Que deve um juiz?

Por: Ricardo Machado | 14 Junho 2019

"Se a lei é injusta cabe desobedecê-la, é verdade, mas a desobediência se legitima quando ela é uma desobediência civil, não aquela investida de institucionalidades, sob pena de transformar-se em defesa dos próprios privilégios", escreve Ricardo Machado, jornalista e doutorando em Cultura e Significação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

Eis a crônica.

Permitam-me um causo. Meus amigos mais próximos sabem que eu trabalhei durante anos no Aeroporto de Porto Alegre, na área de inspeção de passageiros. Durante boa parte do tempo coordenei a equipe e meu trabalho consistia, basicamente, em resolver arengas com passageiros que não queriam cumprir os procedimentos de segurança.

Uma vez barrei um ministro. Havia assumido o Ministério das Cidades, no governo Lula na vaga que um dia tinha sido de Olívio Dutra. Ele queria acessar a área de embarque sem inspeção, mas descumpriu o protocolo. Pedi que retornasse e se queixasse à administração da Infraero. Voltou, reclamou, mas depois cumpriu o procedimento correto e quando chegou em Brasília pediu minha demissão ao Superintendente da época. No fim, não me demitiram.

Outra vez uma passageira e sua mãe, uma respeitável e impaciente senhora, queriam acessar a área de embarque com uma série de itens proibidos. Enquanto eu explicava às passageiras as normas estabelecidas pela Agência Nacional da Aviação Civil - Anac, a senhora mais velha ficava repetindo: "Filha, diz pra ele quem você é". A filha mantinha o decoro e tentava encontrar formas de argumentar comigo que minha postura estava sendo arbitrária. Como eu fazia aquele trabalho diariamente há anos, tinha legislação na ponta da língua, não seria fácil encontrar uma brecha. De fato,não encontrou.

Lá pelas tantas a senhorinha, finalmente, soltou a língua: "Filha, diz pra ele que você é juíza!". Pronto. Esse era o meu trunfo. Respondi: "Em sendo juíza, a senhora é maior interessada que a legislação seja cumprida." A passageira esmoreceu, suspirou e imediatamente abandonou seus argumentos e seus itens proibidos. Cumpriu a legislação e acessou à área restrita. Mais tarde embarcaria tranquilamente e em segurança em seu voo. 

Que deve um juiz? A resposta é complexa, mas se é possível respondê-la de forma simples: seu dever é, simplesmente, zelar para que a lei seja cumprida. Se não abandonam sua postura, na maior parte das vezes, tenocrática em nome da justiça social, que tenham a decência de não o fazer em benefício próprio. Se a legislação é contrária a seus interesses pessoais, nada pode o juiz fazer. Agindo em contrário, o juiz torna-se o criminoso. Se a lei é injusta cabe desobedecê-la, é verdade, mas a desobediência se legitima quando ela é uma desobediência civil, não aquela investida de institucionalidades, sob pena de transformar-se, tão somente, em defesa dos próprios privilégios.

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