As enormes consequências do escândalo dos abusos sexuais. Artigo de Massimo Faggioli

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26 Fevereiro 2019

“No horizonte da crise dos abusos sexuais, podem ser intuídas enormes consequências de longo prazo para o papel e a vida da Igreja: o efeito da cultura da transparência e da responsabilidade sobre a religião organizada; a capacidade da Igreja de gerir a psicologia da indignação desafogada nas mídias sociais; uma epocal renegociação das relações entre Igreja e Estado.”

A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, publicada por L’Huffington Post, 25-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

O escândalo dos abusos sexuais na Igreja Católica é um capítulo na história dos desafios trazidos pela modernidade ao fenômeno religioso institucionalmente organizado. De fato, no horizonte da crise dos abusos sexuais, podem ser intuídas enormes consequências de longo prazo para o papel e a vida da Igreja: o efeito da cultura da transparência e da responsabilidade sobre a religião organizada; a capacidade da Igreja de gerir a psicologia da indignação desafogada nas mídias sociais; uma epocal renegociação das relações entre Igreja e Estado.

Na história dos abusos sexuais na Igreja Católica, a cúpula no Vaticano de fevereiro de 2019 é um momento importante. Se a história da sex abuse crisis na Igreja Católica como crise global ainda deve ser escrita, o Papa Francisco inaugurou uma nova fase, aberta não apenas por causa dos novos desdobramentos da crise global entre 2017 e 2018 (em particular na Austrália, no Chile e nos Estados Unidos), mas também devido a uma abordagem diferente para a questão do governo da Igreja por parte do jesuíta Bergoglio.

Acima de tudo, o pontificado de Francisco coincide com a explosão da crise no centro do governo da Igreja com o caso do ex-cardeal McCarrick e a tentativa de golpe de Viganò. Francisco reagiu levando a crise ao Vaticano, que decidiu convocar uma cúpula sem precedentes.

Isso significou uma mudança de significado: Roma não é mais o centro de comunicação às periferias de decisões tomadas de cima ou a sede para encontros bilaterais (como João Paulo II com os cardeais dos EUA em 2002), mas é um dos lugares para o amadurecimento de decisões importantes para a vida da Igreja.

Aqui está a convergência entre a percepção de Francisco sobre o catolicismo como comunhão plenamente global e a eclesiologia da sinodalidade pós-Vaticano II: todos os países do mundo estavam representados na reunião dos dias 21 a 24 de fevereiro; todas as áreas do mundo estavam representadas por oradores convidados para falar; uma contribuição essencial para a conferência veio das mulheres convidadas para falar ao lado e no mesmo título dos cardeais.

Segundo: a eclesiologia da sinodalidade é relevante para compreender o modo pelo qual Francisco pretende gerir a crise dos abusos como crise global. A crise revelou a insustentabilidade de um modelo eclesiológico que, no segundo período pós-Vaticano II (entre João Paulo II e Bento XVI), frustrara o papel teológico das Igrejas locais e nacionais. Nesse sentido, a ação de Francisco também une aos impulsos necessários do centro (da criação da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores em 2014 até a cúpula de fevereiro de 2019) uma nova abertura de espaços para a colegialidade e a sinodalidade das Igrejas locais.

Essa é uma abordagem que reflete a necessidade de criar relações de tipo novo entre o nível central-universal e o nível local no catolicismo romano. Vale a pena lembrar que, antes da eleição do Papa Francisco, no Vaticano e nos altos níveis da hierarquia católica mundial, quase ninguém falava da colegialidade e da sinodalidade da Igreja como dimensões necessárias para combater o clericalismo, causa principal do escândalo.

Terceiro: uma Igreja católica sinodal precisa de discernimento e, portanto, também precisa de espaços e de tempos para uma conversa eclesial que deve preceder qualquer decisão. Esse evento no Vaticano tentou encontrar um equilíbrio entre transparência e acessibilidade através da mídia, por um lado e, por outro, a exigência de criar um clima de discernimento reservado aos participantes.

A escolha de “proteger” o evento do exterior também era motivada por razões de segurança, em um encontro realizado simbólica e materialmente em um clima de assédio por parte das organizações de vítimas e sobreviventes de abusos sexuais. Mas também se deveu à escolha de fazer da cúpula um evento espiritual, e não apenas um evento midiático.

As liturgias do sábado e do domingo foram preparadas de maneira diferente de outros modelos e, em particular, dos de João Paulo II – por exemplo, a solene e pública liturgia de 12 de março de 2000 na Basílica de São Pedro, durante o Grande Jubileu.

Quarto: uma Igreja sinodal está aberta a diversos tipos de contribuições provenientes do mundo exterior. Isso era muito visível nas fontes e organizações citadas pelo Papa Francisco no seu discurso final: Organização Mundial da Saúde, Unicef, Interpol, Europol etc. Um papel especial durante a cúpula foi dado à mídia e aos jornalistas, atores-chave na história da crise dos abusos sexuais na Igreja. Tratou-se, por parte da estratégia vaticana, de uma captatio benevolentiae e também da reparação de uma história – eram os anos de João Paulo II – de jornalistas insultados e difamados por terem investigado os padres pedófilos.

Por outro lado, a cúpula pôs em cena a versão simplificada (as hierarquias eclesiásticas, as vítimas e a mídia) de uma situação muito mais complexa. A cúpula vaticana não incluía outros atores-chave para compreender a complexidade da crise dos abusos: representantes da polícia, advogados, seguradoras e, sobretudo, procuradores gerais e promotores públicos que trabalham pela justiça secular – para silenciar o impacto das mídias sociais.

Quinto: Igreja sinodal significa Igreja aberta à mudança que não é somente estrutural, mas também teológica. A cúpula no Vaticano esclareceu o quanto a Igreja precisa de mulheres que sejam vozes presentes e ativas nos órgãos de governo da Igreja. O Papa Francisco usa uma linguagem típica da sua geração para se dirigir às mulheres, que soa inadequada aos ouvidos de muitos. Mas é inegável que, durante este pontificado, foram dados passos à frente nesse sentido.

No entanto, o espectro das questões de longo prazo é muito mais amplo. Os abusos sexuais são um problema não só das Igrejas ocidentais que enfrentam uma crise de civilização que tem em seu centro a questão sexual e biopolítica. É um problema global e hoje mais grave naqueles países onde ele foi subestimado até agora (incluindo a Itália).

Não se trata apenas de reprimir um fenômeno criminoso, mas também de uma questão teológica: da teologia dos sacramentos (especialmente a ordenação ao sacerdócio) aos modelos eclesiológicos; do papel das mulheres na Igreja ao magistério do último século sobre a moral sexual.

A questão mais complicada diz respeito às reformas estruturais exigidas por uma cultura do sacerdócio e do episcopado que muitas vezes significam honras, mas sem as responsabilidades que delas derivam.

O espectro das questões a serem abordadas é amplo: nesse sentido, o pedido de “tolerância zero” pode se tornar um slogan que não ajuda a compreender a vastidão dos problemas. Para fazer uma comparação, o Concílio de Trento, no século XVI, não respondeu à Reforma Protestante apenas com um programa anticorrupção, mas também com uma reavaliação de algumas categorias teológicas.

Esse é um trabalho que, para a Igreja, ainda está no início e não só por culpa do Vaticano ou das hierarquias eclesiásticas. O escândalo abalou Igrejas em países distantes de Roma: geográfica e culturalmente distantes (especialmente a Austrália e os EUA), onde a teologia é vital, mas, nas últimas décadas, teve pouco impacto sobre a elaboração de políticas doutrinais e o magistério da Igreja.

Com Francisco, o papado deu passos importantes na história da luta contra os abusos sexuais de menores. Mas é uma crise que, nos últimos meses, se ampliou para outros tipos de vítimas (as freiras, os seminaristas) e de culpados (bispos e cardeais). Na Igreja global, nessa comunhão global totalmente feita de periferias, ainda há muitas esquinas para virar.

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