30 Janeiro 2023
"É evidente que no caso de Rupnik estamos diante de um uso gravemente distorcido, mas igualmente claro que aquele modelo cria todas as condições para se chegar a esse ponto. Mesmo que não houvesse sexo, ainda haveria uma dependência fonte de infelicidade, uma falta de autonomia grave em um adulto. Talvez a igreja devesse iniciar uma reflexão sobre as consequências desse delicado mecanismo", escreve Marco Marzano, professor da Universidade de Bergamo, na Itália, em artigo publicado por Domani, 29-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A publicação em Domani de uma nova entrevista com uma das vítimas do padre Marko Rupnik, o jesuíta de abusos contra algumas freiras, permite-nos fazer outras reflexões sobre o caso e em geral sobre a dinâmica dos abusos clericais.
A primeira consideração diz respeito à gênese da relação entre abusada e abusador. O que a eslovena Klara contou é comum a muitas outras histórias: no início há uma sedução, um encanto, a que se segue o deslizamento para as malhas de uma relação cada vez mais estreita que logo assume os contornos da dependência, a princípio psicológica e depois também material e prática, depois da entrada no convento. Até chegar à consumação de atos sexuais.
Essa sequência não é acidental, mas é uma consequência perversa de um modelo de relação difundido e oficialmente aprovado na Igreja Católica: o da direção espiritual, ou seja, da entrega total e obediente do neófito ao mestre.
Este último assume a tarefa de orientar e dirigir a plena conversão do novo adepto, corrigindo pacientemente seus erros, sufocando suas tentações de fuga e conduzindo-o à perfeição ligada ao seu novo estado. É uma manifestação exemplar do poder pastoral de que falava Michel Foucault e a aplicação de um esquema amplamente difundido no catolicismo, uma trama que garante a salvação a quem sabe juntar-se ao rebanho e submeter-se à vontade divina pela mão firme de um condutor.
É evidente que no caso de Rupnik estamos diante de um uso gravemente distorcido, mas igualmente claro que aquele modelo cria todas as condições para se chegar a esse ponto. Mesmo que não houvesse sexo, ainda haveria uma dependência fonte de infelicidade, uma falta de autonomia grave em um adulto. Talvez a igreja devesse iniciar uma reflexão sobre as consequências desse delicado mecanismo.
A segunda consideração é mais uma confirmação do que já sabemos: a sexualidade dos padres abusadores é muitas vezes onanista e infantil. Klara relata carícias, toques, alguns beijos, uma violenta masturbação recíproca, a sombra de relações orais. A ex-consagrada nunca menciona uma relação sexual completa.
É um fato que ouvi em muitas outras histórias de pessoas abusadas por padres e que encontra confirmação nos números fornecidos pela investigação alemã do MHG sobre a pedofilia clerical. No estudo alemão afirma-se que os atos sexuais mais difundidos (quase 30 por cento) entre os membros do clero com menores são os "toques por cima das roupas", seguidos dos "toques nos órgãos genitais por baixo das roupas" (22,5 por cento).
Apenas 11% dos casos envolveram penetração genital. Para entender esse elemento devemos nos referir a uma mentalidade muito difundida dentro do catolicismo que atribui a cada violação do sexto mandamento (não cometer atos impuros) uma gravidade distinta.
Um ato de autoerotismo ou apalpação seriam pecados de natureza menos séria do que uma relação sexual completa (que, entre outras coisas, se for realizada com uma mulher, também produz o risco de uma gravidez indesejada). É a essa norma informal que muitos padres se atêm nos seus comportamentos sexuais e é essa mesma regra que muitos padres sugerem seguir para casais católicos que querem chegar virgens ao casamento.
O problema é que, no caso dos abusos (em menores e adultos), os efeitos dessa norma são trágicos, já que para as vítimas o dano infligido pelo abuso não é mensurável com a mesma escala: em outras palavras, mesmo uma esfregação que parece ao padre um pecado menor pode causar em quem a sofre uma enorme ferida.
A última anotação diz respeito a um aspecto que já havia me impressionado na entrevista de Federica Tourn com outra vítima, Anna, onde ela contava que Rupnik assemelhava o triângulo amoroso à trindade divina. Klara chega a relatar, atribuindo-o à amiga de Rupnik intencionada a convencê-la a ter relações a três com o jesuíta, o projeto de “beber o seu esperma de um cálice no jantar”.
Parece-me evidente que, se isso aconteceu, estaríamos diante de uma espécie de profanação do rito da Eucaristia, a algo que se assemelha aos rituais satanistas, nos quais precisamente os símbolos do cristianismo são derrubados e escarnecidos.
Se o relato da ex-freira eslovena fosse verdadeiro, Rupnik e sua cúmplice teriam tramado o plano de uma missa disfarçada, em que a verdadeira divindade teria sido o jesuíta esloveno amigo do papa e reverenciado por grandes massas católicas. Seria possível que um eco de tudo isso nunca tenha chagado aos sagrados palácios romanos que garantiram honras e privilégios principescos a Rupnik por décadas?
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Rupnik e as dinâmicas dos abusos clericais. Artigo de Marco Marzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU