Concílio, 60 anos depois do anúncio de João XXIII: uma decisão inspirada para atualizar a Igreja

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20 Janeiro 2019

A confirmação é dada por páginas de jornais, cartas, notas. O trabalho de muitos historiadores e biógrafos. E as palavras reunidas pelas últimas testemunhas. João XXIII, mais do que familiarizado com a história da Igreja, conhecia bem a importância do Concílio. E sobre os benefícios trazidos por esse instrumento ao longo dos séculos tinham se manifestado em diversas ocasiões com várias pessoas nos anos da delegação de Istambul, na nunciatura de Paris, no Patriarcado veneziano. Não só isso. A convocação de um Concílio já tinha sido sugerida pelo menos duas vezes em 1900: por Pio XI (que depois desistiu de tudo esperando ver resolvida a “questão romana”), e por Pio XII (ao qual os cardeais Ernesto Ruffini e Alfredo Ottaviani tinham confiado um memorando com as razões para a convocação: dois esboços mantidos por muito tempo em segredo, sendo que para o segundo tinha sido nomeado como responsável pela preparação monsenhor Francesco Borgongini Duca, amigo desde a juventude de  Angelo Giuseppe Roncalli, que poderia ter lhe falado a respeito antes de 1954 , ano em que ele morreu).

A reportagem é de Marco Roncalli, publicada por Vatican Insider, 10-01-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

Não é tudo. Vários prelados e escritores há tempo também defendiam como "conveniente" ou "oportuno" um Concílio. Dois exemplos: o dossiê elaborado pelo arcebispo Celso Costantini, registrado sob a data de 15 de fevereiro de 1939 "Sobre a conveniência de convocar um Concílio Ecumênico" com as vantagens anexas; os artigos com que, no mesmo período, Giovanni Papini desejava "uma retomada do Concílio", destinada a ser "recebida com imensa alegria pelos católicos de todo o mundo."

Dito isto, quando foi que, uma vez eleito Pontífice, Angelo Giuseppe Roncalli voltou a pensar ao Concílio? Com quais pessoas tratou do tema? De quem é a inspiração? E como aconteceu naquele 25 de janeiro de 1959, quando o papa anunciou sua decisão agora sedimentada? Com que reações, considerando que estava colocando diante de todos uma escolha surpreendente e irrevogável? Vamos tentar responder. Os sessenta anos que nos separam daquele "gesto de tranquila audácia" (assim foi definido pelo La Croix poucos dias depois) talvez ainda não sejam demasiados para que o tenhamos esquecido. Além disso, existem muitos estudiosos que dedicaram obras monumentais às reuniões do Concílio e, desde a chegada do Papa Francisco, o debate sobre a hermenêutica do Vaticano II tem sido constante.

Hoje sabemos que, sobre a ideia do Concílio, João XXIII, saído do conclave como "papa de transição" aos setenta e sete anos, já tinha falado no dia seguinte à eleição, com o secretário Dom Loris Francesco Capovilla (futuro cardeal centenário, falecido em 2016): "Ele me confiou sua ideia pela primeira vez em 30 de outubro de 1958, nem mesmo quarenta e oito horas depois da eleição. Não era uma decisão, mas uma ideia lançada no ar. A primeira nota escrita é datada de 2 de novembro. João XXIII mencionava aos seus colaboradores mais próximos a eventualidade da reunião universal, quase en passant". Assim Capovilla escreve, em mais de uma entrevista, onde, considerando seu desconforto inicial e que o Papa tinha lhe dito ("Enquanto uma pessoa não coloca o seu eu sob os sapatos nunca será um homem livre") , indicava as primeiras pessoas com quem Roncalli tinha falado (o confessor Monsenhor Alfredo Cavagna, monsenhor Angelo Dell'Acqua, o substituto da Secretaria de Estado ...), sem esquecer também de relatar o primeiro documento conhecido, a folha de audiências, que registra uma entrevista com o cardeal Ernesto Ruffini em 2 de novembro de 1958 e na qual o “Concílio” aparece entre os temas examinados.

Tal como foi confirmado pelos interessados, sempre em novembro o tema é abordado em conversas com o cardeal Giovanni Urbani, seu sucessor em Veneza, e Monsenhor Girolamo Bortignon, bispo de Pádua; em dezembro, em uma audiência concedida no dia 12 ao cardeal Gregorio Agagianian; no início de janeiro de 1959 em um encontro do papa com o amigo Dom Giovanni Rossi, que alude ao Concílio - sem nomeá-lo - em um artigo publicado em meados de janeiro, revelando que o Papa entre “tantas coisas todas belas", confidenciou-lhe "como um grande segredo, uma sua”, comentando que "será em nosso tempo uma das mais gloriosas festas da Igreja e a mais memorável de seu pontificado". Na pequena lista apenas esboçada, no entanto, até agora falta o principal colaborador de João XXIII: o secretário de Estado  Domenico Tardini. O Papa confia na sua opinião, mas só decide falar com ele - como um conforto a mais - apenas quando está certo que a sua não é uma "fantasia absurda", mas "uma inspiração que o obriga a se submeter, como sempre, à vontade de Deus”.

Como ele teria afirmado mais tarde, a ideia do Concílio não tinha amadurecido nele "como fruto de uma meditação prolongada, mas como a flor espontânea de uma primavera inesperada". "Para o anúncio do  Concílio Ecumênico, ouvimos uma inspiração; nós consideramos a sua espontaneidade na humildade de nossa alma", disse em uma mensagem ao clero veneziano. "Eu considerei como inspiração celeste também essa ideia do Concílio ...", ele explicaria aos observadores não-católicos convidados ao encontro em 13 de outubro de 1962. E no mês anterior, em 11 de setembro – em uma anotação – escreveria sobre "uma graça do Altíssimo”, que lhe fez “parecer como simples e imediatas de execução algumas ideias em nada complexas, aliás, extremamente simples, mas de grande alcance e responsabilidades diante do futuro, e com imediato sucesso...”, acrescentando ter pronunciado "em uma primeira conversa com o meu secretário de Estado em 20 de janeiro de 1959, a palavra de Concílio ecumênico, de Sínodo diocesano e de recomposição do Código de Direito Canônico, sem nunca ter pensado, e contrariamente a toda minha suposição ou imaginação sobre esse ponto." "O primeiro a ficar surpreso com esta minha proposta foi eu mesmo, sem que ninguém me desse qualquer indicação. E dizer que depois tudo me pareceu tão natural em seu imediato e contínuo desenvolvimento", concluiu Roncalli.

Oficialmente, João XXIII falou com Tardini do Concílio ("toda a iniciativa e execução de sua jurisdição”) - mas também do Sínodo para Roma e da atualização do código (ideias estas não “suas") – em 20 de janeiro de 1959, na audiência, depois de já ter mencionado o fato em uma entrevista anterior de alguns dias. Mas vamos reabrir o diário do bispo de Roma e pastor da Igreja universal: "Na entrevista com o secretário de Estado Tardini quis conhecer sua opinião em torno da ideia de que decidi propor aos membros do Sagrado Colégio que se reunirão em San Paolo, no próximo dia 25 para o fechamento do otaviário de oração, o projeto de um Concílio [sic] Ecumênico a se reunir omnibus perpensis no devido tempo com a intervenção de todos os bispos católicos de cada rito e região do mundo. Eu estava muito hesitante e inseguro. A resposta imediata foi a surpresa mais exultante que eu poderia esperar. "Oh! Mas esta é uma ideia, uma ideia brilhante e sagrada. Ela vem diretamente do céu, Padre Santo, devemos cultivá-la, elaborá-la e difundi-la. Será uma grande bênção para o mundo inteiro". Eu não precisava de mais nada. Eu estava feliz. Agradeci ao Senhor por este projeto que recebia o primeiro selo que eu poderia esperar aqui em baixo como antecipação daquele celestial que humildemente confio não irá me faltar. Ave mundi spes Mari: ave mitis, ave pia”.

É com estas palavras - da sequência mariana de  Inocêncio III – que João XXIII fecha a sua nota de 15 janeiro de 1959: a primeira com uma referência explícita ao Concílio. Dois dias depois, o diário marca um "dia cheio de audiências importantes" e, abaixo, sob um espaço vazio, relata: "À noite, mons. Dell'Acqua fala-me de uma possibilidade de celebrar antes mesmo outro projeto de caráter universal, um Sínodo para a Diocese de Roma". Uma segunda referência para o Concílio e a primeira referência ao sínodo.

Em 20 de janeiro, terça-feira, outra nota do diário papal que parece esquecer aquela de cinco dias antes: "Giornata albo signanda lapillo. Na audiência com o Secret [ário] de Estado Tardini, pela primeira vez, e eu diria, como por acaso, eu pronunciei o nome do Concílio, como a dizer o que o novo Papa poderia propor como convite para um amplo movimento de espiritualidade para a Igreja e para o mundo inteiro. Eu temia uma expressão sorridente e desconfortada como resposta. Em vez disso, à simples menção, o cardeal – pálido no rosto, e inexpressivo - retrucou com uma exclamação inesquecível e um brilho de entusiasmo: "Oh! Oh? esta é uma ideia, esta é uma grande ideia". Devo dizer que viscera mea exultaverunt em Deo (Salmos 84, 3): e tudo ficou claro e simples no meu espírito, e acho que não considerei necessário acrescentar palavra. Como se a ideia de um Concílio surgisse em meu coração com a naturalidade das reflexões mais espontâneas e mais seguras. Verdadeiramente a Deo factum est istud et est mirabile oculis meis (Mateus, 21, 42)”.

Lidas essas linhas surge uma pequena pergunta, Roncalli falou do Concílio a Tardini em 15 ou 20 de janeiro? "Estou inclinado a acreditar que em 20. A nota o dia 15 seria, nesse caso, uma repetição, adicionada em um momento de reflexão jubilosa esquecido (talvez) da nota já redigida na data do dia 20”, explicou várias vezes Capovilla. Provavelmente foi assim. E não é por acaso que é datada de 20 de janeiro uma passagem do diário de Tardini que com o seu consentimento eliminou qualquer hesitação residual do Papa. Lê-se: "Audiência importante. Sua Santidade ontem à tarde refletiu e ponderou sobre o programa de seu pontificado. Ele idealizou três coisas: o Sínodo Romano, o Concílio Ecumênico e a atualização do Código de Direito Canônico. Ele quer anunciar esses três pontos no próximo domingo aos senhores cardeais, após a cerimônia em São Paulo. Eu digo ao Santo Padre que me pergunta: "Eu gosto de coisas belas e novas. Pois bem, estes três pontos são belíssimos e a maneira de dar o primeiro anúncio aos cardeais é nova (mas se conjuga com as antigas tradições papais) e é extremamente oportuna".

Poderia ser interessante descobrir se Tardini tivesse tido a intuição de estar diante de um fato consumado para se comportar em conformidade (seu biógrafo Giulio Nicolini escreveu tem razões para acreditar que tivesse adicionado outras páginas enterradas nos arquivos), mas esta é outra história. É mais importante entender o significado imaginado por João XXIII para o "seu" Concílio: algo ainda não definido, mas provavelmente mais pastoral do que dogmático (e pastoral não em sentido redutivo, mas com uma concepção da pastoralidade como dimensão constitutiva da doutrina.). Haveria tempo para avaliar tudo. Além disso, Roncalli - como testemunhou Dell'Acqua – “nunca pensou em abrir e fechar o Concílio Ecumênico [...]. Repetidamente ele me disse: "o que importa é começar: vamos deixar o restante para o Senhor"; em muitas outras circunstâncias um Papa começou um Concílio concluído por outro Papa. Não era então sua intenção apressar as coisas”.

Assim chegamos a 25 janeiro de 1959, encerramento do otaviário pela Unidade dos Cristãos (anseio que Roncalli vivia com intensidade pelo menos desde os dias em que estava na Bulgária), uma etapa abordada pelo Papa em muitos livros sobre a história dos Concílios (alguns das quais enviados a ele por seu amigo humanista Dom Giuseppe de Luca), na oração, na preparação do discurso a ser pronunciado aos cardeais reunidos em San Paolo Fuori le Mura. Levantando-se ao amanhecer, depois de ter rezado o Angelus, celebrada a missa em sua capela, depois de ter assistido àquela do secretário e ter trabalhado um pouco no gabinete, eis que ele se dirige de carro para San Paolo. Aqui ele preside a missa celebrada pelo abade e realiza a homilia. Concluído o rito - mais prolongado do que o esperado - o Papa pede para segurar os cardeais no mosteiro adjacente à basílica. Quando o papa entra na sala capitular junto com os não muitos cardeais presentes, o meio-dia já passou: a hora em que cessa o embargo para a divulgação da notícia. Assim, a novidade do Concílio antes mesmo de ser anunciada pelo pontífice já chegou pela Secretaria de Estado na Sala de Imprensa e, repercutida pelas agências, já está fazendo a volta ao mundo. O comunicado papal é sóbrio. Com três palavras que começam a conversa: "Esta festiva recorrência", marcando o anúncio oficial da aventura conciliar que se abriu em 11 outubro de 1962, marco de um pontificado que não poderá mais ser de “transição”.

O Pontífice, de fato, indica as razões que sugeriram algumas atividades extraordinárias em seu ministério: a perspectiva do bem das almas e a necessidade de corresponder às necessidades do tempo presente. Amplia o diagnóstico de Roma para a Igreja universal, reconhece o valor de algumas "antigas formas de afirmação doutrinária e de sábios ordenamentos de eclesiástica disciplina”, então anuncia "tremendo um pouco de emoção, mas com humilde resolução de propósito o nome e a proposta da dupla celebração do Sínodo Diocesano para a Urbe e de um Concílio Geral para a Igreja Universal".

A revisão do Código de Direito Canônico, promulgado em 1917 e necessitado de renovação, será consequência natural das duas decisões recém anunciadas (contudo, ainda terá que esperar por longo tempo: vinte e cinco anos). O texto da mensagem papal, sóbrio, mas muito programático, comunicado também aos cardeais ausentes, iria aguardar por longo tempo palavras de disponibilidade e não seria imediatamente divulgado pela imprensa católica (nem mesmo pelo Osservatore Romano, onde aparece uma sucinta declaração). Além disso, embora alcançados pelo convite para rezar por "um bom começo, continuação e feliz sucesso desses propósitos de intenso trabalho, para a iluminação, edificação e alegria de todo o povo cristão, o amável e renovado convite para os nossos irmãos das Igrejas separadas para participar conosco desse convite de graça e de fraternidade" (a citação provém do manuscrito papal, enquanto a versão oficial escreve um "renovado convite aos fiéis das comunidades a também seguir-nos amavelmente nesta busca da unidade e de graça"), os cardeais não falam. E ao Papa essas primeiras e desorientadas reações não escapam: "Humanamente falando, poder-se-ia esperar que os Cardeais, depois de ter ouvido a Alocução, se aproximassem ao nosso redor para expressar aprovações e votos de sucesso. Em vez disso, houve um impressionante devoto silêncio", observaria mais tarde, tentando desculpá-los: nenhum cardeal encontrou "palavras adequadas para expressar o júbilo". Não foi exatamente assim.

Inegável, em vez disso, que a versão oficial do anúncio se prestasse um pouco a mal-entendidos gerando confusão, por exemplo, em alemão ou inglês: de fato, enquanto João XXIII com as palavras “Concílio ecumênico” se referia a um “Concílio universal” (o primeiro termo aparece na redação oficial, o segundo é o da versão autografa), a expressão foi entendida por muitos como a tentativa exclusiva de promover a unidade dos cristãos. Inegável, depois, um silêncio quase total por alguns dias, inclusive nas relações diplomáticas de Roma, enquanto é a imprensa que iria antecipar as consequências do anúncio. Muito cedo, contudo, para imaginar se o Concílio do Papa João seria a conclusão daquele interrompido em 1870, ou iria se distanciar daquele (como teria revelado a reação de João XXIII após um confronto com uma leitura da Bula de indicação do Concílio Vaticano I, não considerando-a "nem pela substância nem pela forma" correspondente "às condições atuais").

Mas vamos ficar naquele 25 de janeiro definido pelo Papa João XXIII em seu diário como um "dia feliz e inesquecível", em que "o ponto mais importante" foi a "comunicação secreta apenas para os cardeais, do triplo projeto" de seu pontificado. "Tudo saiu bem". E ainda: "Eu mantive a minha contínua comunicação com Deus. Na volta, a festa dos Romanos para São Paulo em São Pedro inesquecível ...". Lembro-me de pedir várias vezes a Capovilla para destacar uma imagem daquele dia. Sua resposta é sempre igual: “O retorno ao Vaticano [...]. No carro, eu perguntando ‘Santo Padre, como se sente?’, e ele respondendo: ‘Como você quer que eu me sinta ... É o Senhor que faz assim’. Da mesma forma que ele não se deprimia, também nunca exultava. Era um dos seus dons: o seu grande equilíbrio".

Equilíbrio, acrescentamos nós, que marcaria, desde aquela época, muitos de seus encontros e discursos, revelando a sua ideia de Concílio como um evento de liberdade e de fé. No início do complexo trabalho das comissões preparatórias, em novembro de 1960, teria afirmado que "mais do que um ponto ou outro de doutrina ou de disciplina", tratava-se de "colocar em valor e esplendor a essência do pensamento e da vida humana e cristã, da qual a igreja é a depositária e mestra no decorrer dos séculos".

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