11 Abril 2023
Na Villa Alleti, situada na via Paolina, em Roma, funcionam várias entidades religiosas interligadas: uma comunidade de padres da Companhia de Jesus; uma comunidade de consagradas; e o Centro Aletti, fundado e ao longo de muitos anos dirigido pelo padre de origem eslovena Marko Rupnik, que tem sido acusado de abusos sexuais e de poder por várias mulheres. Este Centro é constituído por uma editora e por um atelier de arte e foi, em 2019, reconhecido canonicamente como “associação pública de fiéis pelo cardeal vigário da diocese, Angelo de Donatis.
A reportagem é de Manuel Pinto, publicada por 7Margens, 06-04-2023.
O Centro Aletti está a ser objeto de uma “visita apostólica” atípica, ordenada por Donatis – foi há dias noticiado em Itália. A visita é conduzida por Giacomo Orazio Incitti, professor de Direito Canónico na Universidade Urbaniana, juiz no Tribunal de Recursos do Vicariato de Roma e prelado canonista do Tribunal da Penitenciária Apostólica.
Oficialmente não há informação sobre esta medida que, pelo simples facto de ter sido tomada, indicia matéria que suscita preocupação. E não se sabe, sequer, qual ou quais das entidades são especificamente objeto da indagação.
Contudo, o blog Messa in Latino (“Missa em latim”) que deu a notícia e que tinha sido um dos primeiros a noticiar os abusos sexuais e de poder do artista e teólogo Marko Rupnik, no início de dezembro último, refere que a visita é motivada pela “suspeita de que os funcionários do Centro, em vários cargos, há anos dão cobertura a Rupnik, garantindo-lhe a impunidade”.
Como explica Luisella Scrosati, num artigo publicado na última terça-feira, 4 de abril, en La Nuova Bussola Quotidiana, existe um entrelaçado complexo entre as várias instituições que convivem na Villa Aletti e até entre quem ordena a visita e quem é examinado. Vários membros da comunidade jesuíta ocupam cargos diretivos no Centro Aletti e o diretor da comunidade é consultor do Centro.
“Não é nada claro – escreve Luisella Scrosati – aquilo que a associação pública de fiéis inclui e que, à primeira vista, dá a ideia de ser uma quarta entidade que parece abranger a comunidade de mulheres e o Centro, mas em certa medida também envolve a Comunidade Jesuíta”.
Porta da Vida, na Basílica de Nossa Senhora, em Lourdes (França), da autoria de Rupnik: a relação de várias pessoas com o padre esloveno foi uma via-sacra | Foto: António Marujo/7Margens
“Seria um sinal de clareza e transparência se o Vicariato de Roma publicasse o decreto” que decidiu a visita, no qual se dá porventura “a conhecer a ‘fisionomia’ do destinatário”, acrescenta a colunista.
Também a “chegada” do padre Hans Zollner às funções de consultor do Serviço de Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis da diocese de Roma é um elemento a considerar neste contexto. Ele deixou no final de março a Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores e justificou a demissão com as novas funções que vai desempenhar (além das críticas que enunciou sobre o funcionamento da referida Comissão).
Zollner será mais um jesuíta neste puzzle que rodeia o caso Rupnik, em que já se encontram os superiores jesuítas do artista, o bispo auxiliar de Roma, Daniele Libanori, que foi – e, formalmente continua a ser – o comissário da visita à Comunidade Loyola, na qual Rupnik terá praticado vários abusos de que agora é acusado; o cardeal Luis Ladaria, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, que por duas vezes teve em mãos os abusos do padre Rupnik; e o próprio Papa Francisco que recebeu Rupnik quando ele acabava de ser punido pela Companhia, embora tenha confessado recentemente que não teve intervenção no processo. Para completar o puzzle, o cardeal Angelo de Donatis é tido como um amigo próximo de Rupnik.
O argumento que o Dicastério para a Doutrina da Fé usou para não condenar o fundador do Centro Aletti foi o facto de os casos de abusos denunciados terem prescrito, não pondo em questão a veracidade das denúncias. Mas o mesmo serviço do Vaticano já tinha reconhecido, dois anos antes, a excomunhão latae sententiae de Rupnik por absolvição de uma cúmplice num caso de relações sexuais, datado de 2015, excomunhão levantada umas semanas depois, com a alegação de que o condenado tinha pedido perdão.
Visão do inferno no painel do altar da Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima: a irmã Samuelle tentou “fugir do inferno”, contou ela esta semana | Foto: António Marujo/7Margens
Pelos dados que eram do domínio público poderia, apesar de tudo, construir-se a ideia de que Rupnik, a partir de meados dos anos 90 e durante os 20 anos subsequentes – ou seja, a partir da altura em que rompeu com a superiora geral da Comunidade Loyola, e quando criou o Centro Aletti – tinha modificado o seu comportamento de abusador, apesar de muitos sinais de que tal não tinha sucedido.
É neste contexto que o caso dramático de uma religiosa, divulgado na página digital do semanário La Vie, na última terça-feira, 4 de abril, se reveste de um significado especial.
Trata-se de uma jovem mulher francesa, de seu nome Samuelle que, aos 21 anos, já com um diploma de trabalhos em madeira, opta pela vida religiosa para “seguir Cristo e descobrir o seu rosto”, entrando para as Fraternidades Monásticas de Jerusalém.
Nesta congregação sentiu-se violentada e abusada espiritualmente, incluindo na confissão, por práticas de repressão das amizades que pudessem surgir naquele contexto e que a levaram a isolar-se das outras religiosas. Fazendo a retrospectiva, Samuelle fala hoje de um “crescimento emocional que estagnou”, “quase um desenraizamento de si mesma, que ela arrastou ao longo de toda a sua vida”, nas palavras da jornalista Sophie Lebrun, que a entrevista.
Procurando “fugir do inferno”, dirige-se a Roma e busca refúgio no atelier de um tal Marko Ivan Rupnik, padre e artista de mosaicos já então internacionalmente conhecido. Estávamos no ano de 2006. A aproximação foi-se fazendo e, em 2010, Samuelle inicia com o padre artista um curso de quatro anos, como interna do Centro Aletti, onde Rupnik vivia e trabalhava.
Sem saber, estava mais que “preparada” para ser um alvo. “Ele percebeu a minha aflição, viu as brechas em mim… e correu para elas”, denuncia ela à jornalista. Foi resistindo enquanto pôde, até que cedeu. A partir daí, ele impôs-se como seu guia espiritual. “Entrou na minha mente, tomou o controlo e eu era sua prisioneira”, sempre sem ultrapassar limites perigosos.
Em 2014, Samuelle urde uma estratégia engenhosa para se libertar e voltar a França. Ainda passa por um mosteiro, mas não aguenta mais de um mês. Nesse ano, ainda se cruza com Rupnik, a quem decide dizer que ele não tinha tido uma relação sã com ela. Ele a questionou dizendo que ela “via sexo em todo o lado”. E, antes de se retirar furioso, foi dizendo que ela o estava a trair e que era de consciência tranquila que a deixaria para ir celebrar a Eucaristia.
Só em 2018 Samuelle cortou com as Fraternidades de Jerusalém. Voltou a fazer votos de pobreza, obediência e castidade perante a diocese onde passou a viver como eremita e artista. Todo o seu trabalho, nos últimos anos, tem sido reaprender a viver, “ressuscitar” para a vida. Apoiada na criação artística e na liturgia das horas. Tem procurado ser ouvida e ser reparada quer pela ordem em que esteve 20 anos, quer pelos Jesuítas. Estes têm mostrado uma “amável atenção” para com ela; com as Fraternidades de Jerusalém, os intercâmbios têm sido mais difíceis.
O que este caso torna manifesto, além da coragem desta artista e ermitã, é que Marko Rupnik presumivelmente não mudou de rumo e que há, agora, razões acrescidas para rever o seu caso, a extensão dos danos que tem causado, e investigar com atenção o que foi o Centro Aletti, por detrás da editora e do atelier artístico. Haverá um “lado sombrio” deste Centro, que seja necessário trazer à luz do dia? Os testemunhos de várias vítimas para aí apontam, daí a urgência de conhecer a verdade.
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Haverá um lado sombrio no Centro Aletti, do padre Rupnik? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU