Como uso de agrotóxicos sem orientação e proteção põe agricultores brasileiros em risco

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11 Setembro 2019

Pesquisas recentes sobre a saúde dos agricultores familiares brasileiros têm chamado a atenção para a prevalência de problemas respiratórios, hormonais, reprodutivos e de alguns tipos de câncer possivelmente associados à exposição aos agrotóxicos.

A reportagem é de Mariana Lenharo, publicada por BBC Brasil, 09-09-2019. 

Apesar de o Brasil ser um dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos, os esforços para medir o impacto desses produtos na saúde dos trabalhadores rurais ainda são incipientes. Em comum, esses novos estudos evidenciam que a falta de orientação e assistência técnica a pequenos agricultores resulta na falta de cuidados adequados para evitar intoxicações.

A discussão sobre a segurança dos agrotóxicos está em alta desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) anunciou, no final de agosto, a aprovação de um novo marco regulatório para agrotóxicos.

Para o pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP Rafael Junqueira Buralli, autor de um estudo sobre a condição respiratória de agricultores familiares expostos a agrotóxicos em uma pequena cidade do Rio de Janeiro, o despreparo é evidente: apenas 22,9% dos trabalhadores rurais avaliados no estudo afirmaram ter recebido treinamento ou apoio técnico para o manejo desses produtos.

Entre os parentes dos trabalhadores, que com frequência auxiliam nas atividades de cultivo e também se expõem aos agrotóxicos, nenhum passou por treinamento.

Impacto na saúde respiratória

A pesquisa de Buralli, publicada em 2018 pelo International Journal of Environmental Research and Public Health, avaliou 82 indivíduos da zona rural de São José de Ubá-RJ por meio de questionários, análise de amostras de sangue e espirometria, um exame que mede a capacidade pulmonar.

Os exames revelaram diminuições dos padrões respiratórios nos trabalhadores rurais em comparação a indivíduos não expostos a agrotóxicos. E quanto maior a exposição, medida pela presença de biomarcadores no sangue, pior foi a condição respiratória observada no participante.

Sintomas como tosse, alergia nasal e dificuldade para respirar foram mais prevalentes durante o período da safra do que na entressafra, o que sugere um efeito agudo durante o período de maior exposição, diz o pesquisador.

Segundo Buralli, 90% dos participantes também afirmaram sentir com frequência ao menos um sintoma agudo de exposição aos pesticidas, entre os quais os mais comuns foram irritações nas mucosas, dor de cabeça, taquicardia e palpitação, tontura, dor de estômago e câimbras. Além disso, 70% dos entrevistados relataram apresentar ao menos um sintoma crônico, como alterações no sono, irritabilidade e dificuldade de concentração e raciocínio.

Em busca de alterações genéticas

Para ilustrar o grau de desconhecimento da população rural de Casimiro de Abreu, no Rio de Janeiro, o enfermeiro Gilberto Santos de Aguiar, do Programa do Saúde do Trabalhador da Coordenação de Vigilância em Saúde da cidade, conta que ele já viu moradores armazenando água para beber em frascos de agrotóxico.

Aguiar faz parte de um projeto que busca investigar a associação dos agrotóxicos com doenças comuns entre os agricultores. A iniciativa surgiu a partir de um caso de câncer de pulmão em um trabalhador rural da cidade em que o médico identificou a exposição aos agrotóxicos como causa do tumor. “Evidenciamos que muitas vezes o adoecimento de um trabalhador rural não é um adoecimento natural, mas por exposição ao agrotóxico”, diz.

O grupo aplicou um questionário sobre uso de agrotóxicos e presença de sintomas em 41 propriedades rurais da região. O resultado foi encaminhado ao serviço de câncer ocupacional do Instituto Nacional de Câncer (Inca), que se interessou pelo projeto e hoje conduz um projeto de investigação de alterações genéticas por exposição a agrotóxicos na região.

Para Aguiar, a desinformação é o principal fator de risco para os pequenos agricultores da região. “A maioria dos agricultores utiliza agrotóxicos sem prescrição agronômica. A compra é orientada pelo funcionário do balcão da loja que vende agrotóxico, ou às vezes é feita na porta da propriedade por um carro que leva o kit de veneno”, afirma. Ele diz que não há nenhuma assistência técnica para orientar sobre o modo de uso e nenhuma fiscalização.

Um levantamento do perfil epidemiológico dos trabalhadores rurais de Casimiro de Abreu, publicado pela Revista Brasileira de Enfermagem no início do ano, constatou que 51,8% da população entrevistada afirma nunca usar equipamentos de proteção individual recomendados durante o manejo de agrotóxicos, como botas, luvas e máscaras respiratórias.

Problemas endócrinos e reprodutivos

Em sua pesquisa, que avaliou o impacto dos agrotóxicos na função da tireoide em trabalhadores rurais da soja da cidade de Sertão, no Rio Grande do Sul, a farmacêutica Tanandra Bernieri também constatou o esse tipo de descuido: nenhum dos 46 agricultores entrevistados afirmou utilizar equipamentos de proteção individual corretamente. Do total, 34,8% afirmou usar luvas apenas na hora de fazer a mistura dos agrotóxicos. “Muitos não sabiam que o agrotóxico pode ser absorvido pela boca quando comem algo com as mãos sujas do produto”, conta Bernieri. “A fonte de informação deles são os vendedores ou pessoas da família e amigos.”

A biomédica Camila Piccoli, mestre pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, também pesquisou os efeitos dos agrotóxicos na tireoide de agricultores do Rio Grande do Sul, da cidade de Farroupilha. Ela e sua equipe constataram que a exposição aos agrotóxicos pode estar relacionada a um quadro de aumento do hormônio TSH e diminuição do hormônio T4, principalmente nos homens avaliados, resultando em sintomas análogos ao hipotireoidismo.

Ela também participou de um estudo, coordenado por seu colega Cleber Cremonese, que selecionou jovens de 18 a 23 anos da mesma região e, por meio do exame de espermograma, constatou a diminuição da mobilidade e morfologia do esperma dos jovens rurais em comparação aos jovens urbanos, além de alterações nos hormônios reprodutivos.

“Não se pode afirmar que as alterações estejam relacionadas somente ao uso de agrotóxicos”, afirma Piccoli. Mas os dados sugerem que os agrotóxicos podem estar relacionados ao fenômeno, principalmente por se tratar de uma população jovem, sem outros fatores de risco.

Novo marco regulatório

O novo marco regulatório anunciado pela Anvisa traz mudanças na classificação toxicológica dos agrotóxicos e inclui mudanças na rotulagem dos produtos. Segundo a agência, as alterações podem facilitar a identificação de perigos à vida e à saúde humana.

Ao mesmo tempo, alguns produtos podem ser reclassificados para um grau de toxicidade menor, já que o novo critério leva em conta apenas estudos de mortalidade, desconsiderando outros sintomas comuns que não levam à morte. Para alguns dos pesquisadores que atuam na área, ainda não está claro se a nova classificação impactará a segurança dos agricultores.

Buralli observa que, como o nível de escolaridade dos agricultores é baixo, com muitos casos de analfabetismo, eles dificilmente leem o rótulo e as instruções da embalagem dos agrotóxicos. “Hoje a instrução parte mais dos técnicos nas lojas agropecuárias. Por isso, o ensino continuado providenciado pelas agências é muito mais importante do que o que está na bula”, afirma.

Para Vilma Santana, professora titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a mudança é preocupante, já que usa como critério somente a morte por intoxicação aguda, quando os casos mais comuns são os de intoxicação crônica.

“Se já temos uma situação de desproteção por conta do baixo nível de importância que se dá ao comportamento preventivo, do baixo nível de escolaridade do agricultor, e do uso indiscriminado de agrotóxico, se o nível de controle é reduzido, eu acredito que as consequências podem ser desastrosas.”

Santana é autora de um levantamento que constatou que houve 1.309 mortes por intoxicação ocupacional provocada por agrotóxicos em trabalhadores rurais entre 2000 e 2009, levando a uma mortalidade de 0,39 por 100 mil no ano de 2009.

“A mortalidade é pequena, mas no mundo desenvolvido, como na Inglaterra, um país que tem agricultura forte, nem se estima a mortalidade porque o número de casos de intoxicação aguda por agrotóxico é praticamente nulo”, afirma.

Para ela, o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer quanto ao estimulo a práticas preventivas, medidas educativas da população rural e fiscalização para chegar ao nível de segurança de países mais desenvolvidos.

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