Papa Francisco recebe nota C+ na reforma da Cúria

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05 Janeiro 2017

O Papa Francisco muito falou sobre reformar a Cúria Romana para o artigo publicado ontem, mas na realidade ele deve receber apenas um C+ pelo que fez.

O comentário é de Thomas Reese, jesuíta e jornalista, publicado por National Catholic Reporter, 29-12-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Verdade seja dita: ele fez coisas importantes.

Primeiro, alterou a natureza do Colégio Cardinalício ao ignorar as sés cardinalícias tradicionais e, na maior parte das vezes, nomeou como cardeais bispos que refletem a própria visão de mundo dele.

No passado, havia certas dioceses que todo mundo presumia que seriam lideradas por um arcebispo cardeal. Mesmo se um antecessor do papa fosse quem tivesse nomeado o arcebispo, esperava-se que o novo papa promovesse o prelado a uma sé cardinalícia conferindo-lhe o barrete vermelho.

O Papa Francisco vem ignorando essa tradição e deixou de lado sés cardinalícias como Veneza, Filadélfia e Los Angeles para designar bispos em lugares que raramente – se é que alguma vez tiveram – um cardeal, como Indianápolis. Ele tem escolhido a pessoa em vez do lugar.

Isso é a coisa mais revolucionária que Francisco fez em termos de comando da Igreja. Ele está fazendo todo o possível para garantir que o seu legado tenha continuidade assegurando que o seu sucessor venha a ser alguém que reflita as suas visões. Tivesse ele apenas promovido os prelados remanescentes de João Paulo II e Bento XVI, iria ser muito mais difícil proteger o seu legado, visto que o seu papado não será um papado muito longo.

Só por essa mudança eu já me sinto tentado a dar-lhe a nota A. Estou feliz que o papa esteja aumentando as probabilidades de que o próximo papa venha a ser como ele, e todos os meus amigos progressistas certamente estão felizes com essas nomeações.
Mas então precisei ser honesto comigo mesmo fazendo-me a seguinte pergunta: “Com eu teria reagido se o Papa João Paulo II ou Bento XVI tivesse feito a mesma coisa?” Francamente, eu teria ficado indignado. Os progressistas iriam ver o caso como mais um exemplo da centralização papal e do apego da velha guarda ao poder.

Dito de outra forma, suponhamos que o próximo conclave seja o espelho oposto do último. Suponhamos que ele cometa um engano e eleja alguém que os cardeais achem ser um progressista ou um moderado e que, na verdade, é um reacionário. Ele então vai ser capaz de usar o precedente de Francisco para completar o Colégio Cardinalício com reacionários.

Confesso, apesar das minhas reservas, que incentivaria Francisco a fazer exatamente o que ele fez, porém o teria advertido das possíveis consequências negativas.

Isso tudo me recorda que toda reforma pode ter consequências não pretendidas inicialmente. É por isso que o Papa Francisco não recebe um A por sua reforma.

A sua segunda e importante ação quanto à reforma curial tem sido a ênfase na mudança da cultura curial. Em outro artigo, sustentei que mudar as estruturas e o departamento pessoal em uma organização, seja ela uma escola ou um grupamento policial, irá ter pouco efeito a menos que a cultura da instituição também mude. O Papa Francisco sabe disso muito bem.

Pela palavra e pelo exemplo, ele travou um ataque frontal contra o clericalismo e os privilégios desde os primeiros dias de seu papado. Ele quer que os bispos e padres sejam servos, não príncipes, junto de seus rebanhos. Enquanto os cientistas sociais falam sobre mudar a cultura de uma instituição, o papa muito corretamente emprega a linguagem cristã da conversão.

De novo, por isso eu lhe daria um A, mas o clericalismo poderá facilmente retornar sob o comando de um papa diferente. Além disso, essa batalha contra o pecado é infinita (semper reformanda) e jamais será vencida porque o pecado original é o coração da nossa humanidade.

Tampouco preencher o Vaticano com progressistas irá resolver o problema, pois eles podem cair na mesma tentação à arrogância como todo mundo. Portanto, tal é uma batalha em que vale a pena se engajar, mas que o papa precisa compreender que se trata de uma guerra que jamais será ganha.

No tocante à reforma financeira, o Papa Francisco recebe um C+ por não ter finalizado o trabalho ainda. O banco do Vaticano está em boa forma. A Administração do Patrimônio da Sede Apostólica – APSA, departamento financeiro e de investimento, teve progressos. Mas há grandes bolsões de dinheiro, especialmente aqueles controlados pela Congregação para a Evangelização dos Povos, que necessitam de um olhar mais de perto.

O que tem de ser feito está claramente delineado no relatório da Moneyval – agência internacional que lida com lavagem de dinheiro – divulgado em 2015. Este texto indicou que o Vaticano ainda não alcançou 6 das 16 recomendações nucleares necessárias para se tornar mais transparente financeiramente e estar compatível com as normas internacionais. Cumprir com as recomendações da Moneyval é o mínimo absoluto que o Vaticano deve fazer. O Papa Bento tem o crédito de ter iniciado este processo, mas Francisco deve levar esta reforma à conclusão.

Reconheço que uma reforma financeira leva tempo, porém é notável que acusação alguma tenha saído a partir das investigações conduzidas sobre a corrupção financeira no Vaticano. O papa aprovou o indiciamento de um funcionário que vazou documentos vaticanos, o qual foi solto recentemente da prisão, mas até agora ninguém foi processado por crimes financeiros. Suspeita-se que ele não quer pôr um importante cardeal sob julgamento. É também decepcionante que o papa tenha recuado diante da possibilidade de fazer uma auditoria externa às finanças vaticanas.

Muita atenção tem sido dada para a fusão de uma série de departamentos vaticanos em três novos departamentos: para os Leigos, a Família e a Vida, para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, e para as Comunicações. Durante o seu recente discurso à Cúria Romana, o papa indicou que pretende fundir ou aproximar outros dicastérios também. A esperança é que estas fusões levem a uma melhor coordenação e cooperação entre os departamentos, porém o papa deseja que elas levem também a uma Cúria mais enxuta.

Francisco tem certo desprezo pela burocracia tal que frequentemente soa como um republicano. Ele quer uma Cúria menor, com um orçamento menor. A fusão destes departamentos é um modo de reduzir os custos eliminando algumas autoridades vaticanas do alto escalão. Embora ele não queira que funcionários leigos sejam demitidos, uma redução via atrito deverá ser mais fácil dentro destes departamentos agora mesclados.

Fundir departamentos significa reduzir o número de autoridades de alto escalão com os quais ele precisa se reunir, o que faz sentido para alguém que governa uma organização com 1.2 bilhão de membros. Muitíssimas pessoas se reportavam ao papa diretamente no passado, o que significava na realidade que a maioria delas se reportava à secretaria de Estado do Vaticano. A fusão destes dicastérios pode dar às novas lideranças uma maior autoridade e independência do Estado do Vaticano, bem como poderá permitir que o papa lide com elas de forma mais direta.

O novo dicastério para as comunicações será o desafio maior porque ele está reunindo departamentos mais antigos com culturas e tecnologias diferentes numa área onde a tecnologia muda rapidamente. Sejamos sinceros: se o mundo secular está nos seus limites mentais tentando lidar com a revolução comunicacional de hoje, então como poderemos nós esperar que o Vaticano acerte aqui na primeira tentativa? Não só as comunicações do Vaticano requerem uma mudança maior; elas devem também permanecer flexíveis no futuro para responder às tecnologias e aos eventos cambiantes.

Idealmente, o chefe das comunicações precisa de habilidades extraordinárias de liderança, que possam inspirar e unir um grupo díspar de departamentos que não querem mudar seus modos de trabalho. Algo assim vai demandar alguém como Jesus, com um MBA, mas infelizmente uma pessoa com esse perfil não está disponível.

Odeio ter de dizer isso, mas o departamento de comunicação do Vaticano precisa de um Rupert Murdoch, alguém com uma visão clara que irá demitir e substituir qualquer um que não sustente tal visão. Táticas tão implacáveis como esta seriam um anátema para Francisco, o Pastor. Porém as consequências da indisposição papal em demitir ou gastar mais dinheiro é que o Vaticano vai ganhar sangue novo somente quando as pessoas morrerem ou se aposentarem. Um departamento de comunicação sem sangue novo jamais ficará à altura dos meios de comunicação contemporâneos. Esse dicastério vai permanecer confuso, desorganizado por um longo tempo.

Finalmente, há as reformas que Francisco sequer levou em conta.

A primeira delas é a necessidade de parar de fazer das autoridades vaticanas bispo ou cardeais. O tribunal papal deve deixar de existir e ser substituído por um serviço civil profissional. Enquanto as autoridades vaticanas forem bispos e cardeais, eles irão se ver como príncipes da Igreja. Vão se ver como uma elite governante entre o papa e o Colégio Cardinalício, e não como servos, funcionários do papa na qualidade de chefe do mesmo colégio.

Para mim, isso foi o que mais me decepcionou na alocução de Ano Novo do papa à Cúria. Não houve menção alguma sobre a relação da Cúria com o Colégio Cardinalício. A teologia do discurso foi tão monárquica quanto aquela proferida por papas anteriores.

Infelizmente, as referências à sinodalidade no discurso à Cúria foram para instar as autoridades a “evitar a fragmentação que pode ser determinada por vários fatores, tais como a proliferação de setores especializados, que podem tender para serem autorreferenciais”.

Isto rebaixa a teologia da sinodalidade: do envolver o Colégio Cardinalício para um simples cooperar dos departamentos vaticanos entre si. É uma sinodalidade empobrecida.

O papa sabe claramente qual é a verdadeira sinodalidade porque ele a praticou com o Sínodo dos Bispos, mas não calculou bem como a Cúria se relaciona com o Sínodo e o Colégio.

Uma sinodalidade robusta alteraria a forma como as congregações e os conselhos operam.

Hoje, cada entidade vaticana importante teu um departamento e uma comissão de bispos e cardeais de dentro e de fora do Vaticano. No Vaticano, tanto o departamento como a comissão são referidas pelo mesmo nome, o que pode causar confusão. O departamento e a comissão são chamados congregação ou conselho. O chefe do departamento (prefeito ou presidente) preside a comissão.

Essas comissões deveriam ser reconstituídas com uma membresia vindo dos bispos diocesanos, sem membros do Vaticano. O presidente deveria ser um bispo ou arcebispo diocesano, não o chefe do departamento no Vaticano. Ele deveria ser composto por bispos conhecedores dos assuntos sob a alçada do departamento. Por exemplo, a Congregação para o Culto Divino poderia ser composta de bispo especialistas em liturgia ou que presidem as comissões litúrgicas das conferencias episcopais.

Sob um tal sistema, as comissões seriam responsáveis por assessorar o papa e a supervisionar os departamentos do Vaticano. As reuniões das comissões poderiam acontecer usando-se a tecnologia disponível de videoconferência para que os membros pudessem se ver regularmente sem gastar dinheiro e tempo viajando a Roma.

Como parte do repensar os departamentos vaticanos, uma atenção deve ser dada ao princípio de subsidiariedade – permitindo que decisões apropriadas sejam feitas no nível local ao invés de serem tomadas em Roma. Muitas decisões atualmente feitas em Roma deveriam ser tomadas no nível diocesano ou das conferências.

Além disso, há a necessidade de separar a função jurídica das funções legislativas e executivas no Vaticano. Embora ainda vejamos o papa como o legislador, o executivo e o juiz supremo na Igreja, as mesmas pessoas no Vaticano não deveriam estar envolvidas na produção de políticas, na execução delas e em julgar violações das normas.

O C+ que dei ao Papa Francisco é uma nota que fica no meio termo. Ele ainda tem tempo para verdadeiramente reformar o Vaticano, mas isto não vai acontecer a menos que ele compreenda o que uma verdadeira reforma quer dizer. Não cai bem ao papa dizer-lhe que tudo está bem.

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