particularmente a França e o Reino Unido, mas também os Estados Unidos, com longas passagens sobre a Índia e a China, excursões ao Brasil, Rússia, Irã e muitos outros países. Em suma, uma abordagem menos centrada no Ocidente do que a anterior, focada principalmente na França e nos Estados Unidos.

Constata-se então que a Revolução Francesa não mudou muito a concentração das riquezas. De fato, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a França, assim como o Reino Unido, é mais desigual do que no Antigo Regime! A verdadeira revolução ocorreu durante o século XX, com a emergência de uma classe média patrimonial: os 10% mais ricos perdem peso a favor dos 40% seguintes. Grande parte do livro é dedicada a explicar as razões dessa dinâmica histórica.

Além dos números

Mas o livro vai além dos números. Os leitores curiosos poderão encontrar um artigo publicado por Thomas Piketty em 1995 no Quarterly Journal of Economics, uma revista especializada de economistas científicos. O texto segue os cânones da ortodoxia da época, um trabalho puramente teórico “com agentes racionais” que procura responder à seguinte questão: por que pessoas do mesmo nível de renda votam diferentemente? A resposta foi que as ideias que defendem ao longo da vida desempenham um papel.

Durante os vinte e cinco anos que se seguiram, o jovem economista tornou-se um coletor de dados para chegar à observação mais justa possível sobre a evolução das desigualdades. Isso resultou em um primeiro livro, Les hauts revenus en France au XXe siècle. Inégalités et redistribuitions, 1901-1998 [As altas rendas na França no século XX. Desigualdades e redistribuições, Editora Grasset], publicado em 2001, antes de seu best-seller mundial de 2013: O Capital no Século XXI.

Em Capital e Ideologia, o pesquisador não esqueceu a questão formulada nos anos 1990: a parte mais original do livro propõe uma análise sócio-eleitoral dos votos de acordo com os níveis de escolaridade, renda e patrimônio. Mostra que os partidos socialdemocratas da França, Reino Unido, Estados Unidos e outros países, por mais diferentes que sejam, experimentaram a mesma evolução: enquanto que, de 1950 a 1980, eram depositários dos votos dos menos qualificados e dos mais pobres, passaram a ser o partido dos mais qualificados.

Abandonando os menos favorecidos à sua própria sorte, embarcaram na ideologiaproprietarista”, que celebra o direito de propriedade, apoiando-se sobre sua dimensão emancipatória – todos têm o direito de possuir algo e de se beneficiar da proteção do Estado para sua manutenção –, mas esquecendo seu aspecto desigualitário, os mais ricos acumulando de maneira ilimitada. Vários capítulos mostram que é o retorno de uma ideia desenvolvida ao longo do século XIX.

O abandono dos menos favorecidos

Antes disso, a socialdemocracia desenvolveu o Estado-Providência ao longo do século XX, o imposto progressivo e a proteção dos desempregados, os sistemas de aposentadoria e o salário mínimo. Thomas Piketty não joga o bebê com a água do banho. Mas ele critica os partidos de esquerda por abandonarem a defesa dos menos favorecidos. Estes últimos refugiaram-se cada vez mais na abstenção ou no apoio à extrema direita.

E foi isso que fez as coisas acontecerem: são os partidos de esquerda que abandonaram os de baixo, e não os de baixo que abandonaram os partidos de esquerda. O movimento começou antes da ascensão dos partidos de extrema direita na Europa e também ocorreu em países sem divisões migratórias.

Além disso, a ascensão de um eleitorado “social-nativista”, de acordo com o termo que Thomas Piketty usa para designar aqueles que se apresentam como defensores dos pequenos contra as elites e os imigrantes, não tem nada de inevitável. Se os partidos de esquerda retomarem programas de combate das desigualdades e questionarem a acumulação ilimitada da propriedade poderão ter a esperança de reconquistar o eleitorado popular.

Um novo socialismo

Como fazer isso? Toda a parte final do livro apresenta vários “elementos para um socialismo participativo”. Sendo o capitalismo assimilado à glorificação da propriedade privada, o pesquisador quer mostrar que “é possível realmente superar o capitalismo”. Não existe uma fórmula mágica ou matemática para definir o nível “ótimo” das desigualdades. Toda a análise histórica e geográfica do livro está aí para identificar as ideologias que servem para justificar as desigualdades e encontrar no campo das experiências históricas as trilhas que poderiam ser eficazes para sua redução.

E existem muitas: dar mais poder aos trabalhadores nas empresas, retomar uma tributação fortemente progressiva, de taxa alta, como a que existia entre as décadas de 1930 e 1980, e aproveitar as receitas para conceder a todo cidadão uma dotação de capital, uma espécie de herança para todos. Também exige um forte investimento em educação para combater a injustiça escolar, uma Europa mais democrática que questione a livre circulação de capitais e implante os meios para controlá-los para saber quem é o dono do quê.

Como se vê raramente nos livros de economistas, o tom é humilde, as propostas são apresentadas com cautela, colocadas em debate mais do que expressadas de maneira taxativa. Humildes, mas firmes, com base na análise que as alimenta: não existe nenhum direito a uma propriedade privada inviolável. A acumulação é o resultado de um processo social, não individual. “Nessas circunstâncias, faz todo o sentido que as pessoas que acumularam patrimônios significativos devolvam uma fração disso todos os anos à comunidade”.

Quer gostemos delas ou não, teremos que nos confrontar com as ideias de Thomas Piketty. Aos 48 anos, o economista já está em seu segundo livro importante. “E ainda não acabou!”, disse em meio a uma gargalhada.

Eis a entrevista.

Sua perspectiva histórica e transnacional mostra que todas as sociedades podem conhecer longos períodos de altas desigualdades. Elas são justificadas no nível mais geral pela “ideologia proprietarista”. O que isso quer dizer?

É uma ideologia política que coloca a propriedade privada como um modo de regulação central das relações sociais para alcançar a prosperidade e a harmonia da sociedade. Ela se apresenta em oposição às sociedades ternárias, que encontramos na França sob o Antigo Regime, na Índia, nas sociedades muçulmanas, etc., baseadas em uma divisão em três entre uma classe clerical, a nobreza e os plebeus. A propriedade privada é apresentada como uma fonte de emancipação individual, na medida em que todos podem, em teoria, tornar-se proprietários. Há tanta fé nessa ideia após a Revolução Francesa que o século XIX elevou o nível de proteção da propriedade a um nível de sacralização quase religiosa. Tomemos o exemplo da abolição da escravidão: houve uma compensação financeira dos proprietários de escravos, mas não dos escravos pelos tratamentos que sofreram!

A queda do comunismo na década de 1990 teve o mesmo papel que aquela das sociedades da ordem no século XVIII, ao permitir o desenvolvimento de um “neoproprietarismo” que justificasse a acumulação de direitos de propriedade ilimitada. Seja qual for o nível de riqueza alcançado, não devemos questioná-lo, e as dívidas públicas devem ser pagas integralmente, mesmo se isso sobrecarrega o destino de várias gerações nascidas no lugar errado.

Historicamente, para os países ricos, o século XIX apresentou as maiores desigualdades. Por quê?

Houve debates sobre um possível questionamento da propriedade na época da Revolução Francesa. São discutidos projetos de impostos sobre herança, com taxas de cerca de 70% ou até 80% para os mais altos, mas não foram adotadas. Os acontecimentos fizeram com que os defensores da ideia proprietarista recuperassem o controle e não houve tempo para colocar em prática essas políticas. Ao longo do século XIX, o imposto sobre a herança permanecerá em 1%. Será preciso esperar 1902 para que a França começasse a implementar um imposto progressivo nessa matéria, e permanecerá limitado, com uma taxa que não excederá 6,5% em 1910.

Finalmente, em 1914, a França exibe um nível muito elevado de concentração da propriedade, com quase 60% da riqueza detida pelo 1% mais rico, uma participação ainda maior do que na época da Revolução e quase tão forte do que no Reino Unido, cujas desigualdades resultam de uma extrema concentração da propriedade da terra. Existe uma grande hipocrisia da burguesia francesa da Belle Époque (1880-1914) que defende a ideia de que a França, ao contrário da Inglaterra, é uma república e não precisa de um imposto progressivo, como seria o caso do outro lado do Canal da Mancha. A essa instrumentalização política se soma, devemos admitir, o fato de que as experiências práticas de tributação progressiva estavam ausentes na época. Os conservadores foram bem sucedidos em denunciar a máquina infernal e espoliadora do imposto progressivo das rendas e do patrimônio.

A verdadeira grande revolução histórica é o século XX. Com uma queda no valor das propriedades e uma redução na sua concentração. Sobre o valor, em primeiro lugar, é o resultado direto das destruições causadas pelas duas guerras?

Este não é o único nem o principal fator. Vejamos o Reino Unido, que não foi atingido pelas destruições em massa e onde vemos a mesma evolução. Na Alemanha e na França, essas destruições explicam aproximadamente um quarto da queda nos valores das propriedades. Isso não é desprezível, mas três quartos ainda precisam ser esclarecidos.

Grande parte da poupança privada foi investida no financiamento da guerra através da compra de títulos das dívidas públicas. A inflação e os impostos excepcionais sobre o capital ao final dos conflitos quase reduzirão essa economia a zero. O peso da dívida pública em porcentagem do produto interno bruto (PIB) é, grosso modo, dividido por dez na Alemanha, na França e no Reino Unido. Opta-se então por não pagar uma dívida pública considerada muito grande para o futuro dos países. Isso explica, grosso modo, uma queda aproximadamente pela metade dos patrimônios privados.

O resto se explica pelas evoluções políticas que visam limitar os direitos dos proprietários. Por exemplo, o controle dos aluguéis, que reduz o preço das propriedades; o aumento do poder dos trabalhadores nos conselhos de administração (na Alemanha e nos países nórdicos), o que reduz o valor nas Bolsas das empresas devido aos direitos mais fortes concedidos aos trabalhadores sobre os acionistas.

O século XX também é marcado por uma acentuada queda na concentração dos patrimônios.

Um elemento explicativo é a importância assumida às vésperas da Primeira Guerra Mundial pelas carteiras estrangeiras. Isso é ainda mais verdadeiro quando se situa no topo da distribuição dos patrimônios. Eles serão, portanto, os mais penalizados pelo colapso do valor dos ativos em todo o mundo entre 1914 e os anos 1950. O teto desigualitário de 1880-1914 era o de um mundo proprietarista e colonial.

A evolução das políticas públicas domésticas também desempenha um papel central, com a introdução de um imposto muito progressivo sobre as rendas e as heranças. Todas essas evoluções representam um choque que requer que aqueles que vivem de suas pensões reduzam significativamente seu estilo de vida.

No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, a acumulação do capital, necessária para o crescimento, continua, mas é o resultado de novos estratos sociais: as classes médias. Graças à educação, a acumulação é bem maior do que nas sociedades proprietaristas de antes do primeiro conflito e muito mais eficiente com taxas de crescimento mais altas.

É realmente com a emergência de uma classe média patrimonial que toma o lugar dos mais ricos que se produz uma revolução. Porque a situação evolui pouco para os 50% da base da pirâmide.

Com certeza. Eu quero insistir neste ponto: as sociedades socialdemocratas do pós-guerra têm, apesar de todos os seus sucessos, um limite importante. A metade mais pobre da população realmente nunca teve acesso à propriedade. Os 50% mais pobres nunca possuíram mais de 10% das propriedades, enquanto que os 10% mais ricos nunca possuíram menos de 50% das propriedades.

Desde a década de 1980, as desigualdades voltaram a aumentar. Em todos os países ricos, os partidos de esquerda no poder não foram capazes de enfrentá-las. Por quê?

Deve-se a três fatores: a falta de ambição educacional, a falta de vontade de fazer circular a propriedade e a falta de reflexão para encontrar soluções fora dos territórios nacionais em um período de mundialização.

Sobre a educação, quando se estuda o voto para os partidos socialdemocratas na Europa ou nos Estados Unidos, percebe-se que eles se tornaram partidos de graduados, e não mais de trabalhadores. Entre os anos 1950-1980, são os menos qualificados que votam neles, ao passo que nos anos 1990-2020, são os mais qualificados. É um processo gradual ao longo das décadas que manifesta que os vencedores do sistema educacional, especialmente os do ensino superior, tornaram-se o alvo preferido dos partidos socialdemocratas, enquanto o restante da população se sentiu abandonado.

É verdade que, até os anos 80, o caminho a seguir era mais fácil: levar uma faixa etária a um nível de ensino fundamental e depois ao ensino médio. Uma vez alcançado esse objetivo, é mais difícil levar toda a população ao nível de mestrado ou doutorado! Mas isso não impediu de pensar políticas mais justas para o acesso ao ensino superior, o que os socialdemocratas não fizeram o suficiente. Por exemplo, continuamos a gastar mais dinheiro com os colégios e os liceus mais privilegiados do que com os outros ou com as carreiras seletivas do ensino superior do que com a universidade.

E tudo isso é feito em um contexto geral de declínio dos investimentos em educação, que passaram de 1% da renda nacional no início do século XX para pouco mais de 6% na década de 1990, antes de estagnar, ou mesmo sofrer uma queda, apesar do forte aumento no número de estudantes. O que, a propósito, explica em parte a redução do crescimento. Os socialdemocratas perderam, assim, o voto dos menos qualificados ao mesmo tempo em que os mais ricos continuam a votar nos partidos mais conservadores, mesmo se têm a tendência a se aproximar das elites qualificadas.

E sobre as políticas públicas relativas à partilha da propriedade?

A promessa de igualdade dos socialdemocratas não se cumpriu. Em parte porque se tornaram os partidos dos diplomados. Mas a queda do comunismo desempenhou seu papel. Os socialistas franceses e os trabalhistas britânicos permaneceram em uma abordagem centrada na nacionalização até a década de 1980, antes de passar sem dificuldades às privatizações. Na Alemanha ou nos países nórdicos, que haviam recorrido à propriedade e à cogestão social desde a década de 1950, esse caminho não foi tão explorado quanto poderia. E em termos de tributação, os sistemas de imposição progressiva da propriedade e da circulação do patrimônio não foram explorados como deveriam.

A ausência de uma proposta diante da mundialização também desempenhou um papel na fraca resposta dos partidos socialdemocratas à progressão das desigualdades.

A construção europeia poderia ter sido sua resposta. A partir do momento em que se aceita um quadro econômico e financeiro transnacional, é normal que as regulações econômicas, fiscais e ambientais públicas assumam uma dimensão transnacional. É impressionante constatar o quanto os socialdemocratas fizeram pouco progresso no assunto. Eles nunca se perguntaram realmente como sair da regra da unanimidade fiscal na Europa. Eles aceitaram a livre circulação de capitais sem exigir sistemas de troca de informações entre países sobre quem detém o quê, o que impede de tributar corretamente esses patrimônios e suas rendas.

É impressionante ver a que ponto Hannah Arendt fez-lhes a mesma censura em 1951 em As Origens do Totalitarismo: os socialdemocratas do período entre guerras ficaram um pouco perdidos porque tentaram pensar seu projeto político quase exclusivamente no âmbito do Estado-nação. As ideologias colonialista, bolchevique, nazista ou o projeto americano, pelo contrário, procuraram pensar a regulamentação da economia mundial em um nível explicitamente transnacional.

Os caminhos que consistem em pensar as soberanias comuns de maneira democrática não são fáceis, mas acho que existem. É urgente fazer propostas nesse sentido. Eu tento contribuir para isso.

Por outro lado, isso significa que nenhuma solução nacional é eficaz?

Não. Eu continuo convencido de que em matéria de educação, de circulação da propriedade, sobre os impostos etc., pode-se fazer muito em nível nacional. Vejamos o imposto de solidariedade sobre a fortuna na França: suas receitas passaram de cerca de 1 bilhão de euros em 1990 para 5 bilhões no momento da sua abolição, uma multiplicação por cinco enquanto o PIB foi multiplicado por dois. Se o imposto de solidariedade sobre a fortuna tivesse sido modernizado, com declarações previamente preenchidas para os patrimônios, como existem para os trabalhadores, então poderia ter recolhido bem mais, cerca de 10 bilhões de euros.

Da mesma forma, o imposto predial permanece extremamente regressivo, não leva em consideração o estado de suas dívidas (quem tem uma casa de 200 mil euros com 190 mil euros de dívida paga o mesmo valor do que quem herdou o mesmo imóvel e que não tem dívida para pagar), nem a posse de um ativo financeiro (aquele que, além de seu imóvel, possui 2 milhões de euros de ativos financeiros paga a mesma taxa que aquele que não tem). Nós podemos fazer progressos em todas essas questões. O aumento das desigualdades não é uma fatalidade. Políticas públicas podem ser implementadas para combater o proprietarismo circundante.

Quais são as suas propostas?

Elas seguem dois eixos principais: a propriedade social e a propriedade temporária. A propriedade social é distribuir, em todas as empresas, a metade dos direitos de voto nos conselhos de administração aos trabalhadores, como ocorre na Europa germânica e nórdica há décadas. Pode-se também tentar limitar os direitos de voto dos maiores acionistas. Se quisermos reduzir as desigualdades, devemos avançar em direção a uma maior propriedade social.

Outro caminho é a propriedade temporária: um imposto progressivo anual sobre a propriedade e a herança. Atualmente, o patrimônio médio por adulto na França é de pouco menos de 200 mil euros. Se você estiver abaixo da média, o imposto sobre a propriedade será muito baixo, cerca de 0,1% do valor do bem, ou, seja, bem abaixo do imposto predial atual. Por outro lado, para participações maiores e, especialmente, para participações muito grandes, superiores a cem milhões ou um bilhão de euros, pode-se passar para taxas de imposto que vão até 90% para os patrimônios acima de 10 mil vezes o patrimônio médio, que é mais de 2 bilhões de euros.

A escala que proponho acabaria com as grandes posses, ao mesmo tempo que contemplaria a possibilidade de manter um patrimônio de vários milhões, ou mesmo dezenas de milhões de euros, para os mais ricos. É difícil justificar a ideia de que uma única pessoa possa ter bilhões de euros. Eu proponho voltar a alíquotas que não são radicais. Elas existiram até a década de 1980, e a experiência histórica mostrou que elas não representam um obstáculo ao crescimento.

Com a recuperação das receitas fiscais, poderíamos estabelecer uma dotação universal em capital, uma herança para todos, distribuída a todos ao completarem 25 anos, de cerca de 120 mil euros. Atualmente, se o patrimônio médio é de 200 mil euros, metade das pessoas não recebe nada. Esta circulação da propriedade também a tornaria mais jovem. Em nossas sociedades em envelhecimento, o poder econômico está sendo controlado cada vez mais pelos idosos. Essa socialização da herança permitiria a cada um receber capitais quando mais precisasse em sua vida, para comprar uma casa, criar sua empresa, etc., ou até para investir na empresa em que trabalha.

Você preconiza efetivamente o desenvolvimento da participação acionária dos trabalhadores. Mas se a sua empresa vai mal, você poderia perder o emprego e as economias.

O acionariado assalariado não convém em todos os casos, mas às vezes pode ser um complemento à propriedade social. Em mais de 50% dos votos dados aos representantes dos trabalhadores, estes últimos também poderiam possuir uma parte das ações da empresa para aumentar mais o seu poder. Não é um modelo universal; cada pessoa permanece livre para usar como gostaria a sua dotação universal. Muitas vezes ouvimos a crítica de que, mesmo com 50% dos votos para os trabalhadores, no final, são sempre os acionistas que decidem tudo. Com uma pequena parcela da participação acionária dos trabalhadores, poderíamos fazer pender o poder para o lado deles.

Em vez de intervir na redistribuição, não deveríamos intervir antes, na distribuição primária, exigindo, por exemplo, um aumento dos salários?

O poder de negociação proporcionado aos trabalhadores terá esse efeito. Uma das consequências será ajudar a reequilibrar a distribuição salários-lucros. Podemos trabalhar em vários parâmetros, incluindo um aumento do salário mínimo, mas só podemos agir de baixo para cima. Parece-me que o mais importante é dar aos trabalhadores um lugar real na gestão das empresas.

Você não fala muito sobre as questões relativas à regulação financeira. No entanto, assim que ocorre uma crise, os outros debates são relegados ao esquecimento. Além disso, as finanças também são responsáveis pelo aumento das desigualdades.

O desenvolvimento das finanças desde a década de 1990 resulta, em primeiro lugar, da liberalização dos fluxos de capitais sem regulação. É aí que devemos agir. Deste ponto de vista, na Europa, seremos obrigados, num momento ou noutro, a revogar os tratados em vigor que permitem esse livre movimento sem controle. A hipertrofia financeira é, em parte, o resultado de movimentos ilimitados de capitais, um mundo em que todos têm todo mundo, mesmo se uma parte dessas transações seja fictícia e represente tentativas de evasão fiscal e de contornar as regulamentações. Controlar o movimento dos capitais que atacam a soberania dos Estados é, na minha opinião, o caminho certo para colocar o mau gênio das finanças na garrafa.

Outra pista a ser cavada é o estabelecimento de uma taxa de juros comum para todos os membros da zona do euro. Ter uma moeda única e dezenove taxas de juros abre as portas para a especulação. Podemos avançar nessa direção sem proceder a uma mutualização das dívidas públicas e às transferências entre os Estados. Essa luta pode ser vencida.

O repertório das ideias é primeiro. Você escreve que as ideias disponíveis podem derrubar as trajetórias históricas. Mas apenas uma experimentação prática bem-sucedida muda a situação, alterando o equilíbrio político-ideológico do poder. O que você aconselharia a um jovem: ser pesquisador ou político?

Os dois! Não há uma única vida boa possível, isso depende das aspirações de cada um. No plano das ideias, acho que uma das razões da nossa desordem democrática é a excessiva autonomia da esfera e da expertise econômica e financeira em relação ao resto da sociedade. Não é uma matéria facultativa. Todos devem se apropriar das questões econômicas. Eu tento contribuir para isso.

Da minha parte, minha carreira é baseada no trabalho de pesquisador, porque é isso que eu gosto de fazer e acho que é o que faço melhor. As ideias são primeiras e devem se espalhar o máximo possível. Dito isso, nas eleições, eu não fico na minha torre de marfim e me forço a participar, às vezes para acompanhar candidatos que não são totalmente satisfatórios... Eu faço assim mesmo porque me parece importante e vou continuar a fazê-lo!

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“Sim, nós podemos combater as desigualdades”. Entrevista com Thomas Piketty - Instituto Humanitas Unisinos - IHU